Para uns, o tema não passa de um mito. Para outros, é assunto sussurrado no decorrer de conversas informais, longe de olhares indiscretos e do consultório de psicólogos. A ideia de preferir um dos filhos é assunto tabu na sociedade atual, tema trancado a sete portas e pouco discutido. Para contrair essa tendência e trazer algumas luzes, as psicólogas Fátima Almeida (que fala, em entrevista, ao Observador) e Laura Alho escreveram o livro O Filho Preferido (editora Pactor), já nas bancas.
Na obra, feita com recurso a inúmeros estudos, as autoras exploram as consequências que podem existir para o filho preterido, mas também para o preferido, e ainda os papéis desempenhados pelos diferentes irmãos — do mais velho ao mais novo, passando pelo do meio, carinhosamente apelidado de “irmão sanduíche”. Há mais ideias em debate, como a dificuldade de comunicação entre pais e filhos e os preconceitos da sociedade no que à educação parental diz respeito.
Esta é uma entrevista para pais e filhos lerem, se possível, em conjunto. Porque se os pais têm um papel fundamental no desenvolvimento das crianças, coisa que acontece a partir do momento de conceção, os filhos nunca deixam de ser influenciados por quem os criou.
Entremos a matar: existem filhos preferidos?
Não há estudos científicos que nos digam, efetivamente, se existe ou não um filho preferido. Nós procurámos bastante na literatura da área — que é escassa — e nunca ninguém fez um estudo sobre isso. Aquilo que dizemos e que podemos concluir, quer pela partilha de experiências quer pela opinião de outros peritos, é que existe um filho com quem os pais se identificam mais. Isso pode não ser um favoritismo na própria aceção da palavra, mas é capaz de transmitir a ideia, principalmente aos filhos, de que um deles é o preferido.
Se não sabe responder se há um filho preferido, porquê o título deste livro?
Porque há dois anos fui desafiada para escrever sobre a questão do favoritismo — é um tema tabu. É tabu porque o facto de os próprios pais admitirem que têm um filho preferido pode levar a algumas questões sensíveis, ao julgamento da sociedade e da própria família. Claro que há pais que admitem ter um filho preferido, como outros que respondem que tal é impossível, que não se pode amar mais um do que o outro. O certo é que há sempre um desconforto em falar sobre isso.
Se me perguntar enquanto Fátima — e não enquanto profissional na área da psicologia — se existe um filho preferido, eu vou dizer que há famílias em que existe um pai ou uma mãe que têm uma preferência por um dos filhos ou que se identificam mais com um deles. Enquanto profissional não lhe posso responder porque não foi feita nenhuma investigação que chegue a essa conclusão.
Já se deparou com casos de pais que admitissem ter filhos preferidos?
Em consulta e em investigação nunca ninguém me admitiu que tinha. Em conversas informais, sim. Se perguntarmos “tem um filho preferido?” ou “sente que gosta mais de um filho do que de outro?” em contexto de consulta, a resposta é sempre a que dei há pouco, socialmente correta, de que é inadmissível existir um filho preferido. Se dermos a volta à questão e perguntarmos “existe algum filho com o qual se identifique mais?”, os pais já mudam um pouco o discurso e são capazes de dizer que sim, que talvez haja um que corresponde mais às suas expetativas. É uma resposta dada conforme a sociedade, com receio de julgamento.
O favoritismo corresponde ao facto de um pai se identificar mais com uma criança?
A ideia de favoritismo passa por essa identificação, por qualidades ou características de personalidade que a própria criança tem e que os pais veem como favoritismo. Ou seja, se a criança se comporta da forma como eles gostavam que se comportasse, se é afável ou se na escola segue as ideias ou as aspirações dos pais, acredito que isso possa roçar o limiar do favoritismo. Ainda existe outra questão: existe maior ideia de favoritismo em relação ao primogénito, ao mais velho, ao que nasceu primeiro, porque é, à partida, a criança que foi mais desejada ou, então, em relação ao filho mais novo, o mais pequeno da família, que à partida nunca vai crescer, que é sempre o bebé e que tem uma necessidade constante de proteção. Existe um conjunto de características que pode levar a esse favoritismo. Agora, do favoritismo à admissão vai uma grande diferença.
Assumindo ou não assumindo, ter um filho preferido é uma coisa má?
Vou-lhe dar a minha opinião pessoal. Eu acho que não. Em termos profissionais, em relação ao que diz a psicologia, também não acho que seja uma coisa má ter um filho preferido. Em todas as relações existe sempre alguém que preferimos. Não é por acaso que casamos com alguém. Também é tabu perguntar ou responder à questão “gosta mais do pai ou da mãe?” ou “gosta mais do avô ou da avó?” — não será de estranhar se alguém responder que se identifica mais com o pai ou com a mãe, ou com um irmão. Portanto, não vou dizer que seja uma coisa má ter um filho preferido. Mas se um pai tem um tratamento desigual perante os filhos aí, sim, pode ser problemático.
Preferir significa que se ama mais um do que o outro? Ou não podemos pôr os conceitos de favoritismo e amor no mesmo barco?
Eu acredito que não se deve colocá-los no mesmo barco. Se se colocar o favoritismo e o amor no mesmo prato da balança, provalmente vamos estar a prejudicar o desenvolvimento de todos os nossos filhos, seja aquele que consideramos ser o favorito ou o preterido. Agora, podem existir pais que, efetivamente, confundam favoritismo com amor.
Até que ponto é que o favoritismo, sendo real ou apenas uma perceção, pode afetar a criança preferida e a preterida?
O que está em causa é todo um desenvolvimento de personalidade. Quando há uma maior identificação com um filho é colocada sobre ele uma pressão enorme. Assim, vamos estar a transformá-lo num adulto triste e num perfecionista porque, de cada vez que chega a casa com uma nova conquista que não é a que esperávamos, vamos estar a dizer que falhou e que queremos mais dele. Isto, ao longo do tempo, vai levar a uma sensação de fracasso constante, seja na vida profissional, pessoal e até relacional. Vai fazer com que essa pessoa, além da questão do perfecionismo, queira atingir metas mais altas para as quais pode não ter a capacidade.
Estamos a falar das metas dos filhos ou dos pais?
Muitas das vezes essas crianças acabam por nem escolher o curso que querem, mas sim aquele que vai fazer os pais felizes, o que vai de encontro às suas expetativas. A interferência pode acontecer noutras situações mais melindrosas, como numa relação íntima. Isto é, o facto do pai e/ou da mãe acharem que aquela não é a pessoa ideal para a filha pode mesmo influenciar a relação.
As crianças apercebem-se desde cedo desta realidade, assim que começam a perceber o mundo (aos 1/2 anos). A partir do momento em que começam a perceber a desigualdade de afectos, das duas uma: ou vão procurá-la noutro lado, num modelo com o qual se possam identificar, seja um adulto ou um amigo; ou então começam a desenvolver sentimentos de inferioridade, de baixa autoestima, stress, ansiedade e depressão. Se não houver um diálogo, um esclarecimento da parte dos pais, começam a surgir um sem-número de problemas.
Como é que uma criança se apercebe tão cedo de uma eventual desigualdade?
Às vezes basta dar um beijo a um filho e não ao outro. As crianças começam a pensar desde cedo “porque é que ele tem [uma roupa nova ou um presente] e eu não?”. À medida que vamos crescendo vamos ampliando horizontes e outras situações acontecem, como pedir uma opinião a um filho mais velho e ignorar a do mais novo. São pequenas situações que podem levar a essa falsa perceção e que os pais, muitas vezes, não notam. São gestos inconscientes e que podem existir em qualquer contexto.
Então, na cabeça das crianças o favoritismo existe? Se sim, quais as consequências na relação entre irmãos?
Sim. Acho que é muito fácil para uma criança dizer esta frase: “Eu acho que a minha mãe gosta mais do meu irmão do que de mim”. Se houver esta perceção por parte dos irmãos, a própria relação fraterna vai sofrer alterações, como é óbvio. Normalmente esperamos que os irmãos se deem bem entre si, que sejam sempre o braço direito um do outro. Se houver a perceção de um filho preferido isso não vai acontecer, as relações fraternas vão tornar-se extremamente conflituosas e pode haver uma ruptura total na relação. Não é por acaso que existem disputas entre irmãos.
Como é que se pode inverter essa tendência?
Com uma coisa tão simples como conversar. Acho que o diálogo é a chave da solução do favoritismo. Para os pais é muito difícil conversar com os filhos, além de ser preciso tempo para tal. É preciso tempo de qualidade, o sentar-se com as crianças e dar-lhes 100% de atenção, dar-lhes a possibilidade de falarem, de exprimirem os seus sentimentos. Não digo fazer isto só com a criança que se sente preterida, mas também com a outra, a preferida. Ter uma conversa simples, franca, de acordo com a idade das crianças. Note-se que com as crianças, principalmente as mais pequenas, uma só conversa não chega.
Qual o motivo desta dificuldade de interação? Existem momentos em que os pais não se conseguem colocar na cabeça dos filhos e, por isso, não conseguem comunicar?
Os pais nunca se conseguem colocar na cabeça dos filhos, por mais que eles digam que conseguem. Quantas vezes já ouvimos a frase: “Temos um dedo que adivinha”? Não, a mãe não tem um dedo que adivinha e o pai não sabe o que vai na cabeça do filho. Mãe e pai não sabem por uma razão muito simples: a geração é outra. Se reparar, talvez não seja fácil para os pais falarem de sentimento entre eles, quanto mais com uma geração acima. É difícil falar de sentimentos. Ou porque nós não os conseguimos exprimir corretamente ou, então, porque ainda é um tema constrangedor — ainda há bem pouco tempo mostrar uma emoção era um sinal de fraqueza.
No livro escreve que as práticas educativas parentais são influenciadas por diferentes componentes, como o sexo e a ordem de nascimento. Como assim?
O sexo tem que ver com termos históricos. As mães normalmente preferem as filhas e os pais preferem os filhos (porque é com eles que podem praticar as atividades). Por outro lado, também há o complexo de Édipo e de Electra, ou seja, as crianças, num determinado momento do seu desenvolvimento, “gostam” mais do pai ou da mãe e é nessa altura que o pai ou a mãe começam a identificar-se mais com uma ou outra.
Em relação à ordem de nascença, se tivermos uma família em que existe uma criança do meio, o que vai sendo referido ao longo da literatura é que, normalmente, o preferido será o mais velho, pelos motivos que apontei, ou o mais novo, porque é o mais pequenino. O irmão do meio [o irmão sanduíche, tal como as autoras referem no livro] está sempre a mais nesta relação. Ou seja, ou é o filho mais velho ou mais novo que é o centro das atenções, e o irmão do meio está ali naquela situação de indefinição, não sabe bem o que é que acontece.
Na sua opinião, enquanto profissional, qual é o impacto da cultura na educação parental?
Seria ingénua se respondesse que a cultura, principalmente a cultura portuguesa, não tem uma grande influência na educação das crianças — sobretudo quando falamos de género. Também seria ingenuidade dizer, mesmo estando em pleno século XXI, que existe igualdade de direitos. Isto significa que, muitas vezes, o facto de um pai ter um filho ou uma filha ainda é diferente. Os próprios pais ainda tratam os rapazes e as raparigas de forma diferente. Dou-lhe um exemplo muito simples: se calhar um rapaz pode sair à noite desde os 12 anos, não é de estranhar e ninguém condena esta saída, enquanto uma rapariga poderá ter problemas em sair com 16 ou 17 anos. Talvez os pais tenham receio de ser julgados pela sociedade, caso a deixem sair mais cedo. Ainda há preconceito e ainda há diferenças entre as gerações, principalmente na forma como elas veem o sexo.
Nesse caso, que tipo de consequências podem existir no desenvolvimento de uma criança do sexo feminino?
Normalmente, esta questão é influenciada pela sociedade, mas não vou dizer que não haja pais que também pensem dessa forma — às vezes, a sociedade acaba por enfatizar a forma como eles pensam. O facto de a filha só poder sair mais tarde demonstra um sentimento de desconfiança. É quase como dizer “Só o facto de seres rapariga já te torna irresponsável. Não te consegues comportar como o teu irmão”. Além disso — de a rapariga ir crescendo com a sensação de que os pais não confiam nela — há a questão da tal “democracia”, da igualdade de direitos. Hoje em dia, muitas raparigas questionam os pais a propósito disso e já conseguem dizer “mas não me interessa o que os outros pensam”. As filhas desafiam a autoridade dos pais, pelo menos é isso o que eles pensam. Mas não é desafiar, é querer perceber o porquê.
Em que é que essa falta de confiança se pode traduzir a longo prazo?
Muitas vezes traduz-se em insegurança, o que significa que se eu quiser estabelecer uma relação mais íntima vou sentir-me sempre insegura na relação ou, então, vou ter a perceção de que a pessoa com quem estou não confia em mim — “Se os meus pais não confiaram em mim até agora é porque eu não sou digna de confiança”. Isto são tudo pensamentos que vão surgindo e que vão marcando a nossa identidade e o desenvolvimento da nossa personalidade. A falta de confiança transpõem-se para tudo, incluindo a vida profissional.
Assim sendo, quão importante é a base parental para a construção de uma identidade? A interação dos pais influencia a criança desde o primeiro dia?
Não é desde o primeiro dia, mas desde o momento da conceção. Assim que um pai e uma mãe concebem um filho, aqueles primeiros nove meses de gravidez já vão influenciar a criança. Não é por acaso que, se uma mãe se sentir ansiosa durante a gravidez, a criança será, muito provavelmente, mais ansiosa e agitada. A partir do momento em que eles nascem, a interação vai moldá-los enquanto pessoas. Não nos podemos esquecer que nós, pais, somos os primeiros modelos que as crianças têm para se desenvolverem. Além de sermos as figuras de afeto, somos as pessoas que passamos mais tempo com elas. Nós aprendemos por imitação: tudo o que vemos, fazemos. Sim, estamos constantemente a influenciar o desenvolvimentos dos nossos filhos e da sua personalidade.
Essa influência tem alguma data limite? Algum prazo de validade?
Essa influência continua até ao dia em que o filho morre. Não vou dizer os pais, vou dizer o próprio filho. Mesmo depois dos pais partirem, vão sempre haver memórias. Os filhos vão lembrar-se sempre “o meu pai dizia que…”, “a minha mãe fazia assim”. Enquanto eu existir na condição de filho, os meus pais vão influenciar-me.