Paulo Núncio e Fernando Rocha Andrade, o anterior e o atual secretários de Estado dos Assuntos Fiscais, vão esta quarta-feira dar explicações aos deputados da comissões de orçamento e finanças sobre a não publicação de informação relativa às transferências feitas para offshores e sobre os quase dez mil milhões de euros que não terão sido controlados pela administração fiscal. São os primeiros responsáveis políticos a dar esclarecimentos, mas é provável que outros se sigam. O PSD quer ouvir os antigos diretores gerais e a esquerda exige mais explicações de quem esteve no Governo PSD/CDS. A ax-ministra das Finanças, Maria Luís Albuquerque já disse estar disponível. Para já, e depois dos primeiros esclarecimentos já prestados, quase sempre por escrito, que perguntas faltam responder.

A não publicação das estatísticas deve-se a mais um “erro de perceção mútuo” entre o ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais e o então direto-geral de Impostos ou Paulo Núncio teve intenção de ocultar esses dados?

Os esclarecimentos já prestados por Azevedo Pereira passam claramente a bola para o ex-secretário de Estado Paulo Núncio. Ainda que o antigo diretor-geral admita “erros de perceção” na troca de informação com o superior hierárquico, lembra que fez o pedido mais do que uma vez para publicar as estatísticas e que só recebeu uma resposta, em forma de visto, em meados de 2014, cerca de 18 meses depois do pedido. E mesmo num cenário de mal-entendido, este não demoraria quatro anos a resolver. Se a intenção de Núncio fosse publicar porque não deu “uma indicação, formal ou informal” nesse sentido?

Estas afirmações não deram grande margem de manobra ao ex-secretário de Estado que, horas depois e após ter revisto os seus documentos, assumiu a responsabilidade política, demitido-se dos cargos do CDS. Paulo Núncio reconheceu que a interpretação feita por Azevedo Pereira era “legítima”.

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Se não foi um lapso porque é que Paulo Núncio não quis tornar públicas as estatísticas?

Do esclarecimento por escrito prestado pelo antigo secretário de Estado, podemos deduzir que Núncio defende que a não publicação foi um lapso e que não resultou de uma ordem sua. No entanto, não responde à questão que o seu antigo secretário de Estado deixou no ar. Se a intenção era publicar, porque não deu qualquer indicação expressa nesse sentido? Também não se percebe porque é que Núncio manteve a publicação de outras estatísticas sobre impostos, cuja divulgação também tinha sido determinada pelo seu antecessor no cargo, Sérgio Vasques, embora num despacho diferente do relativo às offshores.

Se houve intenção de manter oculta a informação sobre as ditas estatística, de quem foi a ideia? Apenas do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais ou a questão chegou aos ministros das Finanças, primeiro Vítor Gaspar e depois Maria Luís Albuquerque?

Nos esclarecimentos públicos que já fez, Paulo Núncio nunca assume que quis ocultar esta informação, mas também não afirma que estava empenhado na sua publicação. Numa resposta anterior sobre o tema, o antigo secretário de Estado argumenta que por causa do despacho do seu antecessor, a divulgação não dependia de uma aprovação expressa a posteriori do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, uma vez que a Autoridade Tributária já estava obrigada a publicar a estatística com base no despacho do meu antecessor.”

Para os partidos à esquerda e para o comentador Luís Marques Mendes, a assunção de responsabilidade política não deve parar em Paulo Núncio. Os antigos ministros das Finanças do anterior Governo devem também dar explicações.

Offshores. Marques Mendes diz que Vítor Gaspar e Maria Luís Albuquerque devem dar explicações no Parlamento

Qual é a ligação, se é que existe, entre a não publicação das estatísticas e o não tratamento e controlo por parte do fisco de 20 declarações feitas por instituições financeiras com transferências para paraísos fiscais entre 2011 e 2014?

Ainda não é claro se existe uma ligação, para além da coincidência temporal e de responsáveis políticos e do fisco. E essa é uma das matérias mais importantes para esclarecer porque se a ligação existe então o “apagão estatístico” assume contornos de ocultação por trás da qual podem estar motivações muito mais graves do que um lapso. Esta segunda-feira, o Ministério Público revelou que está a recolher elementos para apurar se há matéria que justifique a abertura de uma investigação judicial.

Ministério Público recolhe elementos sobre transferências para offshores

Paulo Núncio reafirmou o seu “total desconhecimento, à data e até hoje, relativamente à noticiada discrepância — os tais dez mil milhões de euros que não foram tratados pelo fisco — entre os dados entregues pelas instituições financeiras e os dados processados pela AT”.

O dinheiro que saiu pagou impostos?

Ainda não sabemos. Na primeira reação à divulgação do caso, feita pelo Público, o ex-diretor-geral de impostos deixou uma garantia. “A Autoridade Tributária (AT) efetuou em devido tempo, quer o tratamento e o acompanhamento inspetivo que lhe competia, quer a preparação dos elementos necessários à efetiva divulgação pública dos elementos em causa.“

O antigo secretário de Estado assinala, por sua vez, que a Autoridade Tributária tem desde 2012 — uma iniciativa do seu tempo -. a possibilidade de liquidar todos os impostos devidos nesta situações no prazo alargado de 12 anos (o prazo anterior era de quatro anos). E, nestes termos, conclui, “quaisquer impostos que sejam devidos nestas situações poderão ser cobrados pela AT até 2024, evitando-se assim o risco de perda da receita do Estado”.

O tratamento e controlo fiscal das operações para as offshores é um mecanismo adicional de fiscalização dos contribuintes. Estas declarações ficam sujeitas a um controlo automático, através do cruzamento de informação com as bases de dados da Autoridade Tributária. Em caso de discrepância, são distribuídas para análise da Inspeção Tributária e podem originar processos.

Qual é a relevância das operações abrangidas por estas 20 declarações para o controlo fiscal da capital para offshores. Que operações e que contribuintes?

Sabe-se que a informação que escapou ao radar do fisco consta de 20 declarações feitas por instituições financeiras entre 2011 e 2014 à Administração Tributária. Mas não se sabe quantas operações de envio de capital para offshores, nem quantos contribuintes estão envolvidos nesta falha. O Ministério das Finanças adiantou apenas a distribuição de valores e comunicações em falta por ano. E o grosso do dinheiro que não terá sido tratado pelo fisco saiu de Portugal para offshores entre 2012 e 2014, representando quase 80% das transferências totais comunicadas nesses anos pelos bancos.

Fisco só terá controlado 20% dos valores transferidos para offshores entre 2012 e 2014

O atual Governo pediu uma auditoria à Inspeção-Geral das Finanças (IGF) sobre as falhas no controlo informático. É verdade que desapareceu informação nos ficheiros enviados pelo fisco à IGF ? Já há algumas conclusões?

São respostas que podem ser dadas, pelo menos em parte, por Rocha Andrade. Para já, e de acordo com informação das Finanças. o fisco assinalou a existência de “problemas nos procedimentos e nos mecanismos informáticos que ditaram o não tratamento da informação”. O problema foi entretanto corrigido, mas podem vir a ser tomadas mais medidas, em função das conclusões da auditoria da IGF que foi pedida no final de 2016.

Entretanto no sábado, o jornal Público adiantou que tinha desaparecido uma parte da informação que constava das declarações nos ficheiros entregues pela Autoridade Tributária à IGF.

O que pode mudar na sequência do caso das offshores?

Para além do apuramento de responsabilidades políticas, um novelo que ainda tem de ser desfiado, anunciam-se também mudanças legislativas vindas de vários partidos. Desde as propostas do grupo de trabalho criado no Parlamento para combater a criminalidade económica e fiscal, que deverão ser retomadas, até iniciativas novas, como a que o PSD anunciou no sentido de que a publicação dos dados sobre transferências para offshores deixe de estar dependente de autorização de um membro do Governo. Poderão ainda ser retomadas, propostas mais radicais como a feita pelo Bloco de Esquerda no ano passado, e que então foi chumbada pelo PS e pelos partidos de direita, onde se defendia a proibição de envio de dinheiro para paraísos fiscais não cooperantes com o Estado português.