O Piolho foi o primeiro botequim portuense a ter eletricidade e a adquirir uma máquina de café La Cimbali, a mesma que deu o nome ao cimbalino. O Palácio da Bolsa foi construído sobre as ruínas do Convento de São Francisco. E na Igreja da Lapa encontra-se uma pequena urna de prata com o coração de D. Pedro IV. Estas são algumas das curiosidades que Manuel de Sousa reuniu nas cerca de 250 páginas do seu primeiro livro, Porto D’Honra, onde aborda 15 episódios históricos da cidade do Porto, “tentando dar-lhes alguma profundidade académica”, como explica ao Observador.

Para além de ser um livro feito de segredos e curiosidades que marcam a história da Invicta ao longo dos tempos, como o desastre da Ponte das Barcas, as invasões francesas ou o legado deixado pelos judeus — que faz com que o Porto tenha a maior sinagoga da Península Ibérica –, Porto D’Honra, com prefácio de Joel Cleto, “pretende trazer alguma informação mais recente sobre alguns aspetos sobre os quais não se sabe muito”, como é o caso das muralhas, “onde houve escavações nos últimos anos e cujos relatórios ficam num ambiente mais restrito”.

Manuel de Sousa nasceu em Miragaia, há 51 anos, é licenciado em Ciências Históricas e mestre em Turismo. Em 2012 criou a página “Porto Desaparecido” no Facebook, que conta com quase 100 mil curiosos pela história do Porto, e cujo sucesso lhe valeu a atribuição da Medalha Municipal de Mérito pela Câmara Municipal do Porto, em 2013. “Com este livro, a minha ideia é divulgar esse conhecimento a um número mais elevado de pessoas, como faço na minha página. Democratizar o acesso à história e dar aos portuenses a oportunidade de conhecerem melhor a cidade.”

porto d'honra

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A Torre dos Clérigos não está na capa por acaso. Para Manuel de Sousa, o monumento projetado no século XVIII pelo italiano Nicolau Nasoni é o ex libris da cidade, “tal como a Torre de Pisa, que se identifica logo com Pisa, o Coliseu em Roma ou o Big Ben em Londres. O Teixeira de Pascoaes dela dizia que era o Porto ao alto”. Se hoje a Torre é considerada por muitos o monumento mais distintivo da cidade, nem sempre foi assim:

“A partir de meados de Oitocentos, todos os roteiros do Porto passaram a destacar a Torre e a Igreja dos Clérigos entre as principais atrações da cidade. No entanto, no século XIX, havia um certo preconceito contra o estilo barroco, pelo que não será de estranhar que, em 1860, o historiador e arqueólogo Inácio de Vilhena Barbosa classifique a fachada da Igreja como ‘sobrecarregada de ornatos de pedra, de mau gosto.'”, pode ler-se na página 118.

“É como se os portuenses sentissem que são a reserva moral da Nação”

Nas visitas guiadas mensais que organiza, Manuel de Sousa nota que o que mais surpreende os visitantes é a topografia da cidade. Depois, a diversidade arquitetónica, fruto de vários fatores. “Um deles foi, de facto, ser pobre. Ou seja, houve projetos nos anos 1940 e 1950 para demolir grande parte da zona histórica. Da Ribeira por exemplo só ficavam algumas igrejas e o resto era tudo removido para se fazerem prédios”, recorda. Na página “Porto Desaparecido”, o autor tem um álbum chamado “Porto que nunca foi” que é sobre projetos que nunca foram concretizados. “Se tivesse havido dinheiro, tinha-se arrasado completamente tudo o que é Centro Histórico”.

Com o passar do tempo, a preservação passou a ser mais valorizada. Mas o facto de o Porto nunca ter sofrido nenhum terramoto violento, como Lisboa, nem nenhuma guerra, foi determinante para que muitos visitantes sintam que estão num postal antigo, com vida. “Houve com certeza demolições — a Avenida da Ponte, a própria Avenida dos Aliados, houve várias demolições e algumas até bastante graves, como a do bairro à volta da Sé, mas a maioria ficou preservada até aos dias de hoje. Por isso, é uma cidade que tem uma parte medieval, tem uma parte também almadina, do século XVIII, tem uma parte mais recente do século XIX, e tudo convive com uma certa harmonia. Essa diversidade impressiona muito quem nos visita”.

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Projeto não concretizado de equipamentos e comércio para a estação de São Bento, elaborado por Nuno Leónidas Arquitectos. (foto: © NLA – Nuno Leónidas Arquitectos)

Outra coisa que impressiona muito quem visita o Porto é “a hospitalidade, a maneira de ser descontraída”, destaca. Apesar de ser uma característica comum a todos os portugueses, para Manuel de Sousa os portuenses “são aqueles que mais autoestima têm”.

“Tipicamente os portugueses têm grandes complexos de inferioridade em relação aos estrangeiros. E acho que os portuenses são aqueles que gostam mais da sua cidade, têm mais autoestima, e isso também é um valor muito importante. Acho que, nesse aspeto, o Porto pode dar lições a Portugal e pode servir de exemplo de como se deve ter amor por nós próprios e que não ficamos atrás dos outros”, diz.

Em Porto D’Honra, o portuense salienta que, além dos episódios históricos, há traços de personalidade que os portuenses gostam de identificar como seus: o Porto como capital do trabalho; a cidade empreendedora, industrial e laboriosa; o seu cunho liberal e progressista; o valor da palavra dada; o subir a pulso e ter bom nome na praça; as contas à moda do Porto; o vernáculo portuense; a pronúncia do Norte; a contestação ao centralismo; o orgulho no que é seu; o forte bairrismo e a inexcedível hospitalidade.

“Acho que existe no Norte, e, muito especificamente, no Porto, um certo espírito mais patriótico e mais contestatário, também contra o mau uso da portugalidade”, justifica, ainda que admita que, “se calhar”, está a falar mais com o coração do que com a razão. “Acho que as pessoas do Norte sentem que aqui é que nasceu Portugal, que aqui é que foi o berço. Isto é um discurso emotivo, como é evidente, mas é como se os portuenses sentissem que são a reserva moral da Nação, porque ela nasceu no Norte.”

As 7 maravilhas do Porto Desaparecido

À medida que estuda a história da cidade, Manuel de Sousa ainda se vai surpreendendo com algumas descobertas. Mas o seu episódio favorito continua a ser o do Cerco do Porto. “É um dos momentos mais importantes da cidade, decisivo para a história nacional, e a importância que teve no triunfo do liberalismo passa muitas vezes despercebida”, lamenta. Foi pela bravura demonstrada no Cerco do Porto, que se prolongou entre 1832 e 1833, fez com que D. Pedro tivesse deixado o seu coração na Igreja da Lapa, naquela pequena urna de prata. Foi o que valeu também ao Porto o título de cidade Invicta, concedido pela rainha D. Maria II.

"As 7 maravilhas desaparecidas do Porto"

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1 – Palácio de Cristal (1865-1951)
2 – Calçada portuguesa e jardins dos Aliados (1882-2005)
3 – Ponte Pênsil (1842-1887)
4 – Porta de Vandoma (séc. III(?) – 1855)
5 – Café A Brasileira (1903-2010)

Se na página Porto Desaparecido se recorda e enaltece o passado — cerca de mil pessoas votaram nos monumentos e espaços que desapareceram para sempre — hoje a cidade debate-se com a pressão do turismo e as suas consequências, como a extinção e as mudanças em algumas lojas e locais históricos. Manuel de Sousa tem um olhar mais objetivo. “O que está a acontecer agora é a valorização da Baixa, o que, de alguma forma, é o normal. O centro da cidade é sempre mais caro do que a periferia e antes não era assim”, defende. “Quando se tirou o jardim da Avenida dos Aliados não teve a ver com o turismo. Ou quando se demoliu a estação de recolha dos elétricos, com 20 portas. Ou quando se demoliu, nos anos 1950, o Palácio de Cristal, foram opções da cidade.”

Porto D’Honra não é um guia turístico, embora haja momentos, como por exemplo no capítulo da Torre dos Clérigos, onde explica que santo está á entrada e como é o altar. É, sobretudo, um livro de divulgação histórica, produto do amor de um homem pela cidade onde nasceu e continua a viver.