O Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa arquivou no final de julho uma investigação aberta contra três espiões do Serviço de Informações e Segurança (SIS) por falta de provas e depois de o primeiro-ministro recusar o levantamento do segredo de Estado que protege documentação das secretas.
A procuradora responsável pela investigação cita a procuradora-geral Joana Marques Vidal no despacho de arquivamento e fala em interesses instalados nos serviços de informações que vão contra o Estado de Direito.
Estavam em causa alegadas suspeitas de que os agentes do SIS, obedecendo a ordens do ex-diretor Horácio Pinto, teriam executado um varrimento tecnológico ao gabinete e computador de António Figueiredo, ex-presidente do Instituto de Registos e Notariado e principal arguido do caso Vistos Gold. O problema é que o varrimento foi realizado 10 dias depois de a revista Sábado ter divulgado a notícia sobre a existência da investigação contra Figueiredo e numa altura em que o ex-líder do IRN estava, de facto, sob escuta.
Por isso mesmo, os agentes do SIS eram suspeitos do crime de favorecimento na investigação do DIAP de Lisboa que tinha sido aberta em janeiro de 2015. E porquê? Porque o varrimento pode ter eliminado prova crucial para a investigação do caso dos Vistos Gold, onde António Figueiredo vai ser julgado pela alegada prática de 13 crimes — entre os quais corrupção passiva, recebimento indevido de vantagem e branqueamento de capitais, lê-se nos autos consultados pelo Observador no DIAP de Lisboa.
O que é um varrimento tecnológico?
↓ Mostrar
↑ Esconder
Tem dois objetivos essenciais:
. detetar escutas ambientais colocadas em determinado espaço físico que permita gravar e reproduzir todas as conversas ocorridas no mesmo espaço;
. eliminar documentos, emails ou qualquer tipo de informação contida num computador sem deixar qualquer rasto sobre o ‘apagão’.
Na origem do arquivamento está uma decisão de António Costa. Seguindo um parecer de Júlio Pereira, director do Sistema de Informações da República Portuguesa (SIRP), o primeiro-ministro recusou-se a levantar o segredo de Estado que protege o acesso aos relatórios do SIS e a identidade dos três espiões envolvidos, desclassificando apenas um memorando do SIS realizado com base em fontes abertas — isto é, com base em notícias de jornais e informação acessível a qualquer cidadãos através da internet.
Em junho de 2015, o mesmo Júlio Pereira e o juiz desembargador Horácio Pinto (ex-diretor do SIS que terá ordenado o varrimento ao gabinete de António Figueiredo) tinham visto o Supremo Tribunal de Justiça arquivar as mesmas suspeitas contra si, na sequência de uma segunda certidão do caso Vistos Gold. O mesmo aconteceu com as suspeitas de corrupção que incidiam sobre o juiz Antero Luís (ex-director do SIS e antecessor de Horácio Pinto).
Por que razão existiram duas investigações?
↓ Mostrar
↑ Esconder
Porque Júlio Pereira e Horácio Pinto têm direito a foro especial e os agentes do SIS não têm o mesmo privilégio. Concretizando: tratando-se de magistrados situados no topo da carreira (no caso do procurador-geral adjunto Júlio Pereira) e no escalão intermédio (desembargador Horácio Pinto), as suspeitas tiveram de ser enviadas para o Ministério Público no Supremo Tribunal de Justiça. Já os agentes do SIS foram investigados pelo DIAP de Lisboa.
No despacho de arquivamento do DIAP de Lisboa fica claro que não foi possível reconstituir os factos sob investigação porque o primeiro-ministro, informado pelo secretário-geral do SIRP, entendeu não levantar o segredo de Estado. E que a procuradora-adjunta Andrea Marques, titular do inquérito, tem dúvidas sobre a real existência de um perigo de espionagem que pudesse sustentar a realização da operação técnica levada a cabo pelo SIS.
O varrimento e o espião russo
As investigações a Júlio Pereira, Horácio Pinto e aos três agentes do SIS têm a mesma origem: certidões do caso Vistos Gold. E um ponto em comum: suspeita de dois varrimentos realizados pelo SIS ao computador e ao gabinete de António Figueiredo. O primeiro varrimento terá sido realizado a 27 de fevereiro de 2014, enquanto o segundo terá sido executado cerca de cinco meses mais tarde — mais concretamente, a 18 de junho de 2014.
Tudo começou com uma desconfiança de António Figueiredo no início de 2014 de que estava a ser investigado e escutado. A 27 de fevereiro, uma equipa de vigilância da Polícia Judiciária (PJ) detetou a deslocação de três agentes do SIS às instalações do Instituto de Registos e Notariado (IRN). A equipa de investigação do caso Vistos Gold, liderada pelos procuradores Susana Figueiredo e Manuel Dores, do Departamento Central de Investigação e Ação Penal, suspeita que o primeiro varrimento terá sido executado nesta altura.
A 5 de junho do mesmo ano, a revista Sábado divulgou o exclusivo de que Figueiredo e outros responsáveis da administração pública estavam sob investigação judicial no que viria a ser conhecido como o caso Vistos Gold. Onze dias depois, a PJ voltou a detetar uma nova deslocação de três agentes do SIS e do diretor desta secreta, o desembargador Horácio Pinto, à sede do IRN. Nesse mesmo dia, foram registadas trocas de mensagem entre António Figueiredo e o diretor do SIS, nas quais o líder do IRN solicita a verificação de alguns locais que anteriormente teriam sido falados entre os dois, de acordo com os autos consultados pelo Observador no DIAP de Lisboa.
Após a dedução de acusação por parte do Ministério Público (MP) contra António Figueiredo, o ex-ministro Miguel Macedo e mais 14 arguidos, Júlio Pereira admitiu publicamente que tinha sido realizado, de facto, um varrimento eletrónico no início de junho ao gabinete do arguido António Figueiredo a pedido deste e no âmbito de um alegado protocolo com o IRN. Um ano antes, e aquando do seu primeiro interrogatório como arguido e preso preventivo, o próprio António Figueiredo tinha apresentado a mesma justificação ao MP.
Qual o interesse das secretas portuguesas num protocolo com o IRN? Criação de identidades falsas no registo civil, predial e comercial que permitam reforçar a credibilidade dos agentes envolvidos em operações no terreno.
A equipa de investigação do caso Vistos Gold nunca deu crédito a esta tese devido à proximidade temporal entre a revelação pública (através da revista Sábado) da existência de uma investigação contra Figueiredo e o varrimento ocorrido em junho.
Certo é, contudo, que ocorreu um caso de espionagem no IRN em 2014. Um funcionário deste instituto terá sido apanhado, numa operação de contra-espionagem do SIS, a passar informações a um espião russo sobre a base de dados dos registos portugueses.
Os contactos com Passos Coelho e António Costa
Aberto o inquérito no DIAP de Lisboa contra os agentes do SIS em janeiro de 2015, cedo a titular da investigação (a procuradora-adjunta Andrea Marques) se deparou com uma condicionante inevitável em qualquer investigação que envolva os serviços de informações: o segredo de Estado.
Foi precisamente esse segredo que o SIS invocou por duas vezes para rejeitar o acesso à documentação pretendida pelo MP sobre aquela operação técnica — assim se chama o varrimento na linguagem dos espiões, o que obrigou a procuradora titular da investigação a recorrer em setembro de 2015 ao primeiro-ministro Passos Coelho.
Não sem antes deixar registado nos autos a sua discordância face à interpretação legal das secretas, citando mesmo a posição assumida pela procuradora-geral Joana Marques Vidal num parecer emitido em 2014 para o Parlamento sobre a lei quadro do SIRP que alargou o âmbito do que pode ser classificado como segredo de Estado.
Para a procuradora-adjunta Andrea Marques podemos estar perante uma situação semelhante à hipótese levantada por Marques Vidal:
Poder-se-á estar a alargar um regime de segredo particularmente severo em termos de revelação a acesso externo, a matérias que simplesmente sejam desagradáveis a determinados interesses instalados e que dessa forma possam ir contra o próprio funcionamento do Estado de Direito”, lê-se no parecer da procuradora-geral que é do conhecimento público.
Seguindo um parecer de Júlio Pereira enquanto secretário-geral do SIRP, Passos Coelho autorizou a procuradora-adjunta Andrea Marques a 14 de outubro de 2015 (dez dias depois de a coligação PSD/CDS ganhar as eleições legislativas) a consultar a documentação requerida, solicitando posteriormente o levantamento do segredo de Estado dos documentos que considerasse mais relevantes.
Quatro dias antes de António Costa ser indigitado por Cavaco Silva como novo primeiro-ministro, Andrea Marques deslocou-se à Presidência do Conselho de Ministros (PCM) para consultar a documentação do SIS, tendo selecionado dois documentos:
- Memorando operacional do SIS sobre a investigação dos Vistos Gold após notícias da Sábado e do Correio da Manhã;
- Relatório especial de informações datado de 16 de outubro de 2014.
A procuradora pediu o levantamento do segredo de Estado sobre esses documentos a 17 de dezembro mas não deixou de constatar que não existia a seguinte documentação no dossiê que lhe tinha sido disponibilizado na PCM:
- Relatórios sobre os varrimentos realizados nas instalações do IRN, para além da que ocorreu em junho de 2014;
- Protocolo entre o SIS e o IRN invocado por Júlio Pereira e António Figueiredo;
- Identidade dos funcionários do SIS que executaram operações de varrimento.
E voltou a insistir no acesso à documentação em falta.
A resposta do primeiro-ministro António Costa só chegou em abril de 2016. Seguindo um parecer de Júlio Pereira, tal como Passos Coelho, Costa autorizou o levantamento parcial do segredo de Estado. Na prática, Andrea Marques apenas teve acesso a um memorando do SIS realizado com base em fontes abertas.
O parecer do secretário-geral do SIRP, ao qual António Costa aderiu na íntegra, ‘explica’ porque razão essa foi o único documento disponibilizado ao MP:
- O relatório especial de informações pretendido pelo MP, por exemplo, dá uma visão muito lata do modus operandi de um serviço estrangeiro bem como das ações de contra-espionagem levadas a cabo no nosso país e em países amigos. A disponibilização dessa documentação, argumentou Pereira, poderia afetar as relações dos serviços de informações portugueses com as agências internacionais congéneres;
- Já no que diz respeito à documentação relativa aos varrimentos no IRN, Júlio Pereira argumentou que apenas tinha sido efetuado um varrimento (no início de junho) e que não tinha sido produzido qualquer relatório sobre essa operação. Pereira admitiu que essa medida, que tem um caráter defensivo, era executada com regularidade pelo SIS. Contudo, e depois do incidente no IRN, tais registos passaram a ser efetuados;
- O protocolo entre o SIS e o IRN nada tinha a ver com o varrimento realizado, logo não devia ser disponibilizado;
- Sobre a revelação da identidade dos três espiões envolvidos no caso, o secretário-geral do SIRP era frontalmente contra. Porque a proteção da identidade dos funcionários do SIRP é uma questão essencial em termos operacionais — muito mais quando se trata de agentes, como aqueles que o MP queria interrogar, que trabalham nos núcleos operacionais mais sensíveis do SIS;
- Por último, Júlio Pereira presumia que o inquérito aberto no DIAP de Lisboa não visava os três agentes em causa, visto que a procuradora-adjunta Andrea Marques desejava ouvi-los como testemunhas. Além do mais, o processo aberto contra o desembargador Horácio Pinto já tinha sido arquivado no Supremo Tribunal de Justiça.
Conformada com a decisão do primeiro-ministro António Costa, e sem mais recursos ao seu dispor, a procuradora-adjunta Andrea Marques ainda notificou dois espiões do SIS para prestarem declarações nos autos.
Um agente e um responsável do SIS acabaram por prestar declarações enquanto testemunhas. Assumiram a sua presença em diversas reuniões com o IRN mas negaram o seu envolvimento em qualquer operação de varrimento.
O responsável chegou mesmo a dizer que o serviço chegou à conclusão de que existiam riscos sobre a informação contida na base de dados do IRN e que tal perigo poderia exigir a realização de operações de natureza técnica — como os varrimentos, por exemplo. O mesmo responsável, diretor de um dos departamentos da secreta, acabou por invocar o segredo de Estado para não revelar se teve conhecimento de relatórios elaborados pelo SIS sobre notícias relacionadas com o caso Vistos Gold.