“A França é excecional, mas nós somos muito melhores, nós somos os melhores”, disse o Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa, na manhã deste sábado, durante uma cerimónia em Champigny, nos arredores de Paris, no local onde existia um bidonville nos anos 60. Sentado a seu lado, António Costa não conseguia disfarçar o riso. As várias centenas de emigrantes presentes aplaudiram com fervor. Os franceses aplaudiram com sorrisos. Marcelo disse que parecia “óbvio”, mas não era. Pois não era nada óbvio. “Com o devido respeito pelas autoridades francesas, com quem partilho visões contra a xenofobia e o populismo, e sendo a França um país fundamental…”, justificou-se primeiro. E depois disse aquela frase, em território francês. Mais um rombo nas regras protocolares. Não é suposto um Presidente ir a um país dizer que o seu é o melhor, mas a Marcelo tudo se permite.
Era o segundo dia do presidente e do primeiro-ministro em França no âmbito das comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas. Ali, em Champigny, preparavam-se para inaugurar um monumento aos portugueses do bairro de lata, o bidonville, e condecorar seis personalidades portuguesas e francesas. Aos 90 anos, o fotógrafo Gérald Bloncourt foi um deles. Nos anos 60, fotografou o bidonville que ali existia e tornou visível a miséria e as condições sub-humanas em que viviam os emigrantes portugueses.
O fotógrafo conta ao Observador como foi o seu primeiro contacto com Portugal: “Quando eu era miúdo lia muito. E nos livros da minha mãe conheci os grandes descobridores, Vasco da Gama, Henrique o Navegador, ou Fernão de Magalhães e apaixonei-me por esses homens, que eram grandes aventureiros, porque descobriram o mundo.” Gostava de conhecer Portugal um dia. E conheceu. Se não Portugal, os portugueses que trabalhavam nas obras da Torre de Montparnasse, em Paris, quando como fotojornalista cobria o mundo do trabalho para jornais de esquerda como o “L’Humanité” e “La Vie Ouvriére”. Fez contacto com os emigrantes portugueses que estavam naquelas obras e pediu-lhes para ver as suas casas. “Viviam nas bidonvilles”, diz Bloncourt ao Observador. “A primeira bidonville que visitei foi esta, de Champigny.” Era onde se concentravam muitos emigrantes que atravessavam a fronteira a salto, que caminhavam até Paris e onde viviam clandestinos e sem papéis, mas também sem condições mínimas, muitos sem água ou luz.
“Comecei a fazer as fotos e pensei que era preciso ser solidário, porque eu também sou um emigrante”. Gérald Bloncourt nasceu no Haiti. “Era preciso denunciar e dar a conhecer o acolhimento intolerável aos portugueses que era feito nas bidonvilles”. Fotografou-os nas obras e nas fábricas. Trabalhou sobre o tema vários anos. Passou os Pirinéus a pé com clandestinos portugueses. Viajou pelo Portugal salazarista. Regressou a Portugal para fotografar o 25 de abril.
“Sou um transmissor de memórias”, assume ao Observador. “É importante as novas gerações descobrirem estas imagens, porque não conheceram esta realidade”. Recentemente, quando fez uma exposição em Portugal, foi abordado por uma mulher. Era uma menina de oito anos que ele tinha fotografado 45 anos antes, com uma boneca na mão, a viver na miséria em Champigny. Era a protagonista do cartaz que anunciava a exposição. “Estudou na Universidade de Coimbra e hoje é professora”, recorda Bloncourt.
O “hiper-otimismo” de Costa e um mergulho nos manifestantes do BES
Com a filosofia de puxar por Portugal subjacente a toda a sua visita — uma atitude, aliás, que vem da campanha eleitoral — Marcelo Rebelo de Sousa assumiu-se mais uma vez como “otimista”. Não deixou de fazer a graça de dizer que António Costa era “hiper-otimista”, assim como ele próprio era “hiperativo”.
Nos discursos que antecederam a inauguração de um monumento aos portugueses que viveram no bidonville, Marcelo e Costa recordaram a “odisseia” da emigração dos anos sessenta e setenta. O Presidente e o primeiro-ministro falaram debaixo de uma chuva miúda, que caía incessantemente, enquanto centenas de emigrantes assistiam à cerimónia e dezenas de lesados do BES se manifestavam com cartazes e palavras de ordem. Uma mulher ostentava uma folha impressa com esta frase: “Marcelo é fixe. BES é mau”. António Costa referiu-se ao caso dos lesados no meio do seu discurso:
Não compete ao Governo e ao Presidente substituírem-se à Justiça. Mas sei que o Presidente da República acompanha o Governo na preocupação de criar mecanismos de diálogo, de negociação e de arbitragem que permitam a todos os que foram lesados verem os seus direitos tão satisfeitos quanto possível num quadro de um banco que faliu, mas que antes de ter falido enganou milhares daqueles que, com todo o suor da sua vida, tinham amealhado algumas poupanças”
O primeiro-ministro foi aplaudido pelos lesados: “Obrigado, António! Isso é que é falar”, gritava um dos manifestantes. Marcelo Rebelo de Sousa também deu um sinal aos emigrantes que perderam as suas economias:
Estaremos atentos aos problemas financeiros e económicos daqueles que apostaram em instituições financeiras portuguesas e que vivem hoje problemas que são graves, de poupanças que de repente desapareceram, de angústia e de preocupação relativamente ao futuro.
Quase no final da cerimónia, Marcelo Rebelo de Sousa fez um “mergulho” inesperado através da multidão, em direção aos lesados do BES, arrastando consigo António Costa e até o ministro da Defesa Azeredo Lopes, para desespero da segurança francesa. “O meu pai e o meu sogro vieram aqui para as barracas. Depois trabalharam toda a vida e agora perderam um milhão de euros no BES”, diz Filomena André, de 50 anos ao Observador. “Não temos nada. Fomos enganados. O gerente disse-nos que tínhamos o capital garantido”. Não era verdade. Esta lusodescendente, que trabalha numa empresa de águas, explica que ainda tem uma fonte de rendimento, mas os reformados ficaram em situações complicadas. Agora esperam também ser abrangidos pelos acordos que têm sido assinados com alguns lesados, mas não lhes agrada a ideia de o seu dinheiro ser convertido em obrigações com o prazo de 2050. “Há pessoas com 70 anos”, diz Filomena. “De que serve?’
Como os emigrantes votavam “com os pés”
Agostinho Trezentos, 63 anos, natural de uma freguesia de Vila Nova de Ourém, foi viver para o bidonville com três anos de idade e só saiu de lá dez anos depois. Mas era “um privilegiado”, porque vivia numa casa de tijolo com “três quartos e casa de banho”. Fez a escola primária. Não se sentiu discriminado pelos franceses.
Nessa época, porém, os portugueses que “votavam com os pés” — expressão usada por Marcelo Rebelo de Sousa no seu discurso para se referir aos emigrantes que fugiam do país a salto, votando assim contra o regime — não eram recebidos de braços abertos pelos franceses. Louis Talamoni, então presidente da câmara de Champigny e condecorado este sábado a título póstumo, ajudou a comunidade portuguesa com a oposição da maioria da população local.
“Esta realidade não existia para a ditadura portuguesa, mas existia para a democracia francesa”, disse o Presidente da República. “Um em cada dez portugueses partiram” das suas casas”, mais homens do que mulheres, mais os pobres do que a pequena classe média”. E recordou como descobriu essa realidade na pós-adolescência: “Eu era um privilegiado. Quando vínhamos a Paris comprar livros, encontrávamos patriotas a construir uma vida com a França e os franceses”, enquanto a ditadura os ignorava e aproveitava as remessas dos emigrantes para “equilibrar as contas públicas”. Depois, com a democracia, Marcelo lembrou que a relação com as comunidades portuguesas melhorou, mas fez questão de referir como foi “uma guerra enorme conseguir o direito de voto em algumas eleições em Portugal”. Marcelo não o disse, mas estava a referir-se ao direito de voto conferido aos emigrantes para o Presidente da República, que só foi alcançado depois da revisão constitucional que ele próprio negociou com o PS de António Guterres. O voto da emigração para o PR era uma bandeira do PSD à qual o PS se opunha, mas esse detalhe Rebelo de Sousa omitiu.
O Presidente da República e o primeiro-ministro inaugurariam, depois, o monumento aos portugueses: sete livros em mármore, empilhados, que representam as histórias dos emigrantes em França. Enquanto se deslocava no meio da multidão, entre selfies, abraços e mais afagos, ia recebendo presentes: camisolas de clubes locais, livros ou medalhas.
O início da manhã tinha sido marcada por outra inauguração: uma rotunda em Creteil, nos arredores de Paris, batizada com o nome de Armando Lopes, anunciado como o único português “vivo” com o nome numa rua. O próprio visado diria aos jornalistas que levou “quatro anos” até as autoridades francesas aprovarem a designação toponímica e recordava a companhia, ali, no mesmo bairro, de ruas com o nome de Vasco da Gama ou Fernão de Magalhães. Armando Lopes é um emigrante e empresário que construiu um império ao longo das últimas décadas: é o dono da Rádio Alfa — cuja festa vai realizar-se no domingo –, possui várias empresas ligadas à construção civil, de betão e de transportes, e ainda detém um clube de futebol, os Lusitanos de Creteil.
Armando Lopes, que esteve em Lisboa, na Faculdade de Direito, na noite em que Marcelo Rebelo de Sousa foi eleito Presidente da República, refere que o Presidente é “um amigo de 25 anos”. E recorda-se que foi das primeiras pessoas a telefonar-lhe quando teve um acidente que o deixou parado ao longo de meses.
Depois de uma manhã em eventos populares, Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa almoçaram na embaixada de Portugal com emigrantes e lusodescendentes que se distinguiram nas áreas da cultura e da ciência. Por exemplo, esteve presente Ruben Alves, o realizador do filme A Gaiola Dourada, assim como o produtor e realizador Cristophe Fonseca, que fez recentemente o documentário “Amadeu de Souza Cardoso: o último segredo da arte moderna”. Ou o arquiteto Didier Fiúza Faustino entre outros jovens que se têm destacado.
À tarde, o Presidente deslocou-se ao cemitério de Richebourg e ao Monumento ao Soldado Português em La Couture (a cerca de 300 quilómetros de Paris) para homenagear os soldados mortos na I Grande Guerra. Aliás, o contributo dos portugueses no conflito tinha sido referido pelo Presidente francês François Hollande no dia anterior.
Com o campeonato europeu de futebol a decorrer, Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa também se deslocam ao centro de treinos onde a seleção portuguesa está alojada para um “jantar ligeiro”. No domingo, Presidente e primeiro-ministro visitam a delegação da Gulbenkian em Paris, participam na festa da Rádio Alfa, e vão à exposição de Amadeo de Souza Cardoso patente ao público no Grand-Palais, na capital francesa.