Título: “Arquitetura Timorense”
Autores: Ruy Cinatti, Leopoldo de Almeida e António de Sousa Mendes
Edição: Museu Nacional de Etnologia e Instituto Camões
Páginas: 335
Preço: 30 €

arquitectura-timorense_artigo Falecido há trinta anos, Ruy Cinatti Vaz Monteiro Gomes está sepultado no cemitério dos Ingleses, à Estrela, em Lisboa, mas em poemas e outras proclamações públicas pediu que os seus restos mortais fossem levados para Timor, ilha à qual dedicou o melhor do seu trabalho científico e da sua exclusiva inspiração poética: Um Cancioneiro para Timor (1968) constitui obra ímpar na literatura colonial e Paisagens Timorenses com Vultos (escrito de 1969 a 1973, saído em Setembro de 1974) pode ser considerado o testamento do escritor, a sua “dádiva retribuída”, após várias passagens por aquela “terra portuguesa” do Índico oriental cuja invasão e holocausto pela vizinha Indonésia ele antecipou diante das orelhas moucas dos assim chamados “responsáveis políticos”.

Se a sua obra poética sobre Timor foi publicada em vida, os seus trabalhos de antropologia cultural dedicados àquela colónia hoje estado soberano mas ainda não verdadeiramente independente — afora alguns avulsos, para revistas científicas ou de divulgação — só foram conhecidos um ano após a sua morte, quando em Outubro de 1987 os seus inesquecíveis colegas do Museu Nacional de Etnologia, onde ficou parte considerável dos seus papéis, lhe prestaram homenagem através de uma exposição e da edição simultânea de dois álbuns, Arquitetura Timorense, agora relançado e melhorado (pronto em 1961), e Motivos Artísticos Timorense e a sua Integração (concluído em 1973). O Cancioneiro, que recebera um prémio literário e logo depois um prefácio de Jorge Dias tão laudatório que parecia garantir-lhe editor imediato, esperou ainda mais para ser publicado (Editorial Presença, 1989), o que só aconteceu, na verdade, devido ao contexto todo singular duma súbita onda de solidariedade portuguesa com a resistência do povo timorense à brutalidade indonésia.

8 fotos

Na surdina que o seu desaparecimento propiciou, a persistência e amplitude da dedicação intelectual — amorosa até, e não é exagero dizê-lo — de Ruy Cinatti à “ilha verde e vermelha” manteve-se legendária, é certo, mas os seus livros de poesia desapareceram das livrarias, o esforço de justa compreensão do seu legado original foi suportado por muitos poucos (e quase só no campo literário ou na memória do seu carisma humano), e a lúcida integração das duas faces do seu trabalho está ainda por cumprir. Se do lado poético, depois dos contributos de Peter Stilwell e de Joaquim Manuel Magalhães, Joana Matos Frias veio introduz novas e poderosas leituras, desde a sua tese de doutoramento (Universidade do Porto, 2006), do lado antropológico as coisas pouco ou nada avançaram, em boa parte devido ao longo, retorcido e mil vezes contestado bloqueio que Joaquim Pais de Brito, director do Museu Nacional de Etnologia de 1995 a 2015, criou ao acesso do espólio cinattiano ali depositado: papéis e fotografias apenas lançados em 48 caixas de cartão barato com um inventário sumário e tardio, que poucos puderam conhecer; e dúzia e meia de horas de filme a cores, de extraordinário interesse e valor mas só acessível a privilegiados protegidos, ou rara, parcial e discretamente exibido.

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Também é verdade que (como sucedeu, de resto, com a arquitectura modernista de Angola e Moçambique, que só na última década atraiu atenções, para enfim se descobrir uma vitalidade desconcertante que desmontou a fábula da inércia e do atraso…) nunca ninguém, desde a descolonização, se interessou a fundo por Timor, a ponto de precisar de consultar os papéis de Ruy Cinatti — como seria absolutamente inevitável — e desse modo forçar, pelo recurso a instâncias superiores se preciso fosse, um museu nacional a prestar o serviço público que lhe compete, em vez de ser a prejudicial e escandalosa “coutada privativa” do seu director, um professor universitário com certa fama de casmurro (e que temos nós todos a ver com isso?!…), e dos alunos, assistentes ou amigos pessoais que ele entendesse acolher ou favorecer.

Por tudo isso, parecerá particularmente irónico ou surpreendente que o hoje aposentado Joaquim Pais de Brito, 71, que como antropólogo nunca escondeu as suas reservas ao trabalho de Cinatti e que como museólogo nada fez nem mandou fazer de consistente pelo estudo do seu legado (inclusive daquela parte do espólio que estava na residência de Ruy, foi depositada na Biblioteca da Universidade Católica de Lisboa mas é indissociável da outra), surja como supervisor desta reedição. Se um motivo houvesse para que escolhê-lo se tornasse uma vantagem, teria de ser, afinal, que ninguém como ele teve durante tanto tempo tanta proximidade e tutela sobre o espólio científico e o património timorense recolhido por Cinatti para o Museu, o que claramente lhe permitiria fazer desta nova edição de Arquitetura Timorense algo melhor do que aquela de 1987.

Obra de referência

De facto, a deficiência da paginação e da resolução gráfica da edição original — ásperas arestas duma época menor — foi agora reconhecida e compensada pelo mais organizador trabalho do designer Luís Miguel Castro e pela redigitalização de fotografias e plantas por parte de Carmen Rosa, uma dedicada colaboradora do Museu, e também houve a oportuna incorporação de 35 “documentos inéditos” (pp. 282-319), alguns dos quais cedidos pela viúva de Leopoldo de Almeida, interessantes sem dúvida mas a que foi dado excessivo protagonismo editorial-gráfico. Mas, uma vez mais, faltou a “ousadia” de recorrer aos filmes de Ruy Cinatti — produzidos, note-se, durante a mesma missão que substancia este livro — para escapar à hoje estafada repetição imagética e pela primeira vez dar cor às paisagens e vultos das distintas regiões do território. Se fosse por aí, o organizador desta edição teria tido em Luís Miguel Castro, notório e ágil colaborador da Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, um aliado qualificadíssimo na colecta e aproveitamento visual desse portfólio de rara beleza, potenciando a qualidade do novo livro.

Cinatti com capote

E mesmo se não quisesse ir tão longe, um relance pelas caixas deste arquivo (e daquele da Católica, já referido — quatro dias bastariam…) teria permitido a Pais de Brito encontrar fotografias inéditas de excelente qualidade, e desse modo exibir e sublinhar um Ruy Cinatti fotógrafo de Timor, faceta que ele claramente assumiu logo em 1948, quando na primeira volta a Lisboa expôs as suas imagens juntamente com extractos do livro de Alberto Osório de Castro A Ilha Verde e Vermelha de Timor, e mais tarde, em 1965, no relato, também reportagem fotográfica, da pescaria ritual na lagoa Bé-Malai, publicados na revista da Sociedade de Geografia de Lisboa. Uma faceta que, de resto, investigadores como Maria do Carmo Piçarra, 46, têm procurado realçar como caso ímpar duma precoce atenção imagética da antropologia cultural.

Mas não foi isso que sucedeu, antes a reposição “conservadora” quanto baste duma obra de referência, sem enquadrá-la minimamente — e para isso não bastam palavras de circunstância de responsáveis institucionais — no complexo da obra científica de Ruy Cinatti, cujo centenário do nascimento (Março de 2015) o Museu de Etnologia deixou passar em claro, em profundo contraste com o que havia sido feito em 1987 por Ernesto Veiga de Oliveira, Benjamin Pereira, Fernando Galhano, A. Lima de Carvalho e outros.

Se Arquitetura Timorense tem hoje alguma utilidade para o jovem país asiático — além da memória histórica do seu melhor património edificado, as casas altas de Loré (Lautem), muitas delas derrubadas pela barbárie invasora —, ela consiste precisamente na ideia logo expressa no prefácio por Cinatti, segundo a qual a re-construção do país haverá de fazer-se, também em contextos urbanos de expansão previsível, aproveitando as lições da habitação rural em termos de “adaptação ao meio ambiente”, de modo a permitir a “integração do homem timorense dentro de um quadro diferente do seu habitat tradicional”. Aos desafios da cooperação internacional actual, estas palavras de 1961 fazem-se notar:

“Não se trata de enquadrar o homem asiático num habitat de raiz europeia mas, ao dignificar a civilização insular colocando-a no lugar que merece, fornecer ao timorense casas que, pelos materiais, pela sua organização interna e adaptação climática, se afirmem como um organismo embebido de toda a realidade local” (p. 27; itálicos meus).

Aliás, o desenvolvimento sustentado de Timor sempre esteve no preciso ponto de mira do agrónomo, antropólogo e poeta Ruy Cinatti, como também se comprova, abundante e poderosamente, em Motivos Artísticos Timorenses e a sua Integração (189 pp., com fotografias de Ruy e de Salvador Almeida Fernandes, e desenhos de Fernando Galhano), cuja reedição, que muito precisará de ser melhorada no seu design, parece todavia estar fora dos planos do Museu Nacional de Etnologia e do programa das comemorações dos 500 anos de relações luso-timorenses, ainda em curso sob a responsabilidade do Instituto Camões. E quantas ideias sensatas sobre artesanato, ensino artístico e património esse livro contém!…

cinatti

Capa da antologia a publicar no final de Outubro

Apesar desta coincidência de efemérides, o investimento institucional, que aliás envolve dois ministérios, no relançamento da obra de Ruy Cinatti, com tudo o que ela nos aproxima de Timor-Leste, revela-se uma espécie de “serviços mínimos” que denunciam a ausência de uma autêntica diplomacia ou cooperação cultural com aquele pequeno país asiático. Enquanto isso, a Fundação Macau financiou a reabilitação do Arquivo Cinatti na Universidade Católica e patrocinou a edição de obras inéditas e de dois grandes ensaios sobre ele, a saírem brevemente em e-books com a chancela de Universidade Católica Editora, e uma editora privada, a Assírio & Alvim, lançará no fim de Outubro o primeiro volume da Obra Poética, com cerca de 1400 páginas, reunindo todos os seus livros publicados em vida, com cuidados extremos de fixação textual.

Ruy Cinatti está de volta e isso é uma grande notícia, quer queiram, quer não…