O Governo tentou sossegar o país sobre um eventual envolvimento de grupos terroristas no assalto a Tancos, mas permanecem dúvidas e contradições. O primeiro-ministro afastou uma eventual ligação a organizações terroristas, mas, um dia depois de ter recebido essa informação, o ministro da Defesa mantinha a hipótese sobre a mesa. O próprio Ministério Público incluiu essa possibilidade na sua investigação. A responsável pelo Sistema de Segurança Interna também afastou a ideia quando, no terreno, os inspetores não descartavam essa pista. Passado quase um mês, ainda não se conhece uma versão definitiva que afaste ou confirme sem sombra de dúvidas o envolvimento de grupos terroristas numa das maiores quebras de segurança do Exército português.

Fica aqui uma sucessão de declarações, umas coincidentes outras contraditórias sobre todas as hipóteses que os responsáveis colocaram sobre a mesa depois do assalto das armas que estavam nos paióis de Tancos.

48 horas para reunir a UCAT. Helena Fazenda, secretária-geral do Sistema de Segurança Interna (SSI) só descobriu que tinha sido furtado armamento de Tancos quando viu as notícias ao início da tarde de quinta-feira, 29 de junho, reconheceu a responsável esta terça-feira no Parlamento. Não foi sequer informada pelo Exército, apesar de ser a coordenadora da luta contra o terrorismo em Portugal. “Foi noticiada a situação e a preocupação em agir foi muito grande”, revelou Helena Fazenda aos deputados, quando foi ouvida na comissão parlamentar de Defesa. “Foi noticiado e foram tomadas as medidas que poderiam ter sido tomadas”, sublinhou.

Tancos. Responsável pela Segurança Interna soube do assalto pelas notícias

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A Unidade de Coordenação Antiterrorista (UCAT), que Helena Fazenda dirige, só reuniu quase 48 horas depois de ter sido detetado o arrombamento em dois paiolins de Tancos: este é o organismo que coordena toda a informação sobre investigação e combate ao terrorismo em Portugal. “Não dispus de outro tempo para fazer aquilo que tinha de ser feito e que foi feito”, admitiu também a secretária-geral do SSI aos deputados, confrontada com o tempo que passou entre o momento em que foi descoberto o furto das armas e a reunião da UCAT.

Conclusão em 90 minutos: não é terrorismo, senhor primeiro-ministro. A reunião da UCAT começou por volta das 18h30 do dia 30 de junho, uma sexta-feira, e durou cerca de hora e meia. “O quadro inicial e de que se toma conhecimento imediatamente foi tido como um quadro de preocupação”, tendo em conta “a natureza do material que tinha desaparecido”, assumiu Helena Fazenda perante os deputados. Depois de informar os parceiros internacionais através da Europol e da Interpol, a própria Helena Fazenda telefonou a António Costa. Após aquela reunião de 90 minutos na UCAT — onde estiveram representantes dos serviços secretos (SIS e SIED), e das polícias e organismos de investigação como PJ, PSP, GNR, SEF, PGR e Polícia Marítima –, Helena Fazenda tranquilizava o primeiro-ministro sobre a ausência de riscos para a segurança interna como consequência do furto de material de guerra: Costa podia ir de férias descansado.

O próprio António Costa revelaria o conteúdo desse telefonema na primeira intervenção que fez sobre o assunto, já depois de ter regressado de férias, a meio de julho. Numa conferência de imprensa realizada depois de se ter reunido com os chefes militares e com o ministro da Defesa, António Costa revelou que, no dia 30 de junho, Helena Fazenda lhe dissera que podia concluir, “com grande probabilidade”, que o arrombamento de dois dos paiolins de Tancos “não teria qualquer impacto no risco da segurança interna e, designadamente, associação a qualquer tipo de atividade terrorista nacional ou internacional”. Apenas 48 horas depois do assalto, estavam as investigações a começar, e após uma reunião de hora e meia com as autoridades nacionais, António Costa era informado de que podia estar descansado.

Costa. Armas roubadas não representam perigo para a Segurança Interna

Secretas e PJ é que excluíam terrorismo. Segundo disse Helena Fazenda aos deputados, os “indícios” recolhidos pelo Serviço de Informações e Segurança (SIS), pelo Serviço de Informações Estratégicas de Defesa (SIED) e pela própria Polícia Judiciária (que participa na investigação) é que a levaram a assegurar o primeiro-ministro de que “não havia quaisquer elementos que pusessem em causa o grau de ameaça ao território nacional e também em matéria de terrorismo”.

Ministro da Defesa não dizia a mesma coisa: podia ser tráfico de armas ou terrorismo. Um dia depois de Helena Fazenda ter tranquilizado o primeiro-ministro com aquelas informações, José Alberto Azeredo Lopes, ministro da Defesa Nacional, deu uma interpretação diferente dos factos durante uma cerimónia da Força Aérea, em Castelo Branco. No dia 1 de julho de manhã, o ministro deu força à tese do tráfico de armas, mas não pôs o terrorismo de parte. Em resposta a um jornalista da RTP que lhe colocou uma questão sobre a possibilidade de o armamento estar com organizações terroristas, o ministro não negou:

Há, não há que escondê-lo, embora não tenhamos nenhum elemento que aponte num ou noutro sentido. Há um facto indiscutível: que esse material estará agora a tentar entrar no mercado ilícito de trafico de armas que podem depois servir para os mais diferentes fins, como o que referiu [o terrorismo]”.

Numa entrevista à SIC, na quinta-feira, dia 29 de junho, o ministro já tinha sublinhado o “profissionalismo que teve esta operação”, por ter sido “célere”, com “meios profissionais”, porque os intervenientes “sabiam o que retirar”. E acrescentou a ideia de que as armas poderiam servir para atos terroristas, mais uma vez sem usar essa palavra. “À luz da natureza instrumental” do armamento”, disse o ministro, o furto poderia ter como objetivo o abastecimento de “redes clandestinas de tráfico ou que possam indiretamente contender com a nossa segurança” — mais um eufemismo que engloba o terrorismo. “Tenho de dizer que é uma situação grave”, assumiu Azeredo Lopes.

Ministro admite terrorismo como destino das armas roubadas

As armas nem sequer estavam em condições. O primeiro-ministro estava sob pressão política, quando fez a conferência de imprensa a excluir a possibilidade de as armas estarem em mãos de terroristas. Ter mantido a decisão de ir de férias menos de três dias depois de se saber do episódio de Tancos tinha deixado o chefe do Governo fragilizado perante a oposição. Costa ignorou o pedido do CDS para que voltasse mais cedo para agarrar os comandos do país. Aparentemente enquadrado nessa estratégia de pacificação do clima, no final desse encontro entre o primeiro-ministro e os quatro chefes militares, o general Pina Monteiro, chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas disse que, “provavelmente”, os lança-granadas foguetes (o material mais relevante da lista de equipamentos furtados) nem sequer estariam em condições de ser usados “com eficácia”. Esta terça-feira, Pina Monteiro seria ouvido pelos deputados na Comissão de Defesa para repetir que os lança-granadas anti-carro estavam fora de prazo, mas ao mesmo tempo referia que o material não era obsoleto.

CEMGFA: “Material não é obsoleto”

Investigadores tinham pistas sobre militares em missões no Médio Oriente. Nesse momento, já os inspetores da Polícia Judiciária Militar tinham feito perícias aos paiolins e interrogado dezenas de militares. Militares que, com diferentes níveis de responsabilidade na hierarquia de comando, estavam incumbidos da segurança daquelas instalações. Estavam no terreno e tinham “informações essenciais” sobre a participação desses elementos em missões em diversos países do Médio Oriente. Por esses dias, apurou o Observador junto de responsáveis da investigação, procuravam-se possíveis pontos de contacto entre os militares portugueses destacados nos últimos anos e elementos ligados a organizações fundamentalistas. Entretanto, o Expresso noticiava que outra pista indicava que os assaltantes poderiam ser mercenários portugueses ligados a senhores da guerra no Médio Oriente.

Tancos. Missões no Médio Oriente investigadas: havia lista das armas a roubar

Crime organizado dizem os espanhóis que a ministra disse. No mesmo dia em que o Observador publicou essa informação, o jornal espanhol El Mundo citava fontes ligadas ao combate ao terrorismo em Espanha que garantiam que o assalto a Tancos teria sido realizado por grupos ligados ao crime organizado, não a organizações jihadistas. No mesmo artigo, o diário referia que seria essa a principal linha de investigação das autoridades judiciárias em Portugal, ainda que todas as hipóteses de trabalho “estivessem em aberto”. A informação teria sido passada pela ministra da Administração Interna portuguesa ao ministro do Interior espanhol. A juntar às versões dos governantes portugueses, as notícias de Lisboa e Madrid davam sinais de que as próprias equipas no terreno — PJ e PJM — não conseguiam acertar o passo em torno da investigação.

Não fui eu que contei, desmentiu Constança Urbano de Sousa. Essa informação, segundo o jornal espanhol, teria sido passada pela ministra da Administração Interna ao seu homólogo castelhano, mas acabou por ser negada pelo gabinete de Constança Urbano de Sousa. “Apenas esclareci o ministro do Interior de Espanha que as investigações estavam a cargo da Polícia Judiciária, que em Portugal é tutelada pelo Ministério da Justiça, pelo que não dispunha, nem podia dispor de informações detalhadas sobre investigações em curso”, disse a ministra, num comunicado enviado às redações. “Apenas afirmei que as autoridades portuguesas estavam a fazer tudo o que estava ao seu alcance para investigar este caso”, concluía Urbano de Sousa, sem quaisquer referências concretas às motivações que estariam na base do assalto.

PGR investiga tráfico de armas sem descartar terrorismo. É precisamente nesse contexto que a Procuradoria-Geral da República divulga o seu primeiro (e único, até ao momento) comunicado sobre o caso. Contrariando as informações do SSI — em que a própria PJ tem assento e que, nos dois primeiros encontros após o furto, contaram com a presença dos procuradores responsáveis pelo processo –, o comunicado veio confirmar que tinham sido “iniciadas investigações” ao assalto e que estavam em causa, entre outras:

Suspeitas da prática dos crimes de associação criminosa, tráfico de armas internacional e terrorismo internacional”.

Há duas semanas, António Costa manteve-se fiel aos dados que tinha recebido nos primeiros dias após o assalto e que terão sido revalidados ao ministro dos Negócios Estrangeiros, em representação do primeiro-ministro, numa segunda reunião da UCAT, a 5 de julho. Ainda que o Ministério Público, titular do inquérito, não tenha até ao momento alterado uma vírgula ao comunicado que divulgou uma semana após o assalto. Sem suspeitos formalmente identificados, apesar de muitos rumores sobre uma intervenção no interior do Exército que poderá ter facilitado o furto do armamento, a investigação continua à procura de pistas que liguem o material roubado aos autores do assalto.