Desbocado, autoritário, populista, demagogo. São muitas as características que a imprensa norte-americana tem atribuído a Donald Trump e que fazem com que tenha a mira do impeachment sempre apontada. Ainda antes de tomar posse — e até de ser eleito –, já muitos apostavam que não chegaria ao fim do mandato. Outros tantos antecipavam que seria um beijo de Judas: uma saída forçada apoiada pelos republicanos. Isto porque um presidente dos EUA só pode ser despedido com o acordo de dois terços do Congresso e isso implica, necessariamente, apoio do partido do presidente. Que podiam ter um incentivo: colocar Mike Pence na sala oval.

Mas as últimas polémicas, incluindo a acusação de obstrução à justiça, fazem com que a palavra impeachment seja cada vez mais usada. O presidente da comissão de supervisão da Câmara dos Representantes, o republicano Jason Chaffetz, enviou esta terça-feira uma carta (leia aqui) ao FBI a pedir o relatório de James Comey — que foi divulgado esta semana pelo New York Times — e onde estará claro que Donald Trump pediu ao ex-diretor do FBI para desistir da investigação das ligações dos russos ao seu ex-conselheiro de segurança. A confirmar-se, esta pode ser uma importante prova para o Congresso avançar com o processo que pode levar à destituição do presidente.

O afastamento do diretor do FBI e a pressão que terá feito para que James Comey desistisse da investigação podem ser fatais para Trump. Mas, afinal, o que pode vir aí? Como se desenrola esse processo? De que pode Trump ser acusado? Quanto tempo dura? E pode Trump contrariá-lo? Os republicanos ficarão ao seu lado? Quem manda na ausência de Trump? Quem seria o seu sucessor? As perguntas (e respostas) de um impeachment há muito anunciado, mas que pode até nunca acontecer.

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Quem já enfrentou um processo de impeachment nos EUA?

Até hoje, três presidentes norte-americanos foram alvo de processos de impeachment: Andrew Johnson, em 1868, Richard Nixon, em 1974, e Bill Clinton, em 1998. No caso de Clinton e Johnson — o impeachment foi mesmo aprovado na Câmara dos Representantes –, mas acabou por ser inconsequente. Só Nixon foi afastado, só que não por via deste instrumento jurídico.

Depois de aprovado na Câmara dos Representantes, o processo ainda tem de seguir para o Senado e só perante uma maioria de dois terços (o que, necessariamente, tem de contar com muitos senadores do partido do Presidente) é que o presidente é destituído.

No caso de Andrew Johnson, ainda no século XIX, o Presidente foi alvo de impeachment por substituir o secretário de Guerra sem consultar o Senado. Acabou por livrar-se do impeachment por apenas um voto. Já Richard Nixon, envolvido no caso Watergate, viu a comissão de justiça da câmara dos representantes aprovar o início do processo de impeachment por obstrução à justiça, abuso de poder e desrespeito pelo Congresso. No entanto, Nixon demitiu-se antes da votação, tornando-se no único presidente a ser alvo deste processo que não terminou o mandato. Bill Clinton também foi alvo de um processo, na sequência do caso Mónica Lewinsky. Acabou acusado de perjúrio e obstrução à justiça, mas acabou absolvido pelo Senado, a 12 de fevereiro de 1999, já que eram necessários dois terços dos votos para confirmar a destituição e só 50 senadores (metade dos 100) votaram pela saída de Clinton.

É possível afastar um presidente sem impeachment?

No plano teórico, sim. Na prática, é difícil. Após o assassinato de John F. Kennedy, foi aprovada a 25ª emenda à Constituição dos EUA — que estabelece, por exemplo, que em caso de morte do Presidente, o vice-presidente assume imediatamente o lugar. Mas esta alteração à Constituição traz também a possibilidade de um Presidente ser afastado (ou afastar-se) por se mostrar “incapaz de cumprir os seus poderes e deveres” na Administração.

Além do próprio presidente, que se pode declarar incapaz, o vice-presidente (neste caso, Mike Pence) pode forçar a situação. De acordo com a Constituição, o vice-presidente, desde que tenha o acordo da maioria da Administração (o topo do Governo dos EUA, que são 15 membros) pode declarar que o presidente é “incapaz de cumprir os poderes e deveres do cargo”. A maioria tem depois de enviar essa informação por escrito ao presidente da Câmara dos Representantes (atualmente o republicano Paul Ryan) e ao presidente do Senado pro tempore, Orrin Hatch. O vice-presidente assume de imediato a liderança, mas o Presidente pode contestar a decisão. Em caso de recurso do Presidente, só o voto de dois terços das duas câmaras do Congresso (a Câmara dos Representantes e o Senado) é que impede o presidente de regressar ao poder.

O cenário parece, para já, pouco plausível. Mesmo que Pence traísse Trump, seria necessário que uma parte significativa de delegados e senadores republicanos (e, naturalmente, os democratas) apoiasse esse afastamento.

Quanto tempo demora o processo de impeachment?

Olhando à experiência do passado, o processo é relativamente rápido. No caso de Bill Clinton, o processo demorou apenas três meses. Mas esse período não leva em conta a investigação a Bill e Hillary Clinton — que incluiu o caso Lewinsky — feita por Kenneth Starr que fez uma longa avaliação do caso e a entregou em forma de relatório ao Comité de Justiça da Câmara dos Representantes. Na verdade, é imprevisível.

Quem já pediu o impeachment de Trump?

A acreditar nas sondagens, quase metade dos norte-americanos já o pediu. De acordo com uma sondagem de fevereiro da Public Policy Polling, 46% dos norte-americanos concordam com o processo. A opinião pública (e em particular as sondagens) costumam ser importantes para as decisões dos membros do Congresso. No caso de Nixon, o impeachment avançou com um Congresso controlado por democratas, e Clinton num Congresso controlado por republicanos.

Para Trump ser acusado, seria necessário que os membros do partido se voltassem contra ele. Daí que a aprovação de Trump junto do eleitorado republicano seja importante para o desfecho de um impeachment — se estiver ao lado do Presidente, dificilmente os republicanos votarão contra Donald Trump. O Guardian fala ainda na hipótese de os republicanos tentarem, em caso da situação se complicar para Trump, negociar com o magnata abdicar a favor de Pence, um ex-congressista que vêem como um deles.

Do lado democrata, é mais previsível que comecem a chover pedidos de impeachment, havendo já várias sugestões nesse sentido. Houve também quem o dissesse com todas as letras: i-m-p-e-a-c-h-m-e-m-t. O senador democrata, Mark Pocan (Wisconsin) já disse em fevereiro que, se Trump não mudasse de atitude e não se afastasse definitivamente dos seus negócios, o Senado teria de explorar outras opções “incluindo diretrizes legislativas, resoluções de desaprovação e até mesmo explorar o poder de impeachment “. O congressista Al Green, democrata do Texas, organizou, na segunda-feira, uma conferência de imprensa para pedir o afastamento de Donald Trump. E hoje voltou a renovar o pedido: vai avançar esta quarta-feira no Congresso com o pedido de impeachment do presidente norte-americano, intenção essa que anunciou ao início da manhã através da sua conta de Twitter.

David Gergen, ex-conselheiro de três presidentes — incluindo Richard Nixon e Bill Clinton, que enfrentaram processos de impeachment –, considera que o pedido de Donald Trump, descrito no “memo” de Comey, pode entrar em “território de impeachment”.

David Gergen confessa que “depois de assistir ao processo de impeachment de Clinton” pensou que “nunca veria outro. Mas este caso está território de impeachment”. Lembrou ainda que “obstrução da justiça” foi principal acusação contra Nixon e também aquela que o derrubou.

De que pode Trump ser acusado?

Até agora, a tese mais forte é de “obstrução à justiça” e até foi defendida no editorial do New York Times, que destaca que “o presidente dos Estados Unidos pode ter muito poder, como o sr. Trump gosta de nos lembrar, mas esse poder não se estende para obstruir uma investigação federal“. E lembra a frase fatal que Donald Trump terá dito a James Comey, quanto à investigação às ligações à Rússia do seu ex-conselheiro para a segurança, Michael T. Flynn: “I hope you can let this go.” Basicamente: “Espero que deixe cair [a investigação].”

É nesta frase que pode estar o argumento-base para a acusação de obstrução à justiça. O New York Times divulgou o relatório em que James Comey confirma que Donald Trump lhe pediu para desistir da investigação a Flynn. Ainda antes de ser revelada esta informação, Trump já ameaçara Comey no Twitter: “James Comey deve rezar para que não existam gravações das nossas conversas antes de começar a passar informações à imprensa”, escreveu.

O tweet é um um aviso a Comey. Na terça-feira, a Casa Branca emitia uma declaração a garantir que “o presidente nunca pediu ao Sr. Comey ou a qualquer outra pessoa para encerrar qualquer investigação, incluindo qualquer investigação que envolva o General Flynn”. A mesma nota acrescentava que as informações vindas a público não eram “um retrato verdadeiro ou exato da conversa entre o presidente e o Sr. Comey.”

Esta crise levanta ainda questões urgentes de abuso do poder, como regista o editorial do New York Times. O artigo aponta que “a Casa Branca não pode policiar-se e os americanos não podem ter um pingo de fé no Departamento de Justiça, que é dirigido por um procurador-geral, Jeff Sessions, que era o líder de claque de Trump no Senado“. Além disso, aponta o diário norte-americano, “o vice-procurador-geral Rod Rosenstein, que tem o poder de nomear um advogado especial, não deu qualquer indicação de que planeia fazê-lo“.

O que é obstrução de justiça?

Há várias leis federais que penalizam ações que bloqueiam investigações oficiais. A lei tipifica exemplos típicos de obstrução à justiça como matar testemunhas ou destruir provas, mas também inclui referências mais abrangentes onde se podia incluir a alegada ameaça de Donald Trump. A lei é ampla (“catchall”) e considera como crime alguém que “obstrui, influencia ou impede qualquer procedimento oficial”. Ora, aqui cabe tudo – inclusivamente, a confirmar-se, a pressão de Trump.

Como convencer os republicanos a alinharem?

Resposta simples: sondagens e popularidade.

Os republicanos chegaram a antecipar que fariam o pedido de impeachment de Hillary Clinton, caso a candidata democrata fosse eleita. Isso seria sempre um tiro de pólvora seca sem o apoio democrata, já que apesar de serem minoritários, os democratas têm 48 dos 100 assentos do Senado e são (sempre) necessários dois terços.

Neste caso, a situação ainda parece mais inofensiva numa lógica de proteção do próprio partido. Isto porque aos 48 democratas teriam de se juntar, pelo menos, 27 senadores republicanos. A pressão já começou. O New York Times questiona: “Quando é que os republicanos no Congresso vão dizer basta? Será que precisam que as taxas de aprovação de Trump se afundem para abaixo dos 30%? Será que precisam primeiro de executar a sua agenda profundamente impopular? Ou é possível que possam finalmente pesarem bem nas suas consciências e lembrarem-se que fizeram um juramento para defender a Constituição?”

Pode Trump imitar Nixon se estiver encurralado e demitir-se?

Neste caso, é importante o nível de envolvimento de Mike Pence. Será que também pode vir a estar implicado neste processo? É que Pence seria sempre fundamental para negociar a demissão de Donald Trump. Desde logo, se fosse acusado ou estivesse em vias de ser acusado, Trump poderia querer ter a garantia de que Pence lhe dava um perdão, tal como Ford deu a Nixon. E isso ser um bom incentivo para sair pelo próprio pé.

Trump pode recusar ser submetido a impeachment?

Em poucos meses, Donald Trump já deu sinais de que a tradição já não é o que era, como já avisaram membros do Congresso. O presidente impugnou juízes, contornou a legislação e viu ações executivas serem travadas por tribunais. O Guardian vê como “fácil de imaginar” recusas de Trump em submeter-se ao processo e antecipa crises constitucionais ao longo do mandato. Deixando, porém, uma pergunta em jeito de lembrança: “Quem controla os militares?”

E, em caso de ser culpado, pode recusar-se a sair?

Além do que já foi explicado na resposta anterior, é difícil analisar esta questão sem se saber qual a conjuntura. Se se recusasse a sair podia ter todo o país contra si, manifestações na rua, paralisações de serviços em protesto, entre várias outras formas de luta. Resistiria a isso? Ninguém governa contra um país. Mas sobra a mesma questão: “Quem controla os militares?” (uma pista: o chefe das Forças Armadas é Donald Trump, mas também eles poderiam, no limite, revoltar-se).

Pence pode cair com Trump?

Não é provável. Uma das razões apontadas para a maioria republicana do Congresso concordar com o impeachment de Trump é precisamente o facto de eles poderem ter, finalmente, o presidente que desejavam: Mike Pence. O único precedente neste caso é a renúncia de Spiro Agnew, em 1973, um ano antes de Nixon cair. Mas os crimes não tinham relação entre si. Nem eles caíram ao mesmo tempo.