O relatório da comissão técnica independente criada para avaliar os incêndios de Pedrógão Grande aponta uma série de falhas na resposta ao fogo que vitimou 64 pessoas entre os dias 17 e 24 de junho. Levanta perguntas e cenários alternativos e deixa várias recomendações para o futuro.

As decisões estratégicas contribuíram para mortes registadas?

Sim. Nesta matéria, os técnicos não deixam espaço para dúvidas: “as consequências catastróficas do incêndio“, nomeadamente as 64 mortes registadas, “não são alheias às opções táticas e estratégicas que foram tomadas“.

Por outro lado, as disposições assumidas relativamente “à circulação na rede viária, acompanhamento da população rural e preparação de evacuações” deveriam ter sido “equacionadas logo às 16:00-17:00 e cumpridas a partir das 18 horas”, algo que não aconteceu.

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O relatório aponta para outro dado relevante: “45 das 64 vítimas (70%) estariam a fugir ao incêndio, tendo-se deslocado em viaturas”. Terão percorrido entre 100 metros a 2,4 quilómetros até terem sido atingidos pelas chamas. Mais: “dezoito vítimas mortais (28%) não estariam a fugir ao incêndio”, mas podiam estar de “passagem, de visita ao território, de regresso ao seu alojamento ou terão saído de casa para ir ver onde ‘andava o incêndio'”.

A maioria das vítimas do incêndio (52%) morreu dentro dos carros em que seguiam. Além disso, outra grande fatia (23%) das vítimas “morreu próximo das viaturas, até um raio de 50 metros”. Em menos de 60 minutos, entre as 19h50 e as 20h40 do dia 17 de junho, morreram 62 pessoas, grande parte na EN 236-1, conhecida como a “estrada da morte”. Tudo se terá precipitado “por volta das 20h10”, escrevem os autores do relatório.

O ataque ao fogo foi bem planeado?

Não. A resposta dos especialistas pode ser dividida em duas partes: as previsões meteorológicas previstas para aquele período não foram devidamente tomadas em consideração pelas autoridades responsáveis e a resposta ao incêndio não foi a que se exigia.

Quanto ao primeiro ponto, os especialistas são claros: “As condições meteorológicas previstas e verificadas para os dias 17 de junho e seguintes eram de risco muito elevado ou extremo, como de resto e à data foi amplamente noticiado pela maioria dos órgãos de comunicação social”. No entanto, e apesar do estado de sobreaviso, os responsáveis não fizeram “nenhum pré-posicionamento de meios”, concluem os técnicos independentes.

Sobre a resposta ao incêndio, a comissão técnica faz uma primeira avaliação sobre o Ataque Inicial (ATI). Os técnicos sublinham que a operação seguiu todas as regras definidas, mas não deixam de questionar o “excesso de zelo” dos responsáveis por não enviarem um segundo meio aéreo para o local — possibilidade acautelada nos protocolos de combate ao incêndio.

Tudo se complicou na segunda fase da operação — Ataque Avançado (ATA). Aí, os especialistas da comissão técnica que produziu o relatório concluíram:

  • Na fase crítica do incêndio, os meios terrestres foram mobilizados, mas estavam ainda em trânsito no período mais sensível;
  • Os meios aéreos foram escassos e não estiveram disponíveis durante duas horas; paralelamente, a “assunção de um comportamento violento do incêndio”;
  • A alteração da orientação do fogo deixou os meios do Corpo de Bombeiros de Pedrógão Grande e os demais empenhados no ATI “na traseira do incêndio e/ou impedidos pelo incêndio de circular na rede viária do seu concelho”;
  • Além disso, os bombeiros de Castanheira de Pera e de Figueiró de Vinhos viram-se obrigados a defender as imediações das aldeias nos seus concelhos.

A conclusão não podia ser mais evidente: “A partir do momento em que foi comunicado o alerta de incêndio, não houve a perceção da gravidade potencial do fogo, não se mobilizaram totalmente os meios que estavam disponíveis e os fenómenos meteorológicos extremos acabaram por conduzir o fogo, até às 03h00 do dia 18 de junho, a uma situação perfeitamente incontrolável”.

Mais, acrescentam: “Houve uma subavaliação e excesso de zelo na análise da fase inicial do incêndio de Pedrógão Grande”, o que fez com que “o ataque inicial não conseguisse debelar o avanço do fogo”.

Ficou tudo registado na fita do tempo?

Não. A meio da madrugada, e quando já se acumulavam os pedidos de ajuda de populações isoladas, rodeadas pelas chamas, Albino Tavares – atual comandante operacional nacional, depois de Rui Esteves ter apresentado a demissão do cargo – mandou interromper os registos na fita do tempo.

A partir daquela hora todos os alertas deveriam ser comunicados ao Posto de Comando Operacional por telefone, e só após validação do mesmo, seriam ou não inseridos na fita do tempo do SADO”. Ouvido pela comissão independente, o comandante justificou essa decisão com “o excesso de informação que era produzida a partir do CDOS de Leiria”, refere o relatório da comissão independente.”

A ordem viola todos os procedimentos estabelecidos. “Este procedimento contraria o Sistema de Gestão de Operações, bem como toda a doutrina instituída relacionada com o funcionamento do SADO”, refere o relatório da comissão independente. Aliás, “todas as situações críticas devem, até de forma intempestiva, ficar registadas no sistema, independentemente da determinação operacional associada”, sublinham os especialistas.

Ao ter dado indicações para suspender os registos oficiais das operações, Albino Tavares pode ter contribuído para “subtrair à fita do tempo do SADO informações que poderiam ser importantes para a compreensão dos acontecimentos na noite de 17 para 18”. No limite, “pode até admitir-se que, para além das falhas de comunicação provocados pela rede SIRESP, pudesse ter havido pedidos de ajuda veiculadas através de chamadas efetuadas para o PCO mas que não teriam sido registadas”.

Consequência última: “As informações [não] registadas podem ter impedido que se conheça completamente o que se passou naquele período de tempo, introduzindo uma exceção no procedimento de que deveria ter sido executado de forma inquestionável”.

Os especialistas consideram até “excecional” que tenham sido dadas indicações para que os alertas sobre as dificuldades de comunicações que estavam a chegar ao posto de comando não fossem registados na fita do tempo. “Este procedimento contraria o Sistema de Gestão de Operações, bem como toda a doutrina instituída relacionada com o funcionamento do SADO”, sublinha o relatório.

As dificuldades de comunicações constam dos relatórios enviados pela GNR e pela própria ANPC ao Ministério da Administração Interna e estenderam-se, entre outras situações, ao cenário dantesco que se abatia sobre a EN236-1, onde acabariam por morrer a maior parte das vítimas. Albino Tavares, que era o segundo comandante distrital, disse nunca ter chegado a receber a informação de que o incêndio tinha alcançado aquela estrada. Essa foi apenas uma das informações que não chegaram ao posto de comando.

Comandante Nacional da Proteção Civil conduziu bem a operação?

Não. Rui Esteves, que em setembro deste ano se demitiu do cargo de Comandante Nacional da Proteção Civil, não escapa ileso às críticas dos técnicos independentes, depois de ter atribuído o controlo das operações ao segundo comandante, Albino Tavares — que o substituiria, meses mais tarde, no cargo.

“Na pior e mais fatídica ocorrência no País provocada por incêndio florestal, tendo estado presentes as mais altas individualidades do país, esta operação de socorro exigiria a presença dos operacionais mais qualificados, designadamente do Comandante Operacional Nacional (CONAC), que deveria ter mantido a avocação desta operação de Socorro”, pode ler-se no relatório. Não foi isso que aconteceu.

Não só a “presença ativa do Comandante Nacional teria todo o sentido pelo facto de se estar perante uma das piores catástrofes com que o país alguma vez foi confrontado”, argumentam, como “mais de 95% das ocorrências foram acompanhadas e resolvidas pelos respetivos Comandos Distritais”.

Albino Tavares, no entanto, também não é poupado. Além da questão da fita do tempo, muito criticada pelos técnicos independentes, para os especialistas, Albino Tavares deveria ter mantido o controlo da operação até que o incêndio fosse debelado. Algo que também não fez: às 20h50 do dia 18 de junho, pouco mais de 48 horas depois do início do fogo de Pedrógão Grande, o então Segundo Comandante Operacional entregou a missão a Elísio Oliveira, do Comando Distrital de Setúbal.

Essa iniciativa, em rigor, não se ajustou à doutrina vigente. Depois de o COS ser o 2.º CONAC, o comando da operação desgraduou para um CODIS. Enquanto um incêndio não estiver dominado, a doutrina aponta para não desgraduar o seu comando”, sublinham os especialistas.

Os técnicos independentes lembram, a propósito, o currículo de Albino Tavares, que até desempenhar as funções que desempenhava à altura dos factos, era Comandante do GIPS da GNR. “Atendendo a que se trata de um oficial superior da GNR, o desempenho dessas funções dá-lhe um natural conhecimento do sector, não lhe conferindo a necessária capacidade de comando operacional”, argumentam.

Mais: os especialistas questionam mesmo a escolha de Albino Tavares para aquela função. “Embora no momento de atribuição do COS, não fosse ainda conhecida a dimensão dos acontecimentos (22h00 do dia 17), a evolução da situação foi revelando o enorme impacto que estava a ter na região. Talvez fosse possível encontrar uma nova solução para a função de COS, através de um operacional com maior experiência em operações de socorro com esta dimensão”, pode ler-se no relatório.

O SIRESP falhou e contribuiu para a dimensão da tragédia?

Sim. A comissão técnica presidida por João Guerreiro escreve no relatório que “foi público e notório a falha da rede SIRESP, associada também à falha da rede GSM”, ou seja da rede de telemóveis. O documento enfatiza que “estão registadas inúmeras passagens na fita de tempo” relativas às falhas de comunicações, assim como no relatório final do processo de inquérito da GNR. O relatório ainda diz que o SIRESP é gerido por empresas de “credibilidade duvidosa”, argumenta que a tecnologia já está “obsoleta” e recomenda mais formação para os operacionais.

Em momentos críticos do combate ao fogo, “um crescente aumento de meios e de utilizadores”, levaram a “intermitências nas comunicações SIRESP, levando até nesta fase à mudança da localização” do Posto de Comando Operacional, cujo posicionamento “também concorre para a eficácia e eficiência das comunicações”. As falhas do SIRESP foram sendo colmatadas com o recurso aos telemóveis e à Rede Operacional dos Bombeiros. “Estas redes permitiram superar pontualmente as ineficiências da rede SIRESP funcionando como redes redundantes.”

A comissão técnica reconhece que a rede SIRESP foi importante para melhorar as comunicações de emergência, mas está “obsoleta” e “baseada em tecnologia ultrapassada (quando comparada com as tecnologias 3G e 4G)” e “não acompanhou a evolução vertiginosa que as tecnologias de comunicação sofreram nos últimos anos”.

Em termos operacionais, confirma-se que “cinco antenas deixaram de estar conectadas com a rede, permitindo apenas comunicações locais” na região de Pedrógão Grande. Isso contribuiu para o congestionamento da rede prejudicando ainda mais as comunicações. E segue depois uma crítica ao relatório da empresas que gere o sistema: “Embora esta situação seja desvalorizada pela empresa SIRESP, reconhece-se que esta solução não pode ser admitida numa rede que necessita de garantir comunicações entre os diversos pontos de decisão, muitos deles distantes centenas de quilómetros, destinada a mobilizar recursos, a definir atuações de meios aéreos ou de estabelecer estratégias de evacuação de pessoas.”

No entanto, o relatório conclui que no caso específico do “incêndio de Góis, ficou claro que as comunicações não comprometeram em nenhum momento as operações”.

No que se refere à arquitetura do sistema de comunicações de emergência, a comissão técnica ainda aponta para a necessidade de o sistema se basear mais em antenas móveis — mais um dos fatores que falhou em Pedrógão Grande. E sugere que por estar a ser usada tecnologia obsoleta, como é referido em vários pontos, o sistema possa evoluir “para as novas tecnologias baseadas no 3G ou ainda no 4G”.

O relatório deixa as seguintes recomendações para a rede de comunicações SIRESP:

  • Revisitar as condições do concurso no que respeita à instalação da fibra ótica, bem como a estrutura empresarial do SIRESP, a qual integra na atualidade empresas insolventes, em processo de revitalização ou de credibilidade duvidosa;
  • Desenvolver um intensivo programa de formação orientado para os utilizadores dos terminais SIRESP, para que todos esses agentes possam explorar o potencial dos sistemas de comunicações;
  • Avançar com um período de análise de outros sistemas de comunicação existentes, tecnologicamente mais avançados (3G ou 4G), criando um roteiro capaz de avaliar e selecionar as melhores soluções para o sistema de comunicações de emergência;
  • Aumentar o número de antenas móveis e distribuí-las criteriosamente pelo território, em função das áreas de maior risco;
  • Garantir que a rede de fibra ótica utilize, sempre que possível, as condutas subterrâneas existentes ao longo dos itinerários rodoviários;

A intervenção política prejudicou a resposta operacional?

Sim. Pelo menos é essa a conclusão dos especialistas, que citam testemunhos de “operacionais, autarcas, agentes de proteção civil”, entre outros. De acordo com estas fontes, “o Posto de Comando Operacional (PCO) estava permanentemente superlotado, desorganizado, desorientado, descoordenado, com autoridades políticas a intervirem também nas decisões operacionais”.

Ainda que nunca refiram nomes, os especialistas parecem estar a apontar dois responsáveis que estiveram no local quase em permanência: a ministra da Administração Interna, Constança Urbana de Sousa, e o secretário de Estado da Administração Interna, Jorge Gomes. Ambos foram presenças ativas no posto de comando durante praticamente todo o combate ao incêndio de Pedrógão Grande.

O relatório questiona também a presença “em peso” da comunicação social. “O comando e coordenação da operação era obrigado a intervalar o seu trabalho para realizar briefings às diferentes autoridades e entidades que ali se deslocaram”, pode ler-se no relatório.

Daí, concluem: “A organização do PCO [Posto de Comando Operacional] prevê a realização de briefings à hora certa com os órgãos de comunicação social. Prevê igualmente a nomeação pelo Comando de Operação de Socorro (COS) de um oficial para as relações públicas, para os momentos em que seja manifesta a sua indisponibilidade. O comando de uma operação de socorro não pode ser prejudicado por estas circunstâncias, como parece ter acontecido em vários momentos.”

Mais à frente, os especialistas voltam a mencionar “a presença continuada de altas autoridades”, algo que “perturba naturalmente os trabalhos de comando”

O COS [Comandante de Operação e Socorro], por muito experiente que seja, tem que ter uma disponibilidade permanente para a ação de coordenação e comando, pois num cenário destes são tomadas dezenas de decisões por hora. A presença continuada de altas autoridades, que aguardam pelas suas explicações, perturba naturalmente os trabalhos de comando. Por estes motivos, recomenda-se que altas entidades deveriam estar presentes em áreas específicas com coordenação dedicada”, atentam os especialistas.

A GNR tem responsabilidades na concentração de carros na “estrada da morte”?

Inconclusivo. A GNR começou a acompanhar os desenvolvimentos do incêndio a partir das 15h17. De acordo com os autores do relatório, que citam documentos analisados, “a GNR não teve qualquer contacto por parte do Comando Distrital de Operações de Socorro (CDOS) relativamente ao incêndio e que os cortes de estradas foram decididos pela própria GNR, não tendo recebido quaisquer indicações por parte do Comando Operacional (COS)”.

“Uma das razões invocadas”, continuam os técnicos independentes, “prende-se com as sucessivas falhas nas comunicações”, algo que se terá registado “a partir das 19h”. A partir daí, “e devido à ausência de instruções, as patrulhas terão passado a movimentar-se sozinhas acompanhando o evoluir do incêndio“.

De acordo com o relatório, que reforça a tese da GNR de que não foram dadas ordens para cortar a Estrada Nacional 236-1, há contradições evidentes entre as versões recolhidas entre os agentes que estavam de serviço e as testemunhas civis que “referem a existência de uma fila de trânsito que se terá formado na EN 236-1, no troço entre o nó com o IC 8 e o cruzamento para Várzea/Vila Facaia, em momento não determinado mas não muito tempo depois das 20h” — altura em que muitas pessoas tentavam escapar às chamas.

A este respeito o relatório da GNR é completamente omisso, apesar de terem sido ouvidas várias testemunhas civis no âmbito do inquérito”, atentam os técnicos indepedentes.

Ainda que admitam que “a atuação da GNR pareça, de acordo com as informações recolhidas, ter sido a correta, dentro de todos os condicionalismos, nomeadamente de comunicações, e tendo em conta a excecionalidade da situação”, não deixam de sublinhar que fica por apurar até que ponto o corte do acesso ao IC 8, terá tido alguma influência no relatado congestionamento de trânsito na EN 236-1 entre o cruzamento com estrada Várzea/Vila Facaia e o nó com o IC 8″.

Além disso, “fica também por apurar a aparente contradição sobre o relato de não haver trânsito naquela via entre as 20h e as 20h15, e os relatos que referem a existência de um congestionamento de trânsito”, atentam os especialistas nomeados.

Mais: “Finalmente fica por apurar porque razão, perante a rápida aproximação da frente de fogo, não foi feito o corte da EN 236-1 na direção Figueiró dos Vinhos – Castanheira de Pera. A justificação de não haver ordens do COS nesse sentido, contrasta com a descrição de que os cortes de estrada foram essencialmente tomados por livre iniciativa dos militares da GNR, de acordo com a sua perceção do risco para a circulação do trânsito”, concluem os investigadores.

O que poderia ter sido diferente? É precisamente essa a pergunta que fazem os técnicos independentes. Há um cenário que é descartado: o corte das estradas de acesso à EN 236-1 “teria sido provavelmente ainda pior pois teria eventualmente implicado a ocorrência de mais vítimas, incluindo os próprios agentes da autoridade”.

Mas há duas medidas que podiam ser tomadas, embora ambas dependessem “de informação que a GNR não dispunha”. À cabeça, “poderia ter sido ordenada a evacuação atempada das aldeias ameaçadas“, ou, em alternativa, “poderiam ter sido tomadas medidas para que as pessoas não saíssem de casa“, algo que não foi feito em tempo útil.

Porquê? Os especialistas têm uma explicação. “Este trabalho de antecipação deveria ter sido feito no seio do comando e planeamento desta operação de socorro e deveria ter resultado na mobilização dos meios necessários, incluindo a GNR, para evitar que se tivesse verificado uma fuga para a morte, tal como veio a acontecer. Por sua vez, tal trabalho de antecipação só poderia ter sido feito com o apoio de analistas de incêndios e de meteorologistas especializados, que permitisse uma adequada avaliação da situação em tempo real. A verdade é que nenhuma destas competências existe na Autoridade Nacional de Proteção Civil, apesar da enorme gravidade e frequência dos incêndios em Portugal”, concluem.

Os comandantes da Proteção Civil têm competência para as funções que desempenham?

Inconclusivo. Como atentam os especialistas, não existe um “sistema de verificação ou validação oficial da capacidade dos nomeados para o desempenho das funções” que são atribuídas aos comandantes da Autoridade Nacional de Proteção Civil, refere o relatório entregue esta quinta-feira na Assembleia da República. Na prática, os comandantes são nomeados sem que haja, depois, uma avaliação do seu desempenho. Os especialistas entendem a estrutura precisa de maior incorporação de conhecimento e que o debate não se pode resumir aos números de operacionais ou viaturas no combate aos incêndios.

E isso acontece porque não há sequer “perfis” definidos para cada função a desempenhar de comando nas áreas operacionais.

Não existem, em qualquer das áreas de competência da proteção e socorro, perfis definidos e conteúdos funcionais, nem sistema de verificação ou validação oficial da capacidade dos nomeados para o desempenho das funções”, refere o documento.

O mesmo acontece com os “conteúdos funcionais” dos cargos que desempenham. Toda a estrutura de comando operacional da Proteção Civil funciona de forma quase amadora, sendo que “o sistema atual não diferencia nem promove especialização, capacidade ou qualidade de desempenho”.

A avaliação bastante crítica da estrutura da Proteção Civil não fica por aqui. Os especialistas referem que também não existe uma “correlação” – que o grupo considera que deveria ser “obrigatória” – entre as “competências pessoais” dos elementos da Proteção Civil e as funções para que são nomeados. “Os cargos de comando/coordenação da estrutura operacional (EO) da ANPC são atribuídos por nomeação e não por concurso, apenas existindo o requisito de possuir uma licenciatura (qualquer área de formação)”, destacam os especialistas.

Ao mesmo tempo, são apontadas como “componentes decisivas” para a melhoria do sistema de resposta da Proteção Civil a “qualificação dos recursos humanos” e a “maior incorporação do conhecimento na previsão, na avaliação e na atuação perante as diversas situações”. É, aliás, “urgente”, que este aspeto seja revisto para que se possa “superar a atual situação, caracterizada por um misto de voluntarismo e de ausência de confiança na estrutura”.

Essas fragilidades têm uma consequência no modelo de combate aos incêndios. Porque “as perspetivas de sucesso do combate não podem estar predominantemente associadas ao número e à capacidade dos meios”, concluem os especialistas da comissão independente.

Devia haver mudanças na cobertura da floresta?

Sim. Mais espécies autóctones em vez de eucaliptos e pinheiros bravo.

Sobre a cobertura da floresta, os especialistas dizem que os espaços florestais contínuos ocupados predominantemente por eucaliptos e pinheiro bravo “geram incêndios graves e severos”. Por isso, a diversificação dos tipos florestais menos propensos ao fogo pode ser “uma resposta de raiz ao problema dos incêndios”. E por isso propõem incentivos à plantação de carvalhos, castanheiros e outras folhosas.

A comissão recomenda a opção por “modelos de silvicultura que utilizem espécies de crescimento mais lento”, os quais “podem ser mais interessantes do ponto de vista da economia dos proprietários florestais”, embora impliquem “um período de espera” de vários anos.

Por isso, a comissão entende que deve ser igualmente criado um “programa específico que compense a perda de rendimento por alguns anos” com a opção por carvalhos, castanheiros e outras folhosas. Ou seja, o regresso à floresta autóctone, em detrimento do eucalipto e do pinheiro-bravo, teria “menor perigo de incêndio para as próprias florestas e para as aldeias existentes no espaço florestal”.

Que recomendações fazem os técnicos para o futuro?

Várias, e os técnicos admitem que devem ser adotadas progressivamente a médio e a longo prazo. É longa a lista de recomendações, e divide-se em sete áreas: Sistema de defesa da floresta contra incêndios; Conhecimento profissional; Recursos Humanos, que passa pela maior qualificação dos bombeiros e comandantes; Ordenamento e Gestão, nomeadamente através da reflorestação e da substituição das monoculturas de eucalipto e pinheiro bravo; Gestão de operações de combate, que passa pela melhoria do sistema de comunicações e de registo de informações; Populações, onde se inclui a melhor colaboração com os locais; e a criação de uma Agência para a gestão integrada dos fogos rurais.

  1. Sistema. Primeiro, os técnicos defendem o ajustamento do sistema, passando a designar-se Sistema Nacional de Gestão Integrada de Fogos Rurais, com duas componentes: o Gestão de Fogos Rurais, orientado para os espaços florestais, e o Proteção Contra Incêndios Rurais, abrangendo as pessoas e bens. Depois, defendem que os vários elementos (desde os GIPS aos FEB e aos agentes da Proteção Civil) devem fazer parte também da fase de prevenção estrutural, para haver maior integração nas diversas componentes do sistema. Por último, deve haver avaliações periódicas ao sistema.
  2. Conhecimento. Depois de diagnosticado o “amadorismo” e o facto de “muitas das decisões serem tomadas apenas com base em conhecimento empírico e baseadas em perceções normalmente questionáveis”, a comissão recomenda que a qualificação seja uma prioridade. Mais, a investigação científica, as universidades e os laboratórios de Estado devem dar um maior contributo para os profissionais de prevenção e combate aos fogos.
  3. Recursos Humanos. Mais qualificação no sistema, nomeadamente através da ideia de que o sistema português devia integrar o perfil de qualificação europeu. Os técnicos recomendam que deve haver concurso público para escolher os operacionais destinados a lugares de comando. Mais: a Escola Nacional de Bombeiros deve ser transformada numa escola profissional, capaz de formar perfis profissionais acreditados.
  4. Ordenamento e gestão. Os técnicos reconhecem que monoculturas de eucalipto ou pinheiro bravo são propensas a incêndios de grandes dimensões, apelando por isso à diversificação da floresta e a utilização de espécies que conduzam a formações menos combustíveis, nomeadamente das folhosas de folha caduca, como os carvalhos, castanheiros ou outras folhosas, por terem um grande teor de humidade. Recomendam também a compartimentação das manchas florestais através de 19 plantações novas, com outras espécies arbóreas ou arbustivas de baixa inflamabilidade/combustibilidade ou plantadas em faixas de alta densidade, promovendo um efeito de barreira.
  5. Proteção Civil. É preciso reforçar as forças profissionais nas várias fases de atuação, por isso os técnicos recomendam a criação de uma bolsa de peritos, nacionais e internacionais, que devem ser mobilizados prontamente em caso de socorro. Sobre a rede SIRESP (ler pergunta 4) há muitas críticas, nomeadamente por se basear em tecnologia obsoleta. Por último, os técnicos recomendam que as Forças Armadas devem ter um papel mais ativo no sistema de Proteção Civil.
  6. Populações. A comissão recomenda a adoção de um programa de proteção de pessoas e bens contra fogos rurais, baseado na criação de zonas de proteção aos aglomerados e na identificação de pontos críticos e de locais de refúgio. Mais: defende-se também a criação de sistemas de aviso e alerta que chegue mais rapidamente às populações.
  7. Criação de uma Agência de Gestão Integrada de Fogos (AGIF), que ficasse na dependência direta da Presidência do Conselho de Ministros, e que seja constituída por técnicos especializados nas várias dos incêndios. Seria uma unidade que anteciparia o apoio ao planeamento, à decisão e à intervenção.