Catarina Martins vestiu um fato pouco habitual. Falou como se fosse a voz do poder. Não o assumiu, mas parecia elencar medidas como uma primeira-ministra. No arranque da X Convenção do Bloco de Esquerda, a coordenadora do partido olhou pelo retrovisor e lembrou as conquistas que foram feitas em matéria de recuperação de rendimentos e direitos sociais desde que, no dia 14 de setembro, num debate televisivo: conforme fez questão de lembrar, desafiou António Costa a “abrir a porta a uma mudança na política portuguesa”. Falou como se as decisões tivessem sido tomadas pelo Bloco de Esquerda e não de uma aliança com o PS e o PCP. Nove meses depois, Catarina olha para a frente, diz que “cumpriu a palavra”, e até anuncia medidas: a aprovação da lei da renda apoiada e o fim das apresentações quinzenais periódicas nos centros de emprego.

Num discurso de 25 minutos, usou um tom que nunca se lhe tinha ouvido. Puxou dos galões e enumerou as conquistas dos últimos meses: o aumento do salário mínimo nacional – “e ainda vamos continuar a aumentar” -, o fim do congelamento das pensões, a reposição das prestações sociais cortadas e outras reforçadas, a proteção das habitações contra as execuções das finanças, as reversões das concessões dos transportes públicos, a reposição dos feriados, a defesa da escola pública na guerra do fim dos contratos de associação, etc. “Cumprimos a nossa palavra, e isto é só o início”, disse.

Numa altura em que os partidos que apoiam o Governo começam as negociações para preparar mais um Orçamento do Estado, não é só o Governo ou o PS que anunciam medidas. Também Catarina Martins usou o palco da convenção do BE para avançar que “já há acordo para ser aprovada no Parlamento a lei da renda apoiada que baixa as rendas e protege o direito à habitação”. Mais: “Já há acordo e vamos também acabar com a humilhação das apresentações quinzenais ao centro de emprego”. A rematar, a coordenadora bloquista lembrou ainda que já em julho vai entrar em vigor o automatismo da atribuição da tarifa social da luz e gás, aquela que classificou como uma das medidas de “maior impacto social dos últimos tempos”.

Se foi fácil conseguir esta mudança, Catarina diz que não foi. Mas que é essa a missão do novo Bloco de Esquerda enquanto partido que faz parte do novo arco da governação. “Há momentos em que é necessário a coragem para começar de novo porque algo tem de ser feito, este é um desses momentos“, disse, admitindo no entanto que “agora é que começam as coisas mais difíceis”.

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Um partido reforçado, mas que ainda não é poder. E a prova de fogo da autárquicas

Se dúvidas houvesse que Catarina Martins estava ali para fazer prova de vida, a coordenadora do partido fez questão de desfazê-las na sua primeira intervenção. Em 2014, na última Convenção do partido, o Bloco estava a fragmentar-se, numa luta fratricida pelo poder que acabou num impasse. A coordenação bicéfala deu lugar a uma comissão permanente de seis. Era o desastre anunciado. Dois anos depois, na X Convenção do partido, Catarina Martins fez questão de lembrar, mais uma vez, que as notícias sobre a morte do partido eram manifestamente exageradas.

Por isso mesmo, e falando para os militantes, colocou o Bloco de Esquerda no centro de todas as conquistas alcançadas pela “geringonça”. O Bloco, insistiu Catarina Martins, é o maior responsável pelo “combate aos recibos verdes e ao falso trabalho temporário”, pela “defesa da escola pública”, pela “preservação quotidiana do Serviço Nacional de Saúde”, pelo “fim dos cortes inconstitucionais” e pelo caminho percorrido na defesa dos direitos trabalhadores. E só com o crescimento do Bloco de Esquerda foi “possível tirar a direita do poder e forçar o PS a um acordo”.

Se os últimos meses provaram que só um BE reforçado garante um país governado à esquerda, então é altura de dar mais força ao partido, foi pedindo Catarina Martins. A ambição é ser poder e ser Governo, não escondeu. “O Bloco teve 10% nas eleições. Determinámos a maioria, mas não temos ainda a força para fazer o Governo“, e “falta muito, falta mesmo o mais difícil”, mas o partido irá continuar a sua intervenção na defesa do emprego e dos pensionistas.

Chegados a este ponto, Catarina Martins colocou a pressão do lado de António Costa e do Governo socialista. “Tivesse o Bloco tido mais força e o Banif não tinha sido entregue ao Santander. Tivesse o Bloco mais força e o governador do Banco de Portugal não continuava a assustar o país com ameaças de colapso bancário umas atrás das outras. Tivesse o Bloco mais força e Portugal não tinha assinado com a Turquia a vergonha do acordo anti-humanitário que é o contrário do que a Europa tinha que fazer”, disse.

Não se falou apenas de legislativas, mas também de autárquicas, as eleições que se seguem. Sobre este tema, que é o elo mais fraco do Bloco, Catarina Martins não hesitou em dizer que serão a “prova fundamental” da “responsabilidade que cresce” no partido. “Encontramo-nos nas lutas por um país pensado para as pessoas, desenhado para a inclusão, projetado para os desafios do futuro. Dentro de ano e meio, as eleições autárquicas serão uma prova fundamental para dar força a essa experiência e responsabilidade que cresce”, disse.

Nas últimas eleições autárquicas de 2013, o Bloco de Esquerda perdeu a única presidência de câmara que detinha no país: a de Salvaterra de Magos. Catarina Martins pediu mais e mais para as próximas eleições.