Título: “A Arte da Vida”
Autor: Zygmund Bauman
Editora: Relógio d’Água
Páginas: 177
Não é uma lufada de ar fresco: antes o ar puído de uma biblioteca antiga, pesado como se exumássemos uma filosofia perdida de antanho. É que esta Arte da Vida, de Zygmunt Bauman, é clássica da primeira à última linha. O leitor sente as páginas como feitas dos pergaminhos de Marco Aurélio ou Epicteto, sente no pensamento limpo a solidão monacal dos moralistas, sem grandes transes, como quereriam Pascal ou La Bruyère, sereno como um anacoreta feliz com a contemplação que Aristóteles recomendava.
Tudo neste livro é clássico, desde o tema – aquilo que é necessário para a vida feliz, como escreveria um estóico – até ao tratamento: não tem pauis psicanalíticos, neurociência aplicada à moral, ou labirintos conceptuais. Trata do problema do desejo como os gregos o tratavam: como um problema de desejo e não de hormonas ou saudades dos pais.
Bauman parte de uma ideia que, embora verbalmente todos reconheçamos, tentamos frequente ignorar. O progresso não nos está a fazer mais felizes, diz. Nem o conforto baixa as doses de prozac, nem o conhecimento técnico construiu ainda uma máquina de felicidade, nem os médicos encontraram ainda o verdadeiro remédio santo. Quanto a isto, estaremos, sem grande discussão, de acordo. Bauman acrescenta, porém, que isto não é, estranhamente, razão suficiente para não o procurarmos como cura para a infelicidade. O mecanismo perverso do desejo faz-nos crer que se trata de uma questão de quantidade. Isto é, o progresso aumenta as necessidades, o consumo não as satisfaz, mas apenas porque não consumimos em dose suficiente. A felicidade apresenta-se sempre como alcançável, mas apenas no degrau acima do nosso.
Mais: da experiência de satisfação do desejo, o progresso arranjou uma estranha forma de reciclagem do seu aroma. Aquilo que qualquer pessoa experiencia – que depois de tido, o objecto perde interesse – é transformado num jogo desejado. A ideia de moda e de tendência expressam isto mesmo. A partir do momento em que a adolescente tem uma saia nova, ela começa a passar de moda. A adolescente, porém, não se compraz apenas com a saia; faz parte do seu entretenimento perceber o que vai aí e ir criando novos desejos.
Ora, o que desde sempre foi percebido como uma estrutura natural e enganosa do desejo, o que desde sempre foi tomado como um dos aspectos degradantes da condição humana, esta dança ridícula em busca de de coisas que mal as temos deixam de nos interessar, é hoje tido como a arte da vida.
Ora, estranho não é que o Homem aja desta maneira: esta, mostram os tais estóicos e moralistas citados no princípio, sempre foi a maneira de agir do Homem. Nunca foi, porém, a sua maneira de pensar. Os filósofos, precisamente por reconhecerem que esta forma não nos satisfaz, sempre viram a felicidade com características completamente ao arrepio do modo de vida comum. A felicidade consistirá em algo imutável e perene, sigamos nós os contrários ensinamentos de Séneca ou de Epicuro.
A vida Moderna, porém, parece ter abdicado do ideal de felicidade: já não procura o duradouro, já nem procura sequer o momento de felicidade, procura apenas a expectativa e o mecanismo de mudança. É uma arte da vida que se deleita com o engano.
Bauman, porém, não estranha que este tenha passado de um mecanismo de distração existencial para uma espécie de filosofia tácita do nosso tempo. Esta arte da vida quadra na perfeição com a modernidade leve, indolor e fugidia, isto é, com a Modernidade líquida. A perenidade exige sacrifícios e uma ascese que contrariam precisamente a parte da Natureza Humana que a modernidade líquida decidiu regar. Acontece, porém, que esta arte da vida acaba por ser uma arte contrária a si própria. Não só porque a vertigem da moda acaba por exigir um esforço de acompanhamento contrário à filosofia do prazer puro e momentâneo, mas também porque a própria incerteza é contrária ao conforto que prega.
O livro de Bauman é, só por si, um antídoto contra a modernidade líquida. Ameno, sem espectacularidades circenses, claro no diagnóstico e sem ensanchas de novidade. Tem o mérito de fundir a sociedade moderna com a filosofia clássica, sem grandes pretensões mas também sem grandes golpes. O diagnóstico é certo, embora já conhecido, mas quanto ao remédio Bauman é omisso. Parece acreditar que esta sociedade se come a si própria, de tal modo que o Homem moral, o verdadeiro artista de si próprio, não passivo, acabará por surgir. Bauman espera-o com a serenidade de quem está de bem com a vida, acoitado numa paisagem tranquila. Talvez não seja desta paz que saia a melhor arte, mas é com certeza de onde vem a melhor vida.
Carlos Maria Bobone é licenciado em Filosofia. Colabora no site Velho Critério.