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O que disse Rui Rio nas entrelinhas no primeiro discurso ao Congresso

Este artigo tem mais de 5 anos

Rui Rio escancara a porta a acordos com o PS? Mata mesmo a possibilidade do Bloco Central? Como quer reformar a Justiça? E mudar o partido? Miguel Pinheiro e Vítor Matos fazem a leitura do discurso.

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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

O primeiro discurso de Rui Rio como líder do PSD foi longo, escrito, com 18 páginas no total. Falou para dentro do partido, mas também para o PS, e para o país. Mas não deu respostas a tudo o que enunciou e manteve muitas das formulações vagas. Tentámos perceber o que o novo presidente do PSD queria dizer, mas também comentámos o que ele disse.

O discurso de Rui Rio está em itálico e os comentários e interpretações estão a amarelo.

“Do muito que fizemos, desde a nossa fundação em maio de 1974, seguramente que se conta também a nossa mais recente governação, em que juntamente com o CDS – que daqui saúdo em especial – fomos chamados a cumprir patrioticamente um exigente programa de austeridade, desenhado e negociado por outros; ou seja, pelos que meteram o País no buraco financeiro mais negro do pós 25 de Abril”.

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Numa só frase (é longa, mas é só uma frase), Rui Rio toca em três pontos delicados. Depois das críticas que fez nos últimos anos a Passos Coelho, assume agora, sem ambiguidades, a bondade da “mais recente governação” do partido. Depois do frio distanciamento de Assunção Cristas em relação ao PSD nos últimos tempos, Rio dá aos centristas um estatuto de igualdade no último governo e faz questão de fazer uma saudação “especial” ao CDS. Depois das dúvidas dos seus críticos em relação à forma como vê os socialistas, faz questão de atacar o PS socrático, que “meteu o País no buraco financeiro mais negro do pós 25 de Abril”.

“O Pedro Santana Lopes cumpriu mais um ato de militância ativa e empenhada. (…) Por isso, parte da minha vitória é, também, do Pedro Santana Lopes e daqueles que estiveram de forma digna e sincera com a sua candidatura”.

Já se percebeu que Rui Rio e Pedro Santana Lopes se podem entender muito bem, se as combinações durante o congresso tiverem sucesso. O novo líder do PSD convidou o ex-adversário para ser cabeça de lista ao Conselho Nacional. Mas o novo líder quase cumpre aqui uma obrigação de todos os presidentes do partido: apaziguar o principal adversário interno, para atenuar as fações críticas. Atenção: isto só abrange os que foram dignos e os sinceros, onde entra Fernando Negrão -- o candidato a líder parlamentar. Ficam de fora os calculistas.

“Comigo à frente do partido, iremos sempre fazer uma evolução em harmonia com a nossa história – sem ferir os nossos princípios de sempre, sem confrontos geracionais, sem sobressaltos ideológicos e sem rupturas desnecessárias”.

Passos Coelho foi acusado de romper com a social-democracia “de sempre” e de entregar o PSD ao liberalismo com um “sobressalto ideológico” sem precedentes; foi acusado de ter colocado as novas gerações contra as velhas gerações, como se estas fossem a “peste grisalha”; e foi acusado de provocar “rupturas” com o PS, com os funcionários públicos e com o “centro. Mas, seguramente, Rui Rio não estava a falar sobre Passos Coelho nesta passagem do seu discurso. Ou estava?

“Portugal tem um conjunto de estrangulamentos estruturais que nenhum partido está capaz de resolver isoladamente, e que condicionam fortemente o seu desenvolvimento. Um partido que põe o país em primeiro lugar é um partido disponível para, em nome do superior interesse nacional, procurar dialogar e resolver com os outros, o que sozinho jamais conseguirá com a indispensável eficácia”.

Este é um dos pontos-chave do discurso, e um grande contraste com o tom do discurso anterior de Pedro Passos Coelho. Rui Rio admite, como foi fazendo na campanha, que não é possível resolver os problemas do país sem que PS e PSD se ponham de acordo. No atual momento político, isso tem todo o significado: se para resolver os problemas do país é preciso entendimentos ao centro, então o PS com a esquerda não resolve os estrangulamentos estruturais. Nem sequer o PSD se ganhar as eleições. A porta está aberta. É uma questão de agora se ver o que cabe lá dentro. Resta saber se António Costa está disponível para pôr a “geringonça” em perigo. Ou se vai dar alguma coisa ao PSD para mostrar à esquerda que a geometria do sistema é mesmo variável. E que os parceiros de esquerda têm de baixar o nível de exigência.

“Não podem estar presentes na nossa equação apenas os parâmetros que valorizam a vertente tática de interesses menores, muitas vezes ancorados num discurso de reserva mental. Nem podem toldar o nosso caminho análises políticas de circunstância (…) permitindo que a futilidade e o efémero se sobreponham ao que é verdadeiramente essencial”.

Como forma de justificar eventuais acordos com o PS, Rui Rio parecia aqui estar a fazer uma crítica ao que Passos Coelho dissera minutos antes. É claro que não podia adivinhar que o líder cessante ia evidenciar as reservas mentais em relação aos socialistas ou que ia fazer “análises políticas de circunstância”. Com esta afirmação, Rio está a explicar-nos que há interesses maiores do que os dos dois partidos ou que estão para além do ruído que faz a espuma dos dias. Portanto, desde que interesses maiores se levantem, há disponibilidade agora do PSD para resolver o que é “verdadeiramente essencial”.

“Um governo que não aproveita um ciclo económico positivo para robustecer o futuro e preparar o país para os ciclos negativos, é um governo que governa mal! Governa mal, mesmo quando pode parecer que governa bem.”

Repita em voz alta, para tentar perceber melhor: “Governa mal, mesmo quando pode parecer que governa bem”. Não funcionou muito bem, pois não? A frase é complicada, porque a posição de Rui Rio também é. O novo líder do PSD tem que explicar que as coisas estão a correr mal mesmo quando todos os dias há notícias nos jornais, estatísticas nos órgãos oficiais e proclamações na União Europeia a garantir que tudo está maravilhoso. Rui Rio parece uma espécie de Luís Montenegro ao contrário. Em 2014, o então líder parlamentar do PSD ganhou uma fama dúbia ao proclamar que, com o governo PSD/CDS, a "vida das pessoas não está melhor, mas a do país está muito melhor". Agora, Rio parece dizer que a vida do país não está melhor, mas a das pessoas está muito melhor. No fundo, está a dizer o que o PSD sempre disse: que quando a economia está em alta é que a política deve ser mais restritiva para distribuir em tempos de recessão. São as chamadas “políticas contracíclicas”, mas pelo menos poupou-nos a esse palavrão.

“Temos todos consciência de que os partidos políticos atravessam uma crise de falta de credibilidade e de simpatia por parte dos cidadãos (…). Desde os níveis de abstenção eleitoral à proliferação de candidaturas autárquicas independentes, passando pelo fraco número de militantes partidários ativos e pelas opiniões expressas livremente na sociedade em geral ou nas redes sociais em particular”.

Os partidos atravessam uma tal “crise de falta de credibilidade”, que Rui Rio não apoiou o candidato do seu partido à sua sucessão na câmara do Porto, em 2013. Está bem, era Luís Filipe Menezes, um dos velhos ódios de estimação de Rio. Sim, ele achava que o “companheiro” ia dar cabo do trabalho que andou a fazer ao longo de 12 anos. Então, que fez para devolver a credibilidade à política e aos partidos? Promoveu a “proliferação de candidaturas autárquicas independentes”, com o apoio a Rui Moreira. E qual foi o resultado que isso deu? O PSD escolheu Álvaro Almeida em 2017, também com o patrocínio de Rui Rio, e o resultado foi de 10%. Aguarda-se assim, o que o novo líder do PSD fará em prol da credibilidade partidária, sendo que seria demasiado fácil achar que iria substituir todos os Menezes que há no PSD.

“Temos de substituir os vetos de gaveta à entrada de novos militantes por medo de se poder perder a pequena influência local.”

Quando foi secretário-geral de Marcelo Rebelo de Sousa, Rui Rio tratou o “aparelho” como um domador trata os leões: à chicotada. Agora, anos depois de ter imposto a polémica “refiliação”, que limpou os cadernos do partido, volta a apelar a uma abertura à sociedade. Quem tem a perder com isso, como o próprio Rio reconhece no discurso, são os caciques do PSD, que se arriscam a “perder a pequena influência local”. Parece perfeito? Parece. Sobra só um problema: na primeira fila do congresso, sentado a apenas um lugar de distância de Rui Rio, estava Salvador Malheiro, o cacique de Ovar que transportou militantes em massa para votarem em Rui Rio nas eleições diretas. Que lugar Rui Rio lhe reserva (ou não reserva) no novo PSD será a prova para saber se a vontade de abrir o partido à sociedade é um empenho genuíno ou apenas um discurso.

“O desgaste dos partidos políticos perante  sociedade é apenas um dos sintomas de um desgaste mais amplo, que atinge o próprio regime democrático.”

Rui Rio também propõe “contas partidárias equilibradas” como exemplo de quem quer governar o país e defende uma “completa transparência” dos partidos “em todo o seu funcionamento”. O que quer dizer com essa transparência, para ajudar a travar o desgaste dos partidos e do regime, fica por se saber.

“A reforma da justiça (…) com mais meios e melhor gestão, melhor qualidade legislativa, melhores conhecimentos técnicos, mais recato no seu funcionamento, melhor cumprimento do segredo de justiça, melhor escrutínio democrático e mais transparência. (…) Temos de combater a politização da Justiça, assim como temos de evitar a judicialização da política.”

Esta parte do texto apresenta-nos um Rui Rio do mais puro e genuíno. A reforma da Justiça é um dos seus velhos mantras, mas daqui não se percebe muito bem como fazê-lo. Depois, há três ideias que aparecem seguidas, mas que podem conflituar entre si. Mais segredo com mais transparência e mais escrutínio, parecem conceitos contraditórios, mas certamente nos próximos tempos Rui Rio tratará de esclarecer o que quis dizer aqui.

“Outra grande reforma é a descentralização, a desconcentração e o combate pelo desenvolvimento do interior”

Apenas um ponto e uma pergunta. O ponto: a questão da descentralização deve ser o primeiro patamar de entendimento com o PS de António Costa. A pergunta: se o PS voltar a lançar o tema da regionalização, é a favor ou contra?

“Quantas vezes, ao abrigo de uma suposta liberdade não se agridem os direitos dos mais vulneráveis? Quantas vezes, nesta sociedade que se quer democrática, cidadãos não viram impunemente a sua condenação ser feita na comunicação social, em vez dos tribunais, que é o lugar certo e legal para se fazerem os julgamentos no momento próprio?”

Temos aqui uma crítica aos media e à sua “suposta liberdade”, mas Rui Rio parece misturar os dois conceitos: vulneráveis com poderosos. Não é fácil perceber quem são os vulneráveis de que está a falar, quando as suas críticas aos julgamento na praça pública têm exatamente a ver com poderosos. Mais uma vez, temos um vislumbre de uma ideia geral que não permite percebermos onde quer chegar. Até que ponto e de que forma tenciona procurar limitar o trabalho dos jornais? Quando é que o público deveria ser informado pelos jornais do que constava em casos como os de José Sócrates, Ricardo Salgado ou agora do juiz Rui Rangel? Na ótica de Rui Rio uma investigação jornalística -- em que o Ministério Público não é fonte -- é também um julgamento na praça pública? E se uma investigação de um jornal passar a inquérito judicial, devem acabar as notícias sobre o caso? Para já, sobram muitas dúvidas.

“O PSD é um grande partido de poder. Por isso, o seu objetivo é sempre ganhar. Sempre que nos candidatamos, o nosso imperativo é sermos os primeiros.”

Compreende-se. Toda a gente corre para ganhar. E esse é o problema, porque só ganha um. Agora que chegou ao congresso, Rui Rio não se podia pôr com cenários acerca de eventuais derrotas. Claro que os imperativos têm o seu reverso. Uma eventual derrota -- ou um resultado poucochinho -- vai suscitar o avanço de adversários nas próximas diretas do PSD, daqui a dois anos.

“Uma coisa é estarmos disponíveis para dialogar democraticamente com os outros (…) coisa diferente é estarmos disponíveis para nos subordinarmos aos interesses dos outros. (…) Não é, aliás, fácil de entender a lógica das declarações de dirigentes do PS e dos outros dois partidos da extrema-esquerda (…) que não há qualquer hipótese de um Bloco Central. Perdem tempo com o que não existe nem existirá. Perdem o tempo com o sexo dos anjos, porque a ânsia de querer marcar permanente presença no teatro mediático, até se esquecem do mais óbvio: esquecem-se que não ganharam as eleições e que, em nenhuma outra circunstância, o PS pode liderar um Governo, em face dos resultados das últimas legislativas”.

Foi uma das passagens mais comentadas nos bastidores do congresso. Falar no fantasma do Bloco Central é “perda de tempo”, é discorrer sobre “o sexo dos anjos”, é algo que “não existe nem existirá”. Nos Evangelhos, Pedro negou três vezes conhecer Jesus; no seu discurso, Rui Rio negou três vezes a hipótese de um Bloco Central. Aliás, na mesma passagem, o novo líder recupera uma das obsessões mais insistentes de Passos, a da ilegitimidade eleitoral do governo PS: “Esquecem-se que não ganharam as eleições”, lembrou Rio. Vamos então considerar que Rio recusa mesmo o Bloco Central, ou seja, ir com o PS para o Governo e partilhar o poder e a responsabilidade. Consideremos também como certo que se a configuração parlamentar das próximas legislativas for semelhante à atual, então só restará ao PS entender-se com o PCP e o BE. Mas Rui Rio deixa pelo menos dois cenários a descoberto: o que fará o PSD se o PS ganhar sem maioria? Viabiliza o Governo primeiro e a governação depois através e uma “geringonça” parlamentar de centro? E se o PSD ganhasse as eleições mas sem fazer maioria com o CDS? Pedia apoio ao PS e faria um modelo inédito de PSD vencedor apoiado no Parlamento por socialistas? Só é possível responder tendo em conta o que Rui Rio disse na campanha interna: que admitia viabilizar uma governação do PS, para o retirar das garras da extrema-esquerda.

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