Portugal, 2015. Joana Vasconcelos faz mais um objecto quotidiano em versão gigante e o Portugal dos pequeninos corre para ver. Presidente da República e primeira-dama posam ao lado da artista. VHILS esburaca mais uma parede com o rosto de Amália e os jornais apressam-se a apresentar a coisa como (mais) um momento seminal da arte universal. Diz-se que os livros em papel vão desaparecer, mas publicam-se milhares de romances por ano, indiferentes, indistintos. É neste contexto de arte e literatura aprisionados no dinheiro e no entretenimento que reencontramos Lourdes Castro e os seus livros ready-made, os seus poetas, as suas sombras, os seus plexiglass. Estão no Museu da Gulbenkian até 26 de Outubro, com o comissariado de Paulo Pires do Vale, e vê-los é participar num exercício de inteligência e liberdade que não precisa de um discurso retórico rebuscado para se sustentar.

Sombra Projectada-Serigrafia em rodhoïd rosa fluor. Coleção da artísta

Sombra Projectada-Serigrafia em rodhoïd rosa flúor. Coleção da artista

Porquê falar de tudo isto para falar tão só de Lourdes Castro?

Porque 60 anos depois de ter transformado os livros de autor em obras de arte singularíssimas, que a colocaram entre os artistas mais excitantes das décadas de 60 e 70, ela prova que soube como poucos pensar o seu tempo e antecipar o futuro.

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Este futuro onde a sofisticação tecnológica está a fazer com que o livro seja de novo compreendido como um objeto físico e conceptual (algo de que Castro foi precursora). Amado pelo seu caráter único, pela sua aura de coisa imperfeita, nascida não da novidade, mas da essência do tempo, o livro de autor tem colado a si um passado, com o rasto da mão humana, seja nos tipos utilizados, nas pinturas feitas à mão, na rudeza ou simplicidade das encadernações, na originalidade com que a forma se relaciona com o conteúdo.

Livro de autor de Lourdes Castro a partir de poema de Herberto Helder, 1958

Livro de autor de Lourdes Castro a partir de poema de Herberto Helder, 1958

De novo os livros de autor lutam por um lugar na vanguarda histórica, como já o tinham feito no início do século XX os Futuristas russos, os Dadaístas e os Futuristas italianos. Movimentos onde se criaram marcas tipográficas realmente inovadoras, combinadas com colagens de conteúdo altamente politizado e que contam uma parte importante do século XX. Quando começou a criar os seus livros de autor, no final dos anos 50, Lourdes Castro já tinha uma história atrás de si. Porém, o seu uso do livro como suporte e como linguagem foram — e são — uma das faces mais intemporais da sua obra.

Os 40 livros agora expostos no museu da Fundação Calouste Gulbenkian não são por isso apenas o pretexto para umas reuniões de académicos e uma página de jornal. São um acontecimento político. É a arte do regime ou o regime da arte? Estamos condenados a vestir com crochet monótono as peças radiantes de Bordalo Pinheiro?

Que lês Lourdes Castro?

Lourdes Castro em conversa com o Observador

Lourdes Castro, na Gulbenkian, em conversa com o Observador

A primeira obra que figura na exposição “Lourdes Castro. Todos os Livros” é uma tela pintada onde figura uma rapariga a ler e ao lado a pergunta “Que lês Maria Alice?”. O quadro é a porta de entrada para a relação profunda e constante entre a linguagem pictórica e a linguagem alfabética que atravessam toda a obra da artista mas em especial estes livros feitos dos mais diversos materiais e técnicas

Nestes dias de impressão monótona de livros e de apagamento da sua longa história de trabalho manual, podemos voltar-nos para a obra de Lourdes Castro, para os seus pequenos livros, onde transcrevia poemas de Rilke, Rimbaud, Appolinaire, Paul Éluard ou Herberto Helder e sobre eles fazia colagens que nos obrigam a procurar a motivação ideacional que impulsionou aquele trabalho. Em plena ditadura salazarista, os livros da artista não podem deixar de nos fazer pensar nos panfletos, jornais clandestinos, que faziam circular a voz dos que não tinham voz. Afinal, foi no meio de jovens rebeldes, entre o atelier por cima do café Beira-Gare no Rossio e as mesas do fundo do Café Gelo que a artista fez os seus primeiros trabalhos. Entre João Vieira, René Bertholo (seu namorado), Gonçalo Duarte, José Escada e os poetas Herberto Helder, Cesariny, António José Forte, Manuel de Castro…

Entre o café e o atelier, circulavam jovens poetas, jovens pintores, livros proibidos, autores malditos, desencontros amorosos, atividades políticas clandestinas e um comum mal estar que os levaria quase todos para longe de Portugal e  à fundação, em 1958, em Paris, da revista e do projeto artístico KWY,  por Lourdes e René e que reuniu depois outros artistas e poetas vindos precisamente do Café Gelo, mas também de outros países, como Ian Voss e Christo. A busca de uma liberdade criativa fora dos espartilhos ideológicos de Portugal, e o contacto e a troca com as vanguardas artísticas europeias fizeram deste um dos projetos mais importantes na arte portuguesa da segunda metade do século XX.

Os fundadores do grupo KWY

Os fundadores do grupo KWY ( Lourdes Castro, rené bertholo, José Escada, João Vieira, Costa pinheiro, Ian Voss e Christo)

Tal como aconteceu com os poetas do Café Gelo, também a revista e a propostas dos KWY não fizeram escola, não   formularam programas estéticos e éticos, deixando em suspenso uma determinação doutrinária que os institucionalizasse como uma nova vanguarda. Tinham três letras que não existiam nas suas línguas maternas, e também não tinham nome. Isto fez com que a revista, propositadamente anti-institucional, e assumidamente experimentalista e sem finalidades ideológicas, com uma periodicidade aleatória fosse tantas vezes ignorada pelos que querem a arte como coisa que se arruma numa vitrina com um nome apenso. Apesar deste apagamento os seus artistas têm o estatuto de “inovadores” dentro das correntes europeias da Assemblage e da Nova Figuração. E por isso, Lourdes Castro tem obras suas em muitos museus importantes, como o Victoria e Albert Museum, em Londres; o Museu de Arte Moderna, em Havana; o Museu de Arte Moderna, em Belgrado; os Museus Nacionais de Varsóvia, Vroclaw e Lódz; o Centro de Arte Moderna, da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa; ou a Fundação de Serralves, no Porto.

É portanto a partir dessa liberdade e dessa negação que tem de se ler todo percurso artístico de Lourdes Castro. Só uma grande emancipação  interior e um desligamento das seguranças materiais permite explorar todos os possíveis e avançar pelos impossíveis a dentro. Por isso estes  livros de autor, agora mostrados, na Gulbenkian têm esse elemento de deslumbramento: a incorporação das mais variadas tendências artísticas na construção de uma obra única, de um olhar que se atreveu, de um corpo que não se deteve nem sequer na sua sombra. O que lês Lourdes Castro? O mundo, no seu passado e no seu devir cósmico.

Os livros desta artista são ainda símbolo do seu trânsito, de décadas, por várias cidades da Europa onde viveu com algumas dificuldades, sem acesso a ateliers ou galerias onde pudesse trabalhar com alguma tranquilidade. Assim, estes objetos são também eles uma espécie de diário, de jornal de viagem, de documentário pessoal. São o arquivo de coisas banais apanhadas em lugares efémeros e que ela reunia e colava nas suas famosas “assemblages”, mas com os quais compôs também alguns livros de autor em jeito de “ready-made”. Um deles “Un Outre Livre Rouge” (ironizando o famoso livro de Mao Tsé Tung) é mostrado ao público pela primeira vez nesta exposição mas foi feito no inicio doa anos 70 com aquele que veio a ser o seu companheiro, Manuel Zimbro. “Não tenho pressa em mostrar as coisas que faço”, explica a artista. Este livro vermelho tem um conteúdo fortemente político, mas também irónico e testemunhal de um tempo de convulsões sociais e políticas. Não esquecemos que neste anos aconteceu o Maio de 68 em Paris, a difusão pela Europa dos princípios do Maoismo, através do “Livro Vermelho”

De avesso em avesso até ao infinito

Livro de autor com palavras bordadas do avesso

Livro de autor com a palavra sombra bordada de avesso em avesso

LC-Sombra2

A festa dos seus 40 anos foi no apartamento do escritor Helder Macedo, em Londres. Já com algum reconhecimento internacional, Lourdes partilhava a mesma galeria que Yoko Ono, que também esteve na festa. Nessa noite, a artista portuguesa usou uma lingerie que pertencera à sua avó e à qual ela tinha acrescentado alguns bordados. Em memória dessa noite, bordou numa cartolina a  data desse aniversário: 09-12- 1970. O fio amarelo que pontilhava os números deixava umas formas ilegíveis na parte de trás da cartolina. Lourdes bordou de novo essas formas ilegíveis noutra cartolina e aquilo que foram números já eram apenas formas abstratas, pontilhando o vazio branco. Mas a artista continuou a bordar o avesso e depois o avesso do avesso. E foi assim que nasceram os livros bordados que ela repetirá com outras palavras como AMOR, GOETHE, SOMBRA (todos eles podem ser vistos na exposição). A técnica do bordado, tão arcaica e doméstica, posta ao serviço da construção de uma peça altamente moderna e que de novo tem como centro a palavra. A palavra codificada e depois a palavra estilhaçada. O simbolismo poético destes objetos é profundo, ambíguo e irremediavelmente sedutor.

Un Outre Livre Rouge. Por Lourdes Castro e Manuel Zimbro

Un Outre Livre Rouge, elaborado no inicio dos anos 70 por Lourdes Castro e Manuel Zimbro. É exibido ao público pela primeira vez.

Para além dos livros bordados, a exposição exibe os livros das sombras, feitos em plexiglass, material que marcou outra fase da obra de Lourdes Castro, tal como as serigrafias, materiais muito em voga nos anos 60. Com eles, a obra ganhou outras cores e texturas, mas o núcleo da sua voz autoral manteve-se: o jogo de presença/ausência dos corpos, o jogo entre o fundo e a forma e a exigência de um público capaz de entrar nestes jogos. Como escreve a ensaísta Johanna Drucker num texto muito instigante que acompanha esta exposição: ”ao contrário de uma pintura, uma impressão ou uma instalação, o livro que se abre ao olhar precisa e pede um envolvimento, a mão do leitor bem como o olhar. São convidados a viver a experiência. O inventário das dádivas de Lourdes Castro persiste, cheio e potencial, esperando que cada um se surpreenda de novo.”

Hoje, prestes a fazer 85 anos, Lourdes Castro vive no Caniço, na sua ilha da Madeira natal. Mantém uma forma física invejável e uns olhos azuis astutos e elétricos que impressionam, e veste-se com imenso estilo: uma camisa bordada, umas calças largas e umas Birkenstock nos pés. Mais de metade das bloggers de moda portuguesas não saberia fazer um outfit tão charmoso. E, é claro, ninguém a imagina vestida com um traje folclórico da ilha da Madeira, porque ela sabe que não se folcloriza o folclore. A suas raízes, a sua história familiar e íntima, como a história da natureza dos países e dos povos, inscreve-se na arte de forma secreta: uma espécie de tesouro para aqueles que souberem estar atentos ao que não se vê.