Título: “Os Senhores do Mundo”
Autor: Noam Chomsky
Editora: Bertrand
Páginas: 198

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Chomsky anda às avessas do resto do mundo. É quando fala sem pensar no que diz mas sim no como se diz que o discurso tem mais interesse. Chomsky linguista, de língua voltada para ela, é um sábio; Chomsky político, de língua voltada (e, pelo frémito, em alta voltagem) para fora, a julgar pelo tom é um profeta. Os seus ensaios políticos têm pouco de ensaio: entra logo a matar, com a alta cavalaria do Apocalipse às costas, arrazoando contra os ricos, o sistema e a América à magarefe enraivecido, sempre num estilo conspirativo. Escreve como quem grita e grita como quem tange os sinos do último dia, de dedo apontado à soez quadrilha do dinheiro e do poder. A forma cansa mais do que convence, até porque lembra os meninos sardónicos que, do canto do castigo na sala de aula, vão desfiando os pecadilhos dos colegas beneficiados; mais do que justiça, o rapazito, como Chomsky, quer condenações, daí que seja por vezes difícil perceber o alvo das suas diatribes. Em sete ensaios, a sua ira desaba sobre o fugidio “sistema”, sobre a tentativa de teorizar a guerra justa como mais do que reacção à agressão, sobre a teologia política de Reinhold Niebuhr, a propaganda hipócrita dos autoproclamados “estados iluminados” ou sobre a forma como as empresas tentam esconder o seu plano ganancioso e secreto de destruição do planeta Terra.

As teses têm aquele carácter acusatório de quem apanha o adversário num delito flagrante, não versam propriamente sobre ideias mas sobre passos em falso que denunciam a verdadeira e malévola face do adversário. O “sistema”, para Chomsky, é um organismo que sabe que funciona mal, que está errado, mas tem interesse em perpetuar a situação. Daí que esconda as teses dos grandes especialistas que consideram os efeitos nocivos da acção humana no ambiente superiores ao que julgamos, que cubra as atrocidades guerreiras nos países que interessa proteger e as exacerbe nos que antolha conquistar, que impeça discretamente as teses universitárias que vão contra ele por “medo” e por se saber incapaz de rebater as verdades incontestáveis que o deitam abaixo.

O inimigo de Chomsky é uma gigantesca caixa-forte, movida a dinheiro e alimentada pela carne humana de trabalhadores explorados, que domina os Homens pelas gravatas corporativas. Ora as usa como trela, para ter os dóceis trabalhadores na mão, ora como garrote quando eles se revoltam. Chomsky afadiga-se a mostrar que esta grande máquina ama e precisa da guerra, mas que ao mesmo tempo depende da exploração dos indivíduos que esta mesma guerra mata. Situação estranha, a deste monstro que se compraz em matar os seus escravos e em destruir aquilo que o mantém. Este “sistema” ora é malvado, ora estúpido, ora hipócrita; ora finge ter boas intenções, ora tem más intenções, ora nem más intenções sabe ter.

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Esta tese, no entanto, acaba por ter vários problemas, uns de subsistência, outros de alternativa. Tanto é difícil manter a tese diante das suas contradições, como rebatê-la com as alternativas propostas.

Os problemas das alternativas são claros. Chomsky considera a grande propriedade uma forma de poder e, sobretudo, uma forma de poder contrária à democracia. Até aí podemos, em parte, concordar: a propriedade traz, obviamente, poder. Se um Homem é dono de uma casa, pode enchê-la do lixo que quiser, pode enchê-la dos amigos que quiser ou não enchê-la de todo. Tem poder para fazer dela o que quiser: não é a propriedade que é inimiga da soberania popular, é a ausência dela; o problema da grande propriedade está na falta da pequena; as empresas podem baixar-lhe o tecto salarial, mas nunca o tecto de sua casa, pelo que tem sempre um bastião impenetrável pelas manigâncias dos patrões. Se, como garante o nosso pensador, as grandes corporações querem matar o povo, com certeza que uma parede protege melhor de um ataque do que um boletim de voto. Chomsky, no entanto, quer retirar ao Homem o garante do poder ao mesmo tempo que assevera que lhe quer dar o poder, como se a melhor forma de um Homem não se magoar num ataque não fosse saber defender-se.

Este assunto da defesa, no entanto, também é sensível para Chomsky. O mais contrariado Americano é contrário à ideia política do seu país de que há razões pelas quais vale a pena guerrear, mesmo que não tenhamos sido agredidos. A ideia – sensata, diga-se – é a de que se trata de um absurdo guerrear pela imposição de um sistema que permita escolher o sistema quando a escolha já está feita. Que um Estado comunista decida invadir um país para instaurar o comunismo, percebe-se: se estão convencidos de que o comunismo é o melhor para o Homem, então que acabem com a sua exploração às mãos dos capitalistas; que um Estado fascista guerreie pelo fascismo, também se percebe; agora, que um sistema que na verdade é a ausência de sistema e a assunção de que todos os outros são válidos lute contra outro sistema, acaba por ser um absurdo. Ao mesmo tempo, porém, é óbvio que a liberdade de escolha implica a inexistência de uma escolha já feita. Em democracia o Homem tem liberdade para escolher, sim, mas só de quatro em quatro anos; para estar sempre disponível a escolha, nunca poderia haver governo. Para haver um sistema que permita escolher, nunca poderá haver uma escolha já feita: a democracia só permite escolher-se a si própria; a partir do momento em que se escolha algo que a exclua, essa escolha deixa de entrar nas hipóteses por não permitir mais escolhas. Chomsky, por ser contra a guerra em nome da tolerância ou da escolha, cai no paradoxo da tolerância: ou se faz da tolerância e da liberdade a bandeira por que vale a pena lutar, ou, para assegurar essa liberdade, abdica-se dela.

Chomsky acaba, assim, por cair no mesmo problema de que acusa o capitalismo. Se este sistema – para entrar nos problemas de subsistência já falados – está concertado para explorar os indivíduos, se o próprio poder reconhece que ele está errado, se as atrocidades dos países ditos iluminados são tão diabólicas, como é que o sistema se aguenta? Como é que algo tão errado, tão pouco natural, arranja sempre forma de se insinuar nas sociedades, dominá-las e explorar todos os indivíduos? É que, para Chomsky, este inimigo tanto está na imprensa, como na Universidade, como nas empresas. Trata-se de um gigantesco conluio palaciano que tem como aliados milhões de incautos explorados? E o que move esta cúspide de poderosos, se eles próprios sabem que há um sistema mais eficaz? Chomsky ataca-os por tantos lados, que não parece ver que os poderosos não podem ser, ao mesmo tempo, maus e estúpidos; que, se eles são hipócritas, tem de decidir se não concorda com o que dizem ou com o que fazem; que nenhuma ideia se consegue aguentar se ninguém acredite nela.

Não deixa de ser engraçado que Chomsky, num livro concentrado, mais do que nas ideias, nas contradições entre o pensamento e a acção dos seus adversários, desvalorize a noção de pecado histórico de Niebuhr. É que Niebuhr consegue trazer para a discussão algo que devia ser claríssimo: que o comportamento do hipócrita em nada macula as suas ideias; que o facto de o hipócrita mentir em nada macula a tese defendida por ele de que a verdade é boa. Julgar as ideias pelas acções dos seus asseclas só tem valor se eles de facto cumprem as ideias. E julgar as ideias pelas intenções dos que as difundem também traz um óbvio problema. É que se, como bem explica Niebuhr, nem é fácil saber quais são ao certo as nossas intenções, quanto mais as dos outros?

Carlos Maria Bobone é licenciado em Filosofia. Colabora no site Velho Critério.