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Fez uma marca: Cintra Torres. A marca habitualmente incomoda. Eduardo Cintra Torres semeia a polémica, irrita, divide as plateias. Mas é igualmente ouvido, lido, convidado a dissertar e intervir, tanto na Universidade como no espaço mediático. Tem 59 anos, é sóbrio, curioso, cosmopolita e algo distante. Licenciou-se em História, fez o Mestrado em Comunicação, tem um doutoramento em Sociologia e muita obra publicada. Apaixonado investigador e estudioso dos fenómenos mediáticos (ensina na Católica e no ISCTE), é também critico de televisão com lugar cativo no comentário semanal televisivo e assinatura em crónica de jornal (ambos do grupo do Correio da Manhã).
Costuma ser severo (em demasia?), faz as coisas a sério, cultiva um verbo seco e incisivo de quem se responsabiliza pelo que diz. E, last but not least, parece (com divertimento, aliás), consumir algumas gramas de auto-suficiência. Mas, voilá, poucos em Portugal, analisarão a televisão enquanto fenómeno, a sua génese e as suas consequências, como Eduardo Cintra Torres.
Para ele, ela é um livro aberto.
Escrevi a primeira crítica de televisão com 14 anos
Os recentes actos de terrorismo na Europa levaram alguns jornais e jornalistas franceses a encetar um debate sobre se sim ou não a media deveria mostrar tais actos e os seus autores, dando-lhes protagonismo e propaganda. As opiniões obviamente dividiram-se. Qual é a sua?
A França está muito abalada. Alguns media acompanham ou julgam acompanhar a sociedade com essa autocensura. Eu discordo. É verdade que o terrorismo sempre “viveu” da informação livre. O EI dá grande importância à propaganda. Mas não informar os nossos cidadãos é prescindir da liberdade e é um mau serviço público. Isto é válido tanto para a TV como para os outros média. Hoje autocensuramos isto, amanhã aquilo… Qual o limite? Tenho uma visão maximalista da liberdade de expressão. O limite que aceito é a respeito de informação que possa causar danos futuros, como noticiar antecipadamente operações de guerra do exército do próprio país. Mas não é o caso. Os média têm a obrigação de noticiar actos terroristas, não apenas o direito. Quanto à TV, quem não gosta que mude de canal, veja desenhos animados ou desligue o televisor.
Mas gostaria que este debate à roda de questão tão brutal e actual fosse mais amplo em Portugal? Mais vivo e participado e não só na comunicação social?
Quanto mais debate melhor. Julgo ter havido, ao longo dos anos, reflexão sobre o assunto, em artigos de imprensa, académicos e também em comentário televisivo. Mas, como em tudo o resto, sofremos de amnésia cultural e, de cada vez que há um atentado terrorista, fala-se do assunto como se fosse a primeira vez.
Tornou-se num especialista — avisado e ouvido — em questões de media. Nenhuma pergunta fará sentido se eu não começar pelo princípio: de onde veio esse interesse, essa curiosidade, essa aptidão para olhar por dentro — e para dentro — do fenómeno televisivo? Fazendo disso um objecto de estudo e investigação, matéria de ensino, tema de reflexão e intervenção jornalísticas. Qual a raiz deste seu modo de vida?
Há tempos encontrei um papelinho que escrevi, aí por 1971, teria 14 anos. Era uma crítica de televisão. A posteriori, acho que sempre olhei criticamente a televisão, desde miúdo. Tenho uma curiosidade reflexiva no próprio momento em que a vejo. Como a vida dá muitas voltas, só em 1996 comecei a escrever crítica de televisão semanalmente. Tive o impulso e foi correspondido. Juntou-se a fome com a vontade comer: o Público andava à procura de alguém que olhasse criticamente a televisão. Criei o Olho Vivo, que ali esteve até 2011, quando a nova directora, por “reorientação ideológica”, como então escreveu e nunca explicou, arranjou maneira de eu me vir embora. Dias depois, fui contratado pelo Correio da Manhã, onde estou em liberdade total.
E a Universidade?
Ah, foi por escrever a minha coluna que senti a necessidade de voltar à Universidade: havia e há cada vez mais gente formada em comunicação, artes, ciências sociais, e eu tinha de saber pelo menos o mesmo que toda a nova geração. Sou licenciado em História. Fiz o Mestrado em Comunicação, em 2000-3, e, depois, o Doutoramento em Sociologia, em 2005-10, ao mesmo tempo que começava a dar aulas na Universidade Católica Portuguesa e o no ISCTE. Ironia da história: doutorei-me por causa da televisão. Mas este percurso corresponde a algo inato: o interesse e gosto pela investigação e pela escrita. Adoro o que faço e empenho-me muito para não ter a mínima falha, porque sou um perfeccionista — nos factos, na opinião e na escolha das palavras. Trabalhei com um director de jornal que dizia que não valia a pena, que no dia seguinte o jornal só servia para embrulhar o tacho do arroz. Mas eu escrevo sempre como se escrevesse na pedra.
Falemos então do salto ocorrido com a televisão. Ela é hoje um media que se libertou da sua tecnologia original. Está em todo o lado graças à tecnologia digital. Que pressupõe isto? E mais: como se explica isto, em que reside esta “diferença”?
A linguagem técnica dos zeros e uns é mesmo uma revolução, talvez a única na história mundial nas últimas décadas. Produz-se, emite-se e consome-se textos, sons e imagens na mesma forma. O jornal tem vídeos, a rádio tem imagens, a televisão tem textos. Os media libertaram-se em grande medida dos anteriores constrangimentos técnicos. Não precisamos de papel para ler jornais e livros, não precisamos de ir ao cinema para ver filmes, não precisamos de televisor para ver televisão…
A linguagem da televisão impôs-se ao mundo global
Mas o extraordinário é que parece não ter havido perda de identidade….
Pois não. Ao mesmo tempo, os media mantêm a sua identidade, porque tiveram tempo para criar e impor a sua própria linguagem e os seus conteúdos próprios. Essa identidade de cada um pode ter sido beliscada (e julgo que será cada vez mais), mas basta-nos um segundo, ou até uma imagem fixa, para identificarmos que um certo conteúdo é um programa de televisão, e até conseguimos identificar o género, seja ele chinês ou chileno, porque a linguagem da televisão se impôs ao mundo global, se calhar mais ainda do que, entre as línguas, o inglês. O digital, a meu ver, até agora, ainda não alterou estruturalmente a linguagem e os conteúdos televisivos. A Netflix e outras plataformas digitais apresentam o quê? Séries. Documentários. Programas desportivos. Julgo que o que mudou foi a forma de acesso e consumo e ainda o processo de fragmentação de conteúdos, por causa do Youtube e das redes sociais. O Facebook, pela sua ontologia, não nos empurra a ver programas longos, apenas vídeos curtos, sejam eles originais ou extractos de programas mais longos.
O facto de a televisão possuir uma linguagem global — vimos os mesmos conteúdos em todo o lado — torna-a mais viva, mais vital? Ou, pelo contrário?
Depende da qualidade. A maioria dos conteúdos televisivos é construída sobre os estereótipos dessa linguagem, o que se torna muito cansativo, pelo menos para mim. Mas isso acontece com os conteúdos de todos os media e criações culturais, incluindo pintura, literatura, etc. A percentagem de criações medíocres deve ser a mesma em todos os media e áreas criativas. Em percentagem, há tanta porcaria na pintura como na televisão.
Não foi bem isso que perguntei: temos ou não uma televisão vital?
Respondendo directamente à pergunta: a televisão desenvolveu um modo de comunicação que simula a interactividade e isso dá-lhe uma certa vitalidade, vibração. O directo, mau ou bom, é o suco da barbatana desse modo de comunicação, mas há outras técnicas, como o trato dos espectadores como se se estivesse em directo, mesmo em programas gravados.
Vamos à “parte de leão”, isto é, o super-negócio em que se transformou a televisão. Um dia caracterizou-me assim este novo quadro: a) novos jogadores globais: Amazon, Netflix, Youtube e, quem sabe, Facebook em breve; b) novos jogadores nacionais institucionais: mais canais, em especial de cabo; canais regionais, canais locais, canais das câmaras municipais; c) novos jogadores nacionais não-institucionais: qualquer pessoa ou grupo pode fazer um canal, na Meo, na Internet. Resumi bem? E será “isto” bom?
Felizmente que aconteceu tudo isso. Mais quantidade é melhor que menos. Traz mais escolha, mais liberdade para os criadores e espectadores, menos constrangimentos institucionais. É possível que se perca em qualidade, porque os recursos são divididos por mais instâncias de criação, mas isso também é compensado pelo estímulo da concorrência. Repare que uma parte da televisão já utiliza apenas a Internet como técnica de distribuição. A tendência será para aumentar. Quando começar a acontecer com conteúdos chamados Premium, como o desporto (vai-se por aí nos EUA), acentuar-se-á a perda de influência da TV generalista e até do cabo.
Esse quadro que descreveu originará fatalmente, na televisão generalista, uma perda de influência social e politica, de audiência, de relevância. Pergunto: no caso de países pequenos — como o nosso – a menor garantia de receitas não tornará o investimento em conteúdos “novos” ou “internacionais” mais modesto ou mais tímido?
Já acontece. A televisão generalista é resiliente e ainda tem o “segredo” para reunir o maior número possível de espectadores disponíveis para ver TV a cada hora. Mas o problema é que esse número é cada vez menor, com a oferta diversificada. Por isso a expressão certa é mesmo a perda de relevância da TV generalista. O mesmo que aconteceu à rádio, por exemplo. Com menos recursos para programas, há menos programas com uma certa qualidade técnica e de conteúdo. Com menos programas desse perfil, há menos audiência. É uma pescadinha de rabo na boca. A TV generalista tende a ser um meio destinado a menos público, maioritariamente mais velho e menos dinâmico socialmente, com menos poder de compra. Servirá crescentemente para atrair público para canais de cabo do mesmo grupo, como já acontece. E assim continuará enquanto os anunciantes não tiverem outra alternativa para atingir o maior número de pessoas em simultâneo e em data certa para a divulgação das suas campanhas.
O medo está instalado nos canais generalistas
Mas insisto nesta de sermos um país pequenino. Não pode ajudar…
Sim, sermos um país pequeno não ajuda, o mercado é pequeno, cada investimento em conteúdos é “pago” por um número reduzido de espectadores, e sem capacidade de exportação. As exportações de telenovelas existem, mas são residuais em termos de receitas. Ao mesmo tempo, ser um mercado pequeno poderia levar-nos a pensar que seria mais fácil investir em programas ousados, inovadores, “nunca vistos” no repetitivo mercado internacional. Infelizmente o medo está instalado nos generalistas. Têm pavor de investir em programas novos, que saiam da caixa. Escolhem os formatos internacionais já provados noutros países. Anulam a vantagem de sermos um país com um pequeno mercado.
Diz que o medo está instalado nos generalistas. É uma afirmação forte. Então como olha, concretamente, para a SIC, para a TVI, para a RTP?
São pobres em género e imaginação. Desistiram. A fórmula “dar ao público o que o público quer” está quase certa, mas impede aquele “grão na asa” de inovação que poderá agradar ao público, já que este, antecipadamente, não sabe tudo, dado que não é especialista de TV e não lhe compete imaginar a inovação. A SIC e a TVI afunilaram os géneros. Em termos de êxitos para o público “do costume”, só confiam nos noticiários longos, nas novelas, nos talk shows, e, no caso da TVI, naqueles reality show cada vez mais ordinários. Nos noticiários, a SIC destaca-se pela qualidade geral técnica e de texto. Tem as grandes reportagens mais bem feitas. Mas ambos os canais claudicam com frequência a interesses publicitários, uma publicidade escondida sem qualquer ética jornalistica. A RTP 1 tem um pouco mais de variedade de géneros, mas sem beneficio de interesse público…
Por exemplo?
Os concursos e as séries não se distinguem do que os privados oferecem ou poderiam oferecer. Está presa a uma estratégia de décadas igual à dos privados mas coberta da demagogia de “serviço público”. O administrador que ilegalmente manda nos conteúdos é a fraude sobre quem escrevo há décadas: não tem uma ideia que valha a pena. Está lá há ano e meio e a RTP continua a mesma. A RTP 2 mudou para melhor porque a directora é uma pessoa com cultura e que teve a ousadia para mudar o modelo anterior, um modelo troglodita que quase matou o canal. Neste momento a RTP 2 faz omeletes sem ovos, o dinheiro vai todo para a RTP1: tem boas séries europeias, documentários, reposições (à borla) com sentido. Quanto à informação, o director deixou-se apanhar na malha da influência do governo metendo mais duas pessoas na sua direção para agradar ao novo poder. Não há maneira de se sair deste inferno. O ministro Maduro, com a sua reforma, apenas quis, como sempre, salvar a RTP do Estado maquilhando a estrutura do poder. Como se vê, ficou na mesma: o governo quis gente sua na direcção de informação e teve-a.
Falou do “novo”: a concorrência, seja nos generalistas, seja no cabo, para nos surpreender e cativar deveria porventura concorrer com o “novo”? Mas será que me pode definir o que seria esse “novo”? Como se define uma aposta norteada por um “produto novo”?
Se olharmos para a grelha dos generalistas, (talvez me vá repetir um pouco), vemos que os géneros são em número reduzido: talk shows, noticiários, telenovelas e reality shows, a que a RTP acrescenta concursos medíocres “traduzidos” de formatos internacionais. Tudo já visto e revisto. O medo de inovar torna impossível inovar, embora eu perceba que se inovassem e tivessem um desastre de audiências e, portanto, financeiro, comprometiam o conjunto da grelha. Daí que seja uma pescadinha de rabo na boca também no que toca à inovação: “não inovamos porque é arriscado, temos de repetir fórmulas”. Fazem o que podem: melhoram as telenovelas, que são hoje, em Portugal, bastante melhores em todos os campos do que eram há meia dúzia de anos. Mas como as telenovelas são feitas para um público que pretende pouca inovação, é com a repetição do género que se contentam, alegrando-se com as pequenas melhorias que nele incorrem.
E o público, ou melhor, os públicos. Como os divide, como os organiza, como os caracteriza, você que tanto lida com eles?
Quanto mais conhecemos a audiência, mais sabemos que é formada por indivíduos racionais, que fazem escolhas racionais. As “massas”, as “audiências burras”, são conceitos do passado. E quanto mais oferta há e mais os espectadores se dispersam, mais isso se nota. Eu diria que há, mesmo assim, grandes grupos, sendo o maior o que prefere os programas portugueses e dos canais generalistas. Mesmos os espectadores com cabo, que já vão a caminho dos 90% da população, vêem em primeiro lugar os três canais generalistas. São principalmente a população mais velha (demograficamente cada vez maior) e com menos educação formal (demograficamente cada vez menor). Não se pode menosprezar esta população e as suas opções. Há, depois, grupos específicos: as crianças, que vêem os “seus” canais temáticos no cabo e também, mas menos, a programação infantil da RTP2; uma população mais jovem e mais dinâmica socialmente, que vê os canais de séries e de cinema no cabo, mas que vê pouca televisão; e os que vêem muitos programas de e sobre desporto, especialmente futebol. Neste caso, devo dizer que o interesse dos portugueses pelo futebol é tão grande que os canais de informação por cabo, tal como os noticiários dos generalistas, dedicam imensas horas ao desporto para corresponder à escolha do maior número possível de espectadores.
O dia-a-dia de muitas famílias inclui as telenovelas
Falou há pouco da telenovela como um produto dito de grande audiência e, nesse sentido, como principal aposta dos canais generalistas portugueses privados. Resta saber se essa audiência é ou não semi-mítica? Será, pelo menos, folgadamente garantida?
Mítica? Não é nada mítica! As telenovelas são os programas constantes mais vistos em Portugal, juntamente com os noticiários das 20h. É uma razão suficiente para os generalistas apostarem nelas. Há mais de um milhão de pessoas que gosta da companhia diária da telenovela. O seu dia-a-dia inclui a família, o trabalho e a estória da novela. Julgo que continuamos a ser o único país europeu com esta quantidade de novelas em horário “nobre”. Mas a oferta corresponde à procura. Por isso não sou dos que condenam os generalistas por as apresentarem, mesmo que o meu gosto pessoal não esteja para aí virado. O meu gosto pessoal não interfere com a minha análise como crítico e estudioso.
E de que factores depende uma telenovela “ganhadora”, isto é, que galopa na liderança das audiências?
Telenovela ganhadora? Se os criativos e produtores soubessem a fórmula para isso… Mas não sabem. Ninguém sabe. As indústrias culturais são como o Euromilhões: ninguém sabe a chave do sucesso de audiências. É possível prever com alguma razoabilidade, tendo em conta o estudo das audiências passadas de programas semelhantes. É por isso que os esquemas dos conteúdos são tão repetitivos. Mas nem assim. Muitos espectadores cansam-se da repetição, e cada vez mais depressa, dada a miríade da oferta. Daí que procurem inovar dentro das fórmulas “gastas”, como a telenovela: mudam o cenário de Setúbal para o Douro, do continente para os Açores, de Portugal para Angola…
Ganhar é sempre uma incógnita, ganhar depende de muita coisa… É isso?
É. Ganhar depende de imensas coisas. A história, o suspense, a variedade de personagens, a qualidade de imagem e som, os temas tratados, os nós narrativos, o interesse da narrativa e… a concorrência. Se a novela do “canal ao lado” for considerada melhor ou mais interessante, os espectadores não têm contemplações: mudam de novela como quem muda de sabonete.
Tenho estado intencionalmente aqui às voltas com a telenovela porque sei com quem falo: Eduardo Cintra Torres publicou recentemente um pequeno livro, “Telenovela, Indústria e Cultura, Lda.” que nos conta uma experiência surpreendente, um mergulho-análise-reportagem no “como fazer” uma telenovela. Qual foi o motor de arranque para este livro e que nos queria “contar” com ele? Sobretudo, qual a utilidade que para si teria a publicação deste exercício?
Ver telenovela ocupa muito tempo. Eu tenho várias actividades: dar aulas, prepará-las, avaliar os alunos… E faço investigação, que é uma das actividades mais “time-consuming” que conheço. Julgo que a maioria das pessoas não imagina o tempo que demora a investigar e a publicar um artigo académico numa boa revista científica. Por isso, nestes 20 anos de crítica, não acompanhei telenovelas sistematicamente, que me parecia a única maneira de as poder criticar com lealdade para com o conteúdo e os meus leitores. Fiquei com um problema de consciência: então a telenovela é o principal produto audiovisual português, é o mais visto, o único que, apesar de tudo, é exportado, e eu não escrevi nada de análise em profundidade sobre ela?
E o resultado dessa “preocupação” desaguou num livro?
Tive uma epifania: porque não escrever uma análise da indústria cultural da telenovela a partir de um único episódio de uma única telenovela? Cinco minutos depois, propus ao António Araújo, director de publicações da Fundação Francisco Manuel dos Santos, para a nova colecção de livros “Retratos da Fundação”, que são uma espécie de grandes reportagens em formato de livro. Quatro horas depois, o projecto foi aprovado pela Fundação. Deitei mãos à obra: contactei a SIC e a SP Televisão, que me abriram as portas para uma grande reportagem escrita por um jornalista que é académico, por um académico que é jornalista. Julgo que consegui, pelo método aplicado, mostrar e analisar como se faz uma telenovela, do ponto de vista cultural (escrita, realização, representação, montagem) e industrial (publicidade enxertada, temas sociais, modo de produção, escolha de actores, etc.), e ainda a relação do produto cultural-industrial com a audiência, tendo analisado a audimetria, principalmente através de um grupo de foco com espectadores da novela estudada, Mar Salgado. O livro mostra as tensões entre a criação cultural e a produção industrial da telenovela nesse caso concreto. São tensões pacíficas, porque todos trabalham dentro do mesmo esquema apriorístico, mas existem.
Um pequeno país, muitos canais de informação
Mas nem só de telenovelas vive a preferência da grande plateia televisiva, lembro-me até de uma discordância nossa a esse propósito, pois o Eduardo considera que os portugueses apreciam programas de conteúdo politico – comentário, análise, entrevista, debate — e que os vêem com agrado. Paremos então nesse “apetite” que diz haver por notícias e comentários políticos, levando até a que, como também diz, os principais programas dos generalistas sejam em geral os telejornais.
Os telejornais são, ou ainda são, a fonte de informação para o maior número de portugueses. E, para um pequeno país, temos um número invulgar de canais de informação: SICN, TVI24, RTP3, CMTV, Económico TV, ARTV, Porto Canal, Local TV e, ainda, uma série de canais temáticos desportivos, incluindo os dos clubes, com informação desportiva.
Os portugueses “consomem” informação?
A reflexão que faço é que, devido ao processo revolucionário de 1974-81, que deixou marcas profundas na sociedade – não só nos que então viviam, mas nas gerações seguintes –, os portugueses têm um grande interesse por informação, sendo a televisão a sua principal fonte. Em que país do mundo houve um comentador político com a máxima audiência durante 45 minutos num noticiário das oito da TV generalista? Portugal. Bem sei que Marcelo é, ele mesmo, um caso único, mas o fenómeno seria impossível noutro país. Em que país poderia haver uma deputada de um partido de extrema-esquerda a defender semanalmente as posições do seu partido no mesmo noticiário? Portugal. Em que país poderia haver um antigo presidente de um partido no noticiário das oito doutro canal generalista, a SIC, durante cerca de 20 minutos? Portugal. Em que país poderia haver, no conjunto dos canais generalistas e de cabo, 53 comentadores políticos regulares, dos quais 27 militantes de partidos políticos? Vinte e sete militantes! Portugal. É uma singularidade portuguesa.
Não sabemos se fatalmente boa. Mas haverá certamente ainda maior apetite do político profissional pela televisão. Pensemos em Sócrates, Santana Lopes, António Costa, Marcelo, Marques Mendes e no “vindouro” Paulo Portas. Que teria sido deles sem esse insubstituível e estratosférico palco para todas as suas ambições? Seriam o que foram — ou são — sem a fulcral ferramenta do pequeno écran?
A televisão é, de facto, apetitosa, por chegar ao maior número. Aqui há anos fiz um estudo que permitia verificar que, além de ser o media mais consumido, a televisão era o único media consumido por 8% da população, no caso da comunicação política. Para estes 8%, é a única fonte de informação. E, portanto, a televisão é uma benesse para essas pessoas e é uma benesse para o país. Presta um serviço. E agora respondendo mais concretamente: não tenho qualquer dúvida de que o PSD ganhou as eleições e o PS ganhou a seguir as eleições porque Emídio Rangel arranjou um frente-a-frente semanal entre Santana e Sócrates na RTP1. Costa esteve anos na Quadratura. Marcelo na RTP e na TVI. Paulo Portas foi jornalista e esteve, salvo erro, na SIC. Agora volta à televisão como “comentador”, como os outros. Hoje seria extremamente difícil um desconhecido do país ganhar um congresso porque lá foi fazer a rodagem do carro novo (um mito, mas bene trovato!) e logo depois ser primeiro-ministro, e logo depois ter maioria absoluta. Os próprios partidos não querem “desconhecidos”. Há um aspecto positivo: podemos conhecer melhor quem nos quer governar. Mas, e se o político for um actor nato, como Sócrates, que diz uma mentira com a mesma convicção de actor com que diz uma qualquer opinião? O país regrediu décadas com Sócrates. Também podemos “agradecer” à televisão.
Não devemos falar apenas de televisão versus políticos. Falta a outra metade: televisão e interesses económicos.
Claro, isto não é válido apenas para os políticos. Note que, neste momento, na Quadratura do Círculo, há um PSD fora do baralho, um CDS e um PS pseudo-reformado, mas dois deles são da Mota-Engil. O poder económico, tal como o poder desportivo, é voraz relativamente ao poder da televisão, poder que, a meu ver, não é tão absoluto como “eles” julgam.
Seja. Mas a política seria o que é hoje sem a televisão? Essa espécie de show non stop, ao vivo, em directo e em nossas casas?
A televisão mudou a política. Historicamente, tomou o lugar da imprensa e depois o lugar da rádio, que foi mais breve. Os congressos partidários deixaram de ser o lugar em que se elegia o chefe desde que a TV americana começou a transmiti-los. Por cá o PS também já elege o chefe antes dos congressos. Deixa de haver dissenções profundas nos congressos, para se passar antes uma imagem de unidade na televisão. A política faz-se na televisão, faz-se tentando controlar canais de televisão. Não se ganham eleições com arruadas, mas porque as arruadas são televisionadas. Mas a televisão é o nosso comício permanente, 365 dias por ano, e omnipresente, em todos os lares. E como a televisão tem a sua própria linguagem, o seu próprio dispositivo comunicacional, a política tende para adoptar os seus “tiques”, incluindo os do espectáculo.
Mas aí o mais profissional e, simultaneamente, o menos escrupuloso, não foi Sócrates?
Os seis anos de Sócrates foram um permanente reality show, com palcos, eventos, etc. Aquela imagem de José Sócrates a perguntar ao assessor se ficava melhor na imagem de TV com a cara um pouco para a esquerda ou um pouco para a direita é exemplar, pela negativa. Ele ia anunciar a entrega da nossa soberania à troika e, qual actor de Hollywood, só estava preocupado com o “look”!
Hoje temos o caso de Donald Trump, que chega a candidato presidencial americano assumindo a 100% a linguagem televisiva. No passado os candidatos adaptavam-se à televisão. Trump é televisão.
Guardadas obviamente as porporções, Marcelo também. Foi e é televisão.
Não só. Marcelo é “com” televisão. Usou-a para chegar a Belém, usa-a para ser popular e para estar sempre no ar. Nesta sociedade híper-mediatizada, Marcelo é mais omnipresente que Deus. Mas é menos omnisciente, pelo que comete erros: fala demasiado e sobre tudo, por vezes erradamente. Pretende, pela “relação directa” com o povo, reforçar o seu próprio espaço e poder político, tal como o fez no telecomentário. Mas é de outra categoria, incomparável com Trump…
A comparação era com o factor “televisão e não — e como poderia? — entre os dois…
Trump é um troglodita político, um mentiroso compulsivo e um ignorante. É, nos sentidos literal e metafórico do termo, uma personagem de reality show rasca.
O que é afinal o “serviço público”?
Há algo de quase malsão nesta relação políticos/televisão ou estamos meramente perante um dos mais fortes sinais dos tempos? “Deste” tempo?
As duas coisas. Por um lado, é uma realidade normal. A televisão é importante, logo a política também se faz pela televisão. Por outro lado, o poder político é voraz, quer dominar, controlar, censurar. Mesmo Passos Coelho, que se estava nas tintas para os media, teve o seu Miguel Relvas a procurar o controle político da RTP. Neste momento, o governo Costa já conseguiu de alguma forma estar “dentro” da RTP, através de pessoas como António José Teixeira e António Peres Metello.
Mas aí há que falar nos canais e nas escolhas dos responsáveis pelos canais, com a aquiescência aparente das administrações, redações, da “casa”.
Sim. Os canais não estão isentos de responsabilidades: esta coisa de terem militantes partidários a perorar semanalmente nos seus canais generalistas e de cabo é uma forma de agradarem, portanto de cederem, aos partidos. É uma troca. Não esqueçamos que os canais generalistas são avaliados pelo poder político, a RTP anualmente, os outros de x em x anos. Portanto, há que estar bem com os partidos.
Então onde “entra” a tão celebrada “independência”?
A independência, em Portugal, é um valor muito difícil de defender, de manter, até de querer. Conheci e conheço jornalistas que foram independentes até ao dia em que foram chefiar a informação de um media, incluindo canais de televisão. Nesse dia, desta ou daquela maneira, vergam ao poder político. Já perdi amigos à conta disso, mas não foi grande perda, porque quem se verga ao poder político não se enquadra no meu género de amigo. No meu caso, isto impõe-me uma obrigação: estar muito atento à política nos media. Eu preferiria dar mais atenção a outras coisas, à ficção, etc., mas é como que uma obrigação de serviço público que imponho a mim mesmo, sabendo que poderei ter dissabores, como já tive, porque não vejo mais ninguém a escrever sobre o assunto nesta perspectiva.
A expressão “serviço público” está quase como a expressão “reformas”: custa ouvir falar de uma ou de outra. Há, sim ou não, serviço publico em Portugal e que é “isso”? Uma necessidade, uma utilidade, uma obrigação, uma invenção?
A expressão serviço público é daquelas que nos foi imposta com tal força que todos temos dificuldade em pensá-la, sequer. Não é só cá: por toda a Europa as palavras “serviço público” são como que uma manifestação do divino. É impressionante. Mesmo nos estudos académicos. Para mim, serviço público é o que as palavras dizem: um serviço que é prestado ao público. Portanto, pode ser prestado por qualquer tipo de entidade: pública, cooperativa, privada, individual. As farmácias, privadas, prestam um serviço público, regulado pelo Estado, que é também para isso que ele serve. Uma empresa privada que produza bens disponibilizados à sociedade também presta um serviço ao público. Se não houvesse mercearias e supermercados, não sentiríamos a falta do seu serviço público? A meu ver o Estado só precisa de prestar serviços quando os privados não querem ou não podem prestá-los nas mesmas condições. Não esqueço que Salazar nacionalizou empresas de distribuição de água porque elas prestavam um mau serviço: o Estado substitui os privados para, eventualmente, prestar um melhor serviço.
E a televisão?
No caso da televisão, na Europa ela nasceu feita pelo Estado. Mesmo com a abertura aos privados, a concepção de que só os canais do Estado é que prestam “serviço público” prevalece. Na minha opinião, historicamente, a RTP prestou serviço público quando era a única, e fez bons programas de interesse público, antes e depois do 25 de Abril. Depois, o balanço não é positivo. O facto de querer sempre concorrer com os privados, o facto de não ter uma elite com coragem para fazer diferente, tornam a RTP pouco relevante e muitas vezes irrelevante no que toca ao serviço público. É demasiado cara para o que faz. Mas ninguém no poder (governo, parlamento) quer mudar, porque a RTP serve o sistema político e este arranja sempre maneira de a controlar, de a amansar e de dar o ámen.
Mas então o que defende? Você não é fácil…
Defendo que há lugar ao apoio do Estado à criação de conteúdos de interesse público, como sempre houve, desde a Grécia clássica até hoje, passando pela Idade Média. Não é absolutamente necessário haver uma empresa do tipo da RTP para o Estado prestar serviço público televisivo. Teria de haver uma entidade, mas não necessariamente esta RTP, grande, cheia de vícios e de interesses particulares. Como está, não está bem. Já defendi propostas alternativas. Mas como o país está satisfeito com o que tem, não insisto demasiado. O povo é soberano para escolher quem define o que fazer com a RTP. Se as decisões forem péssimas, paciência. O povo escolheu. Pague.
Como se define “qualidade” em televisão?
Mais difícil é definir “qualidade”, porque a noção é inteiramente subjectiva: uma espécie de “cada cabeça, sua sentença”. O certo porém é que ouvimos mil vezes a palavra ser evocada e que nos garantem que é à roda da “qualidade” que se anda quando se trata de idealizar um novo conteúdo e de projectar a sua concretização. O que é a “qualidade televisiva”?
Quando comecei a escrever crítica televisiva semanal tive muitos problemas com a palavra “qualidade” e com a expressão “programa de qualidade”. Julgo que nunca a usei. Foi propositado que uma das minhas primeiras críticas, em 1996, fosse ao programa “Ponto de Encontro”, da SIC, apresentado por Henriques Mendes. Ninguém escrevia sobre ele, e muito menos a dizer que era um bom programa. Eu escrevi-o. Há cerca de sete anos resolvi o “assunto” da qualidade. Tenho um ensaio académico publicado sobre o tema. Julgo que os críticos e os estudiosos da televisão devem procurar usar métodos objectivos de analisar a qualidade, a que o seu gosto pessoal seja totalmente alheio. Há uma série de critérios que nos permitem avaliar a qualidade, tal como nas empresas industriais ou de serviços.
No caso da TV, posso referir os parâmetros técnicos; a adequação da narrativa; a prestação dos jornalistas, actores e apresentadores; no caso das notícias, a sua independência e rigor factual. E não é possível ignorar o público-alvo: se aceitamos que um programa para crianças deve ser feito a pensar como as crianças são, qualquer outro programa deve considerar o alvo. Se um programa é destinado a toda a população, não pode ter o mesmo tipo de “sofisticação” de linguagem e até de temas que teria, por exemplo, um programa para doutorados. Isso não quer dizer que não tenha qualidade. Pelo contrário, há programas de “alta cultura” que são uma porcaria e programas de “baixa cultura” que são de interesse público, bem feitos.
O tema continua algo subjectivo…
É claro que é mais fácil dizer que um produto fabril é de qualidade do que dizê-lo de um programa de televisão, que é um produto cultural, e, assim, mais sujeito à subjectividade, ao gosto, à classe social de quem avalia. Mas isso não me deve impedir de procurar a máxima objectividade possível na avaliação de conteúdos culturais como os televisivos.
A universidade é um espaço de liberdade
É professor, participa em júris de doutoramento, intervém academicamente. Outra faceta. Quer falar-me um pouco do que ela significa para si?
É muito importante. Sinto-me optimamente na Universidade Católica, onde dou muitas horas de aulas e onde sou investigador, e também no ISCTE, onde também dou algumas aulas. A universidade é um espaço de liberdade, embora muitos universitários tenham medo da liberdade. Hoje há muitos estudiosos da comunicação, da sociologia dos media. O mundo académico é maior, activo, plural e dinâmico. Está em contacto com a produção académica internacional. Há estudos interessantes. Eu aprendo com aqueles que contacto: os trabalhos dos meus alunos e as teses de mestrado e doutoramento de que sou arguente ou que leio por interesse. Ter-me tornado um investigador académico foi importantíssimo porque, primeiro, adoro investigar, podia viver só da investigação se isso fosse possível; depois, porque me obriga a manter-me informado, em contacto com os colegas portugueses e estrangeiros, com o que produzem, obriga-me também à disciplina do trabalho científico. Sinto-me muito bem no contacto com os colegas e com os alunos. Preciso de saber o que os jovens pensam, vêem. Aprendem comigo (espero!) e eu aprendo com eles.
É investigador mas está no palco televisivo; é um académico mas com lugar cativo nos jornais onde critica e comenta. Não é muito vulgar. Precisar de respirar a realidade como ela é? É isto que o diferencia?
Sem falsa modéstia, acho que me diferencio de muitos colegas por ter a experiência de jornalista e da escrita nos jornais. E por continuar as duas actividades em simultâneo. Tenho ao mesmo tempo a teoria e a prática, a reflexão e a acção. Trabalho imenso. Publiquei 17 livros desde 1998, dezenas de capítulos de livros, de artigos científicos, ao mesmo tempo que escrevo semanalmente, às vezes diariamente para os media. Outros académicos não só se fecham um pouco na redoma, ou não conseguem sair dela, como muitos que conheço não têm contacto com a vida real, com uma redacção, com as manobras políticas para controlar até o alinhamento de um telejornal. Leio coisas de que qualquer jornalista se riria, não por ser ignorante, mas precisamente por conhecer a realidade. Além disso, fogem do confronto e da polémica. O mundo académico é-lhes auto-suficiente, o que não tem mal, excepto se as suas análises forem desligadas da realidade. Eu procuro que o meu trabalho seja útil à sociedade, que seja serviço público, que faça avançar o conhecimento da realidade, que seja intocável como análise científica da realidade. Os meus artigos de jornal beneficiam da minha experiência académica e esta beneficia da minha experiência constante como jornalista crítico de TV e media.
Seja. Mas reconhecerá que são universos diferentes ou muito diferentes…
São completamente diferentes. Uns são trabalhos científicos, seguindo as suas regras puras e duras, afastando-me em absoluto da minha opinião; os outros são artigos opinativos, baseados em factos comprovados, mas em prosa directa e frontal na opinião, sem medo dos adjectivos nem das reacções. Eu quero servir o leitor, o cidadão, não os poderes político, mediático, económico, desportivo. E não tenho medo da polémica, que é, no espaço público, um processo muito democrático e criativo. Pela minha maneira de ser, por ter uma orgulhosa costela de jornalista e por uma obsessão de prestar a informação e a opinião que não vejo em mais lado nenhum, tenho o impulso cívico de participar, de debater, estou sempre em polémica, sempre sujeito à crítica, justa ou injusta, e também aos insultos e até às perseguições, como aconteceu durante o consulado Sócrates, mas também, em pequeno grau, no de Santana Lopes. É uma das principais razões para ser tão odiado pelo poder político sistémico alargado (do BE ao CDS, pelas empresas “majestáticas”) e pelos seus militantes e avençados no espaço público. Mas não há nada a fazer. Pago o preço, conscientemente. Para usar um exemplo da televisão, eu também digo, como o tema da “Gabriela”: “Eu nasci assim. Eu cresci assim. Eu sou mesmo assim. Vou ser sempre assim.”