Adolf Hitler nunca escondeu o incómodo que o atleta norte-americana Jesse Owens lhe provocava. “É gente cujos antecedentes são provenientes da selva, são gente primitiva. Os corpos deles são mais fortes que os dos brancos civilizados. Nem sequer deviam poder participar nos Jogos Olímpicos”, dizia ele entre dentes nos bastidores da organização olímpica dos Jogos de Berlim, em 1936. E dizia-o apoiado pela juventude nazi: “Os norte-americanos deviam ter vergonha por deixarem que sejam negros a ganhar as medalhas”, dizia Baldour von Schirach. Mas cá para fora, o discurso era outro. A Alemanha Nazi queria afirmar-se como uma nação pacífica feita de homens que buscavam a serenidade e a união através do desporto. A Alemanha Nazi queria ser tão respeitada como havia sido a Grécia Antiga, berço dos Jogos Olímpicos. E aquele ano seria o ideal para que as vozes nazis se impusessem, embora disfarçadas.
Em 1936, os Jogos Olímpicos na Alemanha seriam os últimos antes de uma interrupção de doze anos e os últimos a que Pierre de Coubertin, fundador dos Jogos Olímpicos Modernos, assistiu. A cidade de Berlim tinha sido escolhida para ser o palco do maior evento desportivo do mundo ainda antes de Adolf Hitler se tornar Fuhrer da Alemanha. Em 1931, o que existia era a República de Weimar (a república estabelecida na Alemanha após a Primeira Guerra Mundial, em 1919, e que durou até ao início do regime nazi, em 1933) e o Comité Olímpico tinha a cidade de Barcelona debaixo de olho como anfitriã dos Jogos. Mas a proclamação da II República Espanhola afugentou o Comité Olímpica. E Berlim foi então eleita cidade organizadora.
Era uma forma de o Comité fazer as pazes com uma cidade que tinha sido escolhida para acolher os Jogos Olímpicos de 1916, antes de os planos serem cancelados por causa da I Guerra Mundial. Ora, esta era a oportunidade de que Hitler precisava: as campanhas de propaganda e de marketing foram o cerne do sucesso nazi ao longo de vários anos. Hitler haveria de usar os Jogos Olímpicos a seu favor de um modo que, olhando a uma distância de oitenta anos, parece tão assustador como genial. Porque os próprios símbolos olímpicos, que ficaram na História desde os Jogos da Antiguidade, puderam confundir-se com os símbolos nazis.
É o caso da saudação olímpica e da própria tocha. Foi ideia de Adolf Hitler que a tocha olímpica fosse acesa pelos raios do Sol em Olímpia e que daí viajasse na mãos de vários atletas até à cidade organizadora do evento. Quando o último entrou no Estádio Olímpico de Berlim, que não tinha uma única cadeira vazia naquele 1 de agosto de 1936, todos os presentes (até mesmo o rei italiano, Humberto II, e o presidente do Comité Olímpico da altura, Henry de Baillety-Latour) estavam levantados, braço direito levantado e a apontar para cima com os dedos da mão juntos e a palma virada para baixo. Era a saudação olímpica, em tudo semelhante à saudação romana que os militares usavam em sinal de cortesia. E era também uma saudação parecida à nazi.
Quando Adolf Hitler iniciou oficialmente os Jogos Olímpicos de 1936, gritou-se “Heil Hitler!” e começaram os desfiles das delegações participantes. Naquele verão estavam 3.963 atletas na Alemanha, vindos de quarenta e nove países diferentes para competirem em dezanove modalidades. Mas na cerimónia de abertura, a sua presença foi algo ofuscada pelo desfile dos soldados alemães, alguns já fardados com o traje da Schutzstaffel (SS), a polícia paramilitar alemã extremamente fiel às ordens do Fuhrer e que era composta por um milhão de homens. Nem britânicos nem norte-americanos cumprimentaram Hitler durante o desfile. As políticas nazis, embora ainda desvalorizadas em muitos locais do mundo, já tinham feito torcer o nariz de alguns países, sobretudo depois de 1935, quando as Leis de Nuremberga, passaram a permitir a perseguição de judeus na sociedade alemã. Quando os Jogos Olímpicos de Berlim começaram, alemães e judeus já estavam proibidos de casar, por exemplo.
O filme da propaganda nazi
Mas Hitler havia jurado ao mundo que o olimpismo iria prevalecer. Que mesmo os que não pertenciam à “raça pura” podiam ser respeitados nos Jogos Olímpicos. E que a Alemanha era, acima de tudo, um país de tranquilidade. Isto mesmo pode ver-se em “Olympia”, um documentário de três horas feito pela cineasta Leni Riefenstahl que a Alemanha utilizou para passar a mensagem de nação pacata.
A intenção de Leni Riefenstahl não parecia, no entanto, compactuar com os ideais preconceituosos de Hitler, ainda meio camuflados: faltavam três anos para a II Guerra Mundial rebentar. Embora tenha sido uma das cineastas mais procuradas pelo Fuhrer durante a época nazi, Riefenstahl marcou a História do cinema por causa das suas escolhas técnicas: planos contrapicados para enaltecer os atletas, contraluz para lhes dar um toque de mistério, câmara lenta para lhes dar magnificência. E era assim mesmo com os atletas vindos de países inimigos da Alemanha.
Lembra-se de Jesse Owens, o norte-americano que punha os nervos de Hitler em franja? Riefenstahl filmou-o de baixo para cima – uma perspetiva que, semioticamente, eleva o objeto retratado – e com o céu como fundo. Jesse Owens parece um homem alado em “Olympia”. No filme, o comentador não se inibe de lhe chamar “o homem mais rápido do mundo”. E mesmo assim saiu da Alemanha em 1936 com uma das piores classificações no lançamento de disco. Porque o racismo não conseguiu ficar completamente fora do trabalho de Riefenstahl. Basta ver o momento em que, numa corrida dos 800 metros, comenta-se que a competição vai ser feita “entre dois homens negros e o mais rápido dos homens brancos”. Jesse Owens, no entanto, considerou na altura que o racismo vinha do seu país, os EUA: “Foi Franklin Delano Roosevelt quem me desprezou. O Presidente nem sequer me enviou um telegrama”.
Filmar Jesse Owens foi um ato de rebeldia de Leni Riefenstahl, ciente de que estava prestes a criar uma obra de arte que seria recordada no tempo e na História. Porque Jesse foi censurado na televisão. Quando o atleta norte-americano se preparava para correr os 200 metros, Joseph Goebbels (ministro da propaganda nazi) deu ordens para que se desligassem as câmaras. Todas. As da cineasta e as televisivas, porque os Jogos Olímpicos de Berlim foram os primeiros a serem transmitidos para a caixa mágica. Os altos cargos nazis não queriam, porque não era conveniente, que o mundo visse o afroamerican fazer os atletas alemães a comer pó. Leni Riefenstahl fez-se de surda e filmou tudo.
https://www.youtube.com/watch?v=o0kNRIz9910
Mas Hitler adorou o documentário que, em 1955, viria a ser eleito como um dos dez melhores filmes de sempre pelos diretores de Hollywood. E usou-o como propaganda nazi com um orçamento muito generoso. “Olympia” foi então dividida em duas partes. A primeira – “Festival de Nações” – começa com imagens das estátuas e templos da Grécia Antiga metamorfoseando-se em atletas e bailarinos nus em movimento. Depois de mostrar a cerimónia de abertura, Leni Riefenstahl junta os momentos altos dos Jogos Olímpicos em Berlim ao som poderoso dos comentários de Herbert Windt com uma música que lhe dá ritmo. Mas são muitos raros os momentos em que a cineasta dá mais importância ao espírito de competição do que ao próprio desportivismo. E onde entra Hitler? Entra em êxtase quando os alemães ganham, entra incomodado quando os alemães perdem. É uma tentativa de humanizar um líder brutal, garante quem estudou o trabalho de Riefenstahl.
https://www.youtube.com/watch?v=lLnGqMoNXRI
Mas como pode um documentário dizer-se solidário com a causa nazi se as imagens mostram, uma e outra vez, as vitórias norte-americanas e negras? Pode porque, em 1936, Hitler ainda não era visto como um opressor, um ditador ou um fascista. Ele queria ser visto como um homem do mundo. E só cedendo ao equilíbrio que Riefenstahl queria dar ao seu documentário é que esse posicionamento estratégico era possível. Foi tão útil quanto agradável para a cineasta, que procurava uma carreira em Hollywood. Mas nunca a conseguiu: em 1938, acabada de chegar a Nova Iorque, Riefenstahl ouviu falar da Noite dos Cristais e disse não acreditar nas notícias sobre os 30 mil judeus levados pelos alemães para campos de concentração, depois de as suas casas e negócios serem completamente destruídos. E Hollywood fechou-lhe as portas.
Ainda assim, nunca foi acusada de ser apoiante do nazismo de Hitler e de Goebbels, embora muitos entrevistados para a sua biografia afirmem que a relação entre os três era mais próxima do que Riefenstahl gostava de demonstrar. Morreu aos 101 anos, um ano depois de lançar o filme “Impressões das Profundezas”, o único depois de “Olympia”.
Três anos depois dos Jogos Olímpicos em Berlim, a II Guerra Mundial iria abater-se como uma sombra sangrenta no mundo. Os Jogos Olímpicos – símbolo de irmandade através do desporto – só viriam a ser organizados de novo em 1948, em Londres. Nunca mais foram interrompidos desde então.