Regras são regras. Para votar, cada cidadão tem de levar o seu cartão de identificação e tem de apresentar o seu número de eleitor aos elementos da mesa de voto. É assim, de norte a sul do país, de este a o oeste. Por isso, o stand de automóveis da marca Seat da Rua Camilo Castelo Branco, em Lisboa, convertido neste 4 de outubro em mesa de assembleia, não é exceção. Regras são regras, pois. Por isso, o nome do homem que tem mais de vinte objetivas apontadas é lido em voz alta entre os membros da mesa. Enquanto isso, ele sorri de forma constante, vestido num fato preto e reluzente, com uma camisa branca e uma gravata azul.
“José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa”, lê então uma das senhoras da assembleia de voto, que mal se deixou ouvir por entre o som frenético dos disparos das máquinas fotográficas. O cidadão em questão aceita o boletim de voto que lhe é entregue e, sempre a sorrir, dirige-se até à mesa de voto. Há quem ria do facto de, graças às regras, se ter de dizer o nome completo de uma das pessoas mais mediáticas do país: José Sócrates, antigo primeiro-ministro socialista e o primeiro ex-chefe de governo a ser preso preventivamente. E, como tudo isto é uma novidade, é também o primeiro a votar nestas condições, que agora são de prisão domiciliária.
“Não podem filmar a cabine de voto!”, gritou a mulher que ainda há pouco estendeu o boletim a José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa. Os jornalistas não fizeram caso e continuaram a fotografar o momento — tapado da vista de todos, como ditam as regras, só se via as pernas e os sapatos pretos engraxados do ex-primeiro-ministro. E há muito tempo que não o víamos assim — de fato e gravata, numa pose de Estado. Quando a maioria das figuras nacionais até opta neste dia por algo mais informal.
Por fim, José Sócrates sai da cabine de voto, onde não se demorou por muito tempo, e deposita o seu voto na urna. O ex-primeiro-ministro já é da casa: quando ainda liderava o governo entre 2005 e 2011, já era aqui que votava. Por isso, antes de sair, despede-se com beijos na cara de duas das mulheres que presidem à mesa de voto. Tratam-se pelo nome e trocam sorrisos, como só se faz com quem se partilha um passado.
Por fim, Sócrates avança para a saída. Não sem antes ser abordado por outras duas mulheres, ambas para lá dos 60 anos, que também fazem questão de beijá-lo. “É uma honra”, diz uma delas, que o contempla de forma emocionada, segurando-lhe no braço. Só larga a mão do ex-primeiro-ministro quando este segue definitivamente para a porta do stand.
Foi para lá que se mudaram as objetivas, tanto das câmeras de televisão como das fotográficas. Os disparos são tantos e tão frenéticos que chegam a parecer uma salva de palmas. Antes de José Sócrates começar a falar, um reformado, também ele de fato e gravata, grita para o ar: “Deus é grande e o senhor também!”. O senhor, isto é, José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa.
O tempo de Sócrates
Aos jornalistas, Sócrates falou de tempo. O tempo de hoje e o seu, o tempo do país e o tempo das decisões importantes. E já que o tempo é aqui assunto, um dado interessante: ao mesmo tempo que o ex-primeiro-ministro falava aos jornalistas, Cavaco Silva falava a outros tantos repórteres depois de depositar o seu voto numa escola da Lapa, em Lisboa. Eis as palavras de Sócrates:
“Há um tempo para tudo. Eu tenho tempo, porque há muito aprendi a ter confiança e a esperar. Este é um tempo e um dia em que o país toma decisões importantes e por isso é importante respeitar este tempo. Terei o meu tempo para responder às vossas perguntas e terei o meu tempo para falar.”
E também falou do seu voto, sobre o qual tanto se especulou nos últimos dias. “Exerci esse direito de voto, como se faz numa democracia. Sem nenhuma espécie de autorização e sem custódia. Foi portanto um exercício livre.”
Já sem palavras, prometendo falar “depois das eleições”, Sócrates voltou para o carro que momentos antes o deixara na assembleia de voto da Rua Camilo Castelo Branco. Atrás dele vai o bando de jornalistas, que, entre a tentativa de apanhar a melhor imagem ou melhor som, e conciliando isso com o respeito pelos camaradas de profissão, fazem os possíveis para avançar em torno dele. No meio de tanta azáfama, alguém dá um encontrão no microfone da SIC, do qual salta a esponja vermelha que identifica a estação. Nisto, o homem que ainda há pouco comparou Sócrates a Deus (“Deus é grande e o senhor também!”), dobra-se para o chão lá apanha a bola-de-vento da estação de Carnaxide, entregando-a quem de direito.
Pouco depois, o carro de Sócrates partia em direção ao número 33 da Rua Abade Faria em Lisboa, onde permanece em prisão domiciliária. No carro, tal como veio, volta acompanhado. Pelo assessor de imprensa e pelo atual marido da ex-mulher, Sofia Fava. A polícia, essa, foi discreta. Fez vigilância à distância, na zona do Marquês e na da Alameda.
“Deus é Deus, pronto, mas Sócrates também é enorme”
Tal como o cidadão que ainda agora votou, também este tem nome. Trata-se de Joaquim Francisco, antigo administrativo do Ministério da Agricultura reformado. E uma série de outras coisas: antigo militante e atual simpatizante do Partido Socialista; ex-vogal da Junta de Freguesia do Coração de Jesus e membro da primeira assembleia de voto daquela freguesia em democracia, nas eleições de 25 de abril de 1975.
“Pronto, se calhar excedi-me um pouco, Deus é Deus, pronto, mas posso dizer que o José Sócrates também é enorme”, diz agora, mais a frio, em relação ao que disse a bom ouvir segundos antes do ex-primeiro-ministro falar com os jornalistas. Mas foi uma coisa que lhe veio do coração, que sentiu necessidade de dizer. “Eu tenho ouvido e visto muita treta em relação a este senhor que estava aqui!”
Joaquim Francisco, garante, não estava a contar com isto. “Eu vim cá para votar e reparei que estavam cá estes jornalistas todos. Mas eu já cá voto há muito tempo. Venho cá, venho cá sempre. Calhou. E o senhor estava aqui.” O senhor, isto é, José Sócrates. Encontrá-lo foi, pois, uma feliz coincidência. Que, admite, o deixou feliz. Mas no momento de falar sobre o caso que envolve Sócrates — que é suspeito de corrupção passiva, branqueamento de capitais e fraude fiscal — é a indignação que se lhe ouve na voz.
“Eu não sou fanático nem nada. Só sou fanático por uma coisa: pela honestidade e pela justiça. Eh, pá, que venha alguém que me está aqui a ouvir dizer afinal quais foram os crimes que o senhor Sócrates cometeu. Eu não estou a dizer que este homem é completamente inocente. Mas é um político. E está preso, por isso para mim é um preso político. Porque simplesmente, até hoje, não houve ninguém que me dissesse quais foram os crimes que o homem cometeu. Nem um! Estou farto de perguntar e ninguém me responde!”
“Prendam-me: eu cá voto no PS”
Este cidadão garante que está “à vontade para falar”. Até porque, apesar de em tempos ter sido militante do PS, já não o é há alguns anos. Não sabe quantos ao certo e diz apenas que se fartou. Razão pela qual também deixou de ser vogal pelo PS na Junta de Freguesia do Coração de Jesus. E se é verdade sempre votou nos socialistas para as legislativas, o mesmo já não se pode dizer das autárquicas. “Nas últimas autárquicas sabe o que é que votei? Peguei na caneta, pus lá mais um quadradinho, pus uma cruzinha e depois atrás escrevi ‘Papa Francisco’.” Fê-lo por admiração a Jorge Mario Bergoglio, é verdade, mas também por discordar do rumo que os socialistas queriam dar à sua freguesia.
Mas, da mesma maneira que regras são regras, legislativas são legislativas. Por isso, o voto de Joaquim Francisco voltará a cair para o mesmo lado — está só à espera que a sua mulher chegue à Rua Camilo Castelo Branco para se lançar à urna. “Eu até não ia dizer em quem vou votar, mas agora já não me calam. Prendam-me, façam aquilo que quiserem. Prenda-me: eu cá voto no PS.”
E, pela sua ideia, muitos mais lhe seguirão o exemplo. “A partir de amanhã já vai melhorar tudo. Agora aqueles tipos vão ter de aguentar com a esquerda. A esquerda é que vai mandar agora, não vão ser eles que vão ficar com a maioria.”