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Uma América em penoso declínio, controlada por parasitas tagarelas que debitam arengas onde se misturam socialismo nebuloso e sentimentalismo barato e se obstinam em erguer obstáculos aos poucos homens e mulheres de acção que lutam heroicamente para salvar o país da ruína.

É este o cenário de um dos mais famosos romances de Ayn Rand, Atlas shrugged, publicado originalmente em 1957 e traduzido em 25 línguas, que chega agora a Portugal como A revolta de Atlas (com o sub-título “O homem que queria parar o motor do mundo”), pela mão da Marcador e com tradução de Isabel Baptista. A edição portuguesa segue a edição brasileira de 2010 no título e na divisão das mais de 1200 páginas por três volumes (que correspondem às três partes em que Rand dividiu o romance), mas este primeiro volume omite, inexplicavelmente, qualquer referência ao facto de existirem mais dois, pelo que o leitor incauto ficará perplexo quando chegar à última página e ficar suspenso no vazio.

“A Revolta de Atlas”, de Ayn Rand (Marcador)

Independentemente dos méritos ou deméritos literários e ideológicos dos livros de Ayn Rand, o facto de uma autora que vendeu um total acumulado de 29 milhões de livros em todo o mundo (dados de 2013) só agora ver pela primeira vez um livro (um melhor, 1/3 de um livro) publicado em Portugal atesta bem a bizarria do nosso mercado livreiro.

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1.ª edição de A revolta de Atlas

Quem é John Galt?

A revolta de Atlas passa-se numa realidade alternativa que, embora esteja num estágio de desenvolvimento tecnológico similar ao da época em que foi escrito – década de 1950 – nos mostra um mundo em declínio: fábricas devoradas pela ferrugem, estradas rachadas e invadidas pela vegetação, lojas fechadas (mesmo nas ruas mais buliçosas de Nova Iorque), regressão dos padrões civilizacionais, com as pessoas fora das grandes cidades a viver em moldes medievais, contentando-se em praticar agricultura de subsistência e vivendo alheadas do que se passa fora do seu exíguo mundo de hortas miseráveis e casas decrépitas, mobiladas com bugigangas pilhadas aos edifícios abandonados da cidade-fantasma mais próxima.

O livro (ou pelo menos a sua primeira parte, sobre a qual se baseiam estas considerações) centra-se exclusivamente nos Estados Unidos da América, sendo as menções ao resto do mundo apenas passageiras, mas percebe-se nas entrelinhas que “lá fora” a situação é ainda pior do que nos EUA. O que terá empurrado a civilização para este definhar inquietante? Não foi uma guerra mundial, nem a queda de um meteorito ou uma pandemia devastadora, dir-se-ia que a civilização está a sucumbir simplesmente à abulia, à extinção da vontade de progresso, ao desleixo, ao “deixa andar” – e sempre que alguém questiona porque está o mundo como está e porque se arrastam as pessoas neste torpor, alguém retorque “Quem é John Galt?”. Ninguém sabe quem é John Galt e a frase não é sequer uma pergunta, é simplesmente uma expressão sarcástica de indiferença, passividade e aceitação de que há questões para as quais não há resposta e problemas para os quais não há solução.

Um eco moderno de A revolta de Atlas

Aqui e ali há pistas para explicar um panorama tão decadente e lúgubre: todos os países nomeados são “Repúblicas Populares” – na página 205 até se menciona a República Popular de Portugal – e a implantação do socialismo à escala global parece estar associado às dificuldades por que estes países passam: um mero pirata (que será uma das personagens centrais dos volumes seguintes) possui um navio mais poderoso do que qualquer vaso da marinha de guerra da República Popular da Inglaterra, há uma iniciativa que leva ajuda alimentar à República Popular de França…

Os EUA não são (ainda) uma República Popular, mas os principais decisores e empresários parecem professar um confuso, inconsequente e pueril ideário socialista. A sede do governo continua a ser em Washington, mas não há referência a um Presidente ou a um Congresso, apenas uma nebulosa e insondável entidade governamental que Rand retrata como inoperante, corrupta, pouco inteligente e inerte e que só tem iniciativa para promulgar legislação regulatória destinada a dificultar a vida aos poucos empresários que ainda fazem alguma coisa pela depauperada economia: “Dagny [uma dinâmica mulher de negócios] não sabia nada no campo da ‘influência em Washington’ nem sobre o que essa capacidade implicava. Mas parecia ser necessária, por isso não pensou mais no assunto, crendo que havia muitos tipos de trabalho desagradáveis, como limpar esgotos; alguém tinha de os fazer” (pg. 82-3).

Em A revolta de Atlas, Washington é representada como um antro de corrupção, estupidez e incompetência

Os sindicatos e organizações laborais não têm grande visibilidade em A revolta de Atlas, mas quando aparecem fazem o jogo do Estado e dos empresários imobilistas e ineptos: são ultra-conservadores, só pensam em preservar direitos adquiridos e opõe-se a tudo o que perturbe o statu quo.

Uma galeria de estereótipos

Ao handicap de o romance se assumir antes de mais como veículo para a exposição de uma tese, Ayn Rand soma os defeitos do maniqueísmo e da falta de subtileza. De um lado estão os homens/mulheres de acção: Dagny Taggart, vice-presidente da empresa ferroviária Taggart Transcontinental; Hank Rearden, líder da empresa siderúrgica Rearden Metal; Francisco d’Anconia, milionário argentino com minas de cobre espalhadas pelo mundo; Eddie Willers, assistente dedicado (no sentido canino do termo) de Dagny; Ellis Wyatt, empresário na área dos petróleos; Dan Conway, presidente da Phoenix-Durango, uma companhia ferroviária que disputa, em ambiente de sã concorrência, a primazia com a Taggart.

Na pesquisa para escrever “A revolta de Atlas”, Rand visitou em 1947 uma fábrica da Kaiser Steel: na imagem a unidade da Kaiser em Fontana, na Califórnia, cuja construção foi iniciada em 1942

Possuem um espírito frio, analítico e estritamente racional, são implacavelmente focados e auto-centrados, obcecados com lucro e eficácia, são movidos por uma determinação inquebrantável e trabalham dia e noite, fins-de-semana e feriados – a versão capitalista do herói stakhanovista. São leais, frontais e sem artifícios, são apaixonados pela inovação, têm uma visão ultra-liberal dos negócios e da sociedade. E como Rand acredita na fisionomia como espelho da alma – “gostou da cara dele, de linhas lisas e firmes, não tinha aquele aspecto flácido de quem evitava nitidamente a responsabilidade” (pg. 34) – os “bons” têm feições talhadas a cinzel, silhuetas esguias, corpos ágeis e longas pernas. E usam roupas de bom corte, mas práticas, funcionais e sem ostentação.

A descrição de Dan Conway é exemplar: “Tinha o rosto quadrado, impassível e obstinado de um maquinista rijo, mais do que de um presidente de uma empresa. Era o rosto de um lutador, com uma pele jovem e bronzeada […] Falava pouco, raramente lia um livro, nunca frequentara a universidade. Toda a esfera das proezas humanas, com uma única excepção, o deixava absolutamente indiferente. Não tinha noção nenhuma daquilo a que as pessoas chamavam cultura. Mas percebia de ferrovias”.

Para escrever “A revolta de Atlas”, Rand fez também pesquisa sobre a operação da companhia ferroviárias New York Central. Na imagem, uma das locomotivas emblemáticas da companhia, a futurista e aerodinâmica NYC Hudson, desenhada em 1938 por Henry Dreyfuss para puxar o comboio 20th Century Limited

Do outro lado está uma constelação de medíocres, na qual se destacam, como figuras cimeiras, Jim Taggart, irmão de Dagny e presidente (formalmente, mas não na prática, já que é incompetente e titubeante) da Taggart Transcontinental; Wesley Mouch, um ex-lobbista que se torna numa figura influente no Gabinete de Planeamento Económico e Recursos Nacionais, em Washington; Orren Boyle, um rival de Rearden no negócio do aço. São pançudos ou, pelo menos, flácidos, têm lábios moles, denotando pouca firmeza ou até cobardia, fisionomia inexpressiva e cabelo ralo. Levam uma vida de ócio e reuniões sociais feitas de conversa frívola, graçolas, boatos e maledicência. A sua ideologia é uma mescla de sentimentalismo barato e socialismo difuso. São dissimulados, pusilânimes, traiçoeiros, oportunistas, interesseiros, invejosos, frívolos e vaidosos. São também imobilistas e defensores da tradição e opõem-se por princípio a mudanças e inovações.

Os empresários visionários reúnem tantas qualidades face a esta súcia que se diria que o confronto estava ganho de antemão – porém, os medíocres imobilistas têm a seu favor jogar sujo enquanto os primeiros jogam limpo e o seu poder sobre o governo permite-lhes inclinar o campo de jogo a seu favor. E assim, a coberto de um discurso aparentemente piedoso e humanista, mas retintamente hipócrita, acabam por beneficiar, sem suor ou canseiras, daquilo que os empresários visionários plantaram e regaram.

Na pesquisa sobre ferrovias, Rand chegou a receber instruções sobre a operação da locomotiva do 20th Century Limited, comboio da companhia New York Central, que ligava a La Salle Street Station, em Chicago, ao Grand Central Terminal, em Nova Iorque. Foto de 1947, com o 20th Century Limited a partir da La Salle Street Station

Mundividências: Os empresários visionários

“Não temos nenhum objectivo espiritual. Só andamos atrás de coisas materiais. Apenas isso nos interessa” (pg. 125).

“Somos nós que movemos o mundo e somos nós que o vamos salvar” (pg. 126).

“Quero estar preparado para declarar a maior virtude de todas: que fui um homem que ganhou dinheiro” (pg. 136).

“Nada tem importância nesta vida, a não ser a nossa competência no trabalho. Nada. Só isso […] É a única medida do valor humano. Todos os códigos de ética que tentam enfiar-nos pela goela abaixo não passam de moeda falsa, inventada por vigaristas para arrancar virtudes às pessoas. O código da competência é o único sistema moral com um padrão certo” (pg. 141).

Mundividências: Os sentimental-socialistas

É óbvio que Rand pôs na boca dos seus heróis aquilo em que acredita. Em contrapartida, reservou para as personagens desprezíveis /e até repugnantes) a expressão das ideias que acha abomináveis:

“Agora que já tens idade para andar na faculdade, acho que deverias aprender alguma coisa a respeito de ideais. Está na altura de esqueceres a tua ganância egoísta e pensares um bocadinho nas tuas responsabilidades sociais, porque acho que aqueles milhões que vais herdar não são para o teu prazer pessoal, são para benefício dos desprivilegiados e dos pobres. Acho que só o tipo mais perverso de ser humano é que não percebe isto” (pg. 140).

“Os direitos de propriedade são uma superstição. Os proprietários só possuem uma propriedade por cortesia daqueles que não se apoderam dela” (pg. 185)

“O ideal mais nobre é o de que o homem viva pelo bem dos seus irmãos, que o forte trabalhe para o fraco, que o que tem capacidades sirva aquele que não as tem” (pg. 291).

“O meu objectivo era o progresso social, a prosperidade universal, a irmandade humana e o amor. O amor, menina Taggart. É a chave para tudo. Se os homens aprendessem a amar-se uns aos outros iriam solucionar todos os seus problemas” (pg. 399).

Para Rand, uma das causas da decadência civilizacional é a ascensão das filosofias nihilistas. As personagens que cultivam a mediocridade e o cinismo expressam-se assim: “O objectivo da filosofia não é ajudar os homens a encontrar o sentido da vida, mas sim provar-lhes que não existe nenhum” (pg. 181) “Não há nenhum espírito humano. O homem é apenas um animal de baixo nível, sem intelecto, sem alma, sem virtudes ou valore morais. Um animal só com duas capacidades: comer e reproduzir-se […] O único talento da humanidade é uma astúcia reles para satisfazer as necessidades do corpo [… Não acredite nas histórias a respeito da mente humana, do seu espírito, dos seus ideais e da sua ambição” (pg. 182)

Outra causa de declínio é, para Rand, o relativismo ontológico: “Nada é estático no universo. Tudo é fluido […] A razão, meu amigo, é a superstição mais ingénua de todas” (pg. 182); “Não existem factos objectivos. Todos os relatos sobre os factos são apenas as opiniões de alguém. Por isso, é inútil escrever acerca de factos” (pg. 298); “Os absolutos não existem […] Nada é absoluto. Tudo é uma questão de opinião” (pg. 342).

E outra ainda, o relativismo ético: “Quem é que sabe o que é o bem? Quem é que alguma vez pode saber?” (pg. 341). Da destruição dos referenciais à inversão de valores vai só um passo: “Quando um homem acha que é bom, é sinal de que ele está podre. O orgulho é o pior de todos os pecados” (pg. 341); “A infelicidade é a marca da virtude. Se um homem é infeliz, mesmo verdadeiramente infeliz, isso quer dizer que ele é um tipo de pessoa superior” (pg. 342).

Capa da 1.ª edição de “The fountainhead” (1943)

O antecedente: The fountainhead

A revolta de Atlas retoma, em parte, a dicotomia já exposta no outro romance de grande sucesso de Rand, The Fountainhead, publicado 14 anos antes. De um lado está o arquitecto Howard Roark, um visionário sobredotado, determinado, incorruptível e inflexível, do outro uma corja de conformistas, incompetentes e parasitas, liderada pelo arquitecto Peter Keating e pelo critico de arquitectura (e socialista) Ellsworth Toohey. Ou seja, é também uma história da luta do génio solitário e com uma ética de trabalho irrepreensível contra a carneirada ronhosa e traiçoeira, do inovador contra os imobilistas, do indivíduo excepcional contra a pulsão colectivista que o quer sufocar.

The fountainhead é menos esquemático e demonstrativo do que A revolta de Atlas e são nele menos frequentes as representações caricaturais do socialismo. É também mais fácil sentir simpatia pela luta de Howard Roark para afirmar a sua visão artística e defender a sua integridade, do que pelos empresários de A revolta de Atlas que crêem que ganhar dinheiro é “a maior virtude de todas” e devotam a isso toda a sua energia.

Rand inspirou-se em Frank Lloyd Wright (1867-1959) para criar a personagem do arquitecto Howard Roark

Também a forma como Roark concebe o individualismo é mais nobre e sofisticada: “É fácil depender do julgamento alheio. É árduo sermos avaliados pelos nossos próprios padrões. Podem simular-se virtudes para um público. Mas não se pode fazê-lo aos nossos próprios olhos. O nosso ego é o nosso juiz mais severo […] Ninguém é capaz de pensar com o cérebro de outra pessoa ou de trabalhar com as mãos de outra pessoa. Quando suspendemos a nossa faculdade de julgamento autónomo, estamos a suspender a consciência. […] [As pessoas de segunda mão são] opinião sem processo racional. Movimento sem travões ou motor. Poder sem responsabilidade”.

Curiosamente, esta dicotomia tem afinidades com a oposição que o filósofo franco-grego Cornelius Castoriadis (1922-1997) faz entre indivíduos autónomos e heterónomos, apesar de Castoriadis ter professado convicções políticas diametralmente opostas às de Rand – foi co-fundador do grupo Socialisme ou Barbarie.

Roark, o homem que se guia apenas pelo seu próprio referencial, tem continuidade nos heróis de A revolta de Atlas – veja-se a evocação que Hank Rearden faz de si mesmo, aos 18 anos: “a tensão do rosto, a desenvoltura do passo, o entusiasmo ébrio do corpo, intoxicado pela energia das noites sem dormir, a cabeça orgulhosamente levantada, os olhos claros, firmes e impiedosos, os olhos de um homem que se conduzia a si mesmo sem piedade em direcção ao que ele queria” (pg. 291).

21 de Outubro de 1959: Inauguração do Museu Solomon R. Guggenheim, em Nova Iorque, uma das mais ousadas e emblemáticas obras de Frank Lloyd Wright

O arqui-inimigo de Roark é Ellsworth Toohey, que aspira a nivelar a Humanidade por baixo, por afogar o homem excepcional no mar da mediocridade: “Destrói o quadro de valores do homem. Destrói a sua capacidade para reconhecer a grandeza ou atingi-la. Não é possível governar os grandes homens. Não queremos grandes homens […] O grande é o raro, o difícil, o excepcional. Estabelece padrões de realização que estejam ao alcance de todos, até dos mais ineptos, e deterás o ímpeto de todos os homens, grandes e pequenos. Deterás todo o incentivo ao melhoramento, à excelência, à perfeição […] Não te empenhes em destruir todos os santuários – irias assustar as pessoas. Santifica a mediocridade – e os santuários terão sido arrasados. Destrói pelo riso. O riso é um instrumento da alegria humana. Aprende a usá-lo com uma arma destrutiva. Transforma-o em escárnio. É simples. Diz-lhes para se rirem de tudo. Diz-lhes que o sentido de humor é uma virtude ilimitada. Não deixes que reste nada sagrado na alma do homem – e até a alma deixará de ser sagrada para ele. Destrói a reverência e terás destruído o herói que há no homem. Ninguém reverencia uma risota”. Toohey é demasiado retorcido e auto-consciente no seu maquiavelismo para ser credível, mas, ainda assim, é uma personagem mais sólida e cativante do que os socialistas de papelão de A revolta de Atlas.

Em 1956, no fim da vida, Frank Lloyd Wright concebeu o mais visionário dos seus projectos: The Illinois, um arranha-céus de uma milha (c. 1609 metros) de altura e 528 pisos (quatro vezes a altura do Empire State Building, então o edifício mais alto do mundo), que deveria ter sido erguido em Broadacre City, perto de Chicago

O que Rand pensa sobre literatura

Para Rand, o sucesso comercial é o critério supremo: a personagem Balph Eubank é ridicularizada por ser “considerado o líder literário da actualidade, mas nunca escrevera um livro que tivesse vendido mais de 3.000 exemplares” (pg. 183). O mercado é o único juiz do valor do que é produzido, sejam carris de caminho-de-ferro – como a personagem Hank Rearden deixa claro na pg. 238 – ou livros.

Não espanta, pois, que a ideia de que a criação artística e literária possa ser apoiada pelo Estado também repugne a Rand, como atesta o discurso que coloca na boca de um dos “decadentes”: “A cultura deve ser tirada das mãos daqueles que só procuram o lucro. Precisamos de um subsídio nacional para a literatura. É uma vergonha que os artistas sejam tratados como vendilhões e que as obras de arte tenham de ser vendidas como o sabão” (pg. 192).

Rand não hesita em defender o seu modelo de romance, convencional, hollywoodesco e povoado de personagens bigger than life, contra inovações, atribuindo a um dos representantes da “decadência” esta posição: “A literatura do passado era superficial e fraudulenta. Pintava a vida muito bonita para agradar aos magnatas a quem serviu. Moral, livre-arbítrio, vitórias, finais felizes, o Homem como uma espécie de criatura heróica… tudo isso é risível para nós” (pg. 182). E, fazendo o paralelo com outras formas de expressão artística e pensamento, afirmam os “decadentes”: “O enredo é uma vulgaridade primitiva na literatura […] tal como a lógica é uma vulgaridade primitiva na filosofia […] e tal como a melodia é uma vulgaridade primitiva na música” (pg. 184).

O que pensaria Rand de um livro sobre um caixeiro-viajante que acorda um dia transformado em insecto, ou de outro sobre um professor obcecado por ninfetas que é levado à desgraça em resultado da irreprimível paixão pela insinuante enteada de 12 anos? Tudo leva a crer que os arrumaria na literatura degenerada…

[Trailer do documentário Ayn Rand: A sense of life (1996), realizado por Michael Paxton]

Como se faz uma inimiga figadal do socialismo

A juventude de Ayn Rand encerra uma explicação para o seu repúdio do colectivismo e pela sua defesa feroz do individualismo. Rand nasceu a 2 de Fevereiro de 1905 numa família judia de São Petersburgo e começou por chamar-se Alisa Zinovyevna Rosenbaum. O pai era proprietário de uma farmácia, a família tinha uma vida desafogada e Alisa andou numa das melhores escolas da capital russa, o Ginásio Stoiunina, onde a sua amiga mais chegada era Olga Nabokov (a irmã mais nova de Vladimir), para cuja mansão familiar era convidada amiúde. A revolução de Outubro de 1917 pôs termo a essa vida: o pai viu-se expropriada da farmácia e a família ficou arruinada, passando por muitas privações. Alisa, que foi uma aluna brilhante, estudou História e Literatura na Universidade Estatal de Petrogrado (o nome dado a São Petersburgo em 1914), mas o facto de provir de uma família “burguesa” fez com que fosse expulsa da universidade e só a custo conseguisse terminar o curso. Ainda assim, a passagem pela universidade terá sido decisiva na sua formação e mais tarde apontaria o professor Nikolay Lossky, que defendia um sistema filosófico a que chamava “personalismo intuitivo”, como uma influência determinante na evolução do seu pensamento.

[Excerto de entrevista de Ayn Rand por Mike Wallace, em 1959: Rand omite a influência de Nikolay Lossky e afirma ter desenvolvido o seu sistema filosófico por si mesma, sem necessidade de recorrer a outro filósofo para lá de Aristóteles]

Rand frequentou em seguida o Instituto Politécnico Estatal de Artes Cinematográficas de Leningrado (a cidade voltara a ser rebaptizada) e foi com a ambição de ser guionista (por esta altura já adoptara o pseudónimo literário Ayn Rand) que desembarcou em Nova Iorque a 19 de Fevereiro de 1926, munida de um visto que lhe fora concedido para visitar familiares que se tinham instalado nos EUA.

Ayn Rand em 1925

Porém, Rand não fazia tenção de regressar ao país natal: o seu fascínio era a América. As portas de Hollywood não se abriram de par em para ela e teve de contentar-se com biscates como figurante, revisora de guiões e responsável pelo guarda-roupa. Em 1932 conseguiu vender um guião à Universal, mas o filme nunca foi rodado. 1934 foi o ano em que uma peça de sua autoria, Night of January 16th, teve estreia em Hollywood e depois na Broadway e em que escreveu We the living, que foi recusado por várias editoras antes de ser publicado em 1936 – é um romance de inspiração autobiográfica, que narra a luta árdua pela sobrevivência de Kira, a filha de uma família burguesa na Rússia pós-revolucionária, cujo espírito independente a faz recusar a sujeição aos moldes impostos pelos bolcheviques. É menos afortunada do que Rand, pois ao tentar fugir do país é morta por um guarda fronteiriço. A 1.ª edição rendeu a Rand cerca de 100 dólares, mas ao longo dos anos, a reboque do sucesso dos outros romances, o livro vendeu 3.5 milhões de exemplares.

1.ª edição de We the living

Nos anos 40, o envolvimento de Rand na campanha eleitoral republicana colocou-a em contacto com pensadores e autores libertários e defensores da economia de mercado, nomeadamente com o economista austríaco Ludwig von Mises – é bom lembrar que na primeira metade dos anos 40, em resultado da imperiosa necessidade de fazer face à Grande Depressão e, depois, de combater a Alemanha e o Japão, a economia dos EUA era fortemente centralizada, mais do que alguns países ditos socialistas o foram em períodos de paz.

Em 1943, após oito anos de escrita e rejeições por uma dúzia de editoras, surgiu nas livrarias The fountainhead. Após um arranque lento, o “romance filosófico” (a designação é da própria Rand) começou a trepar nos tops de vendas ao longo de 1944-45 – vendeu até hoje 6.5 milhões de exemplares e está traduzido em 20 línguas.

[Trailer de “The fountainhead”]

The fountainhead foi o ponto de viragem na carreira de Rand: a Warner Bros. comprou os direitos para a adaptação cinematográfica que estreou em 1949, com o mesmo título (chegou a Portugal como “Vontade indómita”), com guião da própria autora, realização de King Vidor e uma galeria de actores de luxo: Gary Cooper (Howard Roark), Patricia Neal (Dominique Francon), Raymond Massey (Gail Wynand), Kent Smith (Peter Keating) e Robert Douglas (Ellsworth Toohey).

[Excerto de “The fountainhead”: O conselho de administração do Security Bank of Manhattan tenta convencer Roark a suavizar o projecto da nova sede, que acham “demasiado diferente, demasiado original”, com uns “toques de dignidade clássica”. “Há sempre que fazer cedências ao gosto médio”, justificam eles. O indómito Roark recusa-se a transigir]

O sucesso de The fountainhead trouxe a Rand melhores contratos e oportunidades como guionista e deu-lhe também protagonismo nas campanhas anti-comunistas da América do pós-guerra – juntou-se à Aliança Cinematográfica para a Preservação dos Ideais Americanos e foi testemunha no Comité de Actividades Anti-Americanas do senador McCarthy.

Em 1956 surgiu A revolta de Atlas, que retoma e desenvolve temas abordados em The fountainhead, agora sob a forma de uma ficção distópica, em que, em resposta à tentativa do Estado de sufocar toda a criatividade e iniciativa individual, em nome do colectivismo, as mentes criativas e empreendedoras dos EUA criam um enclave autónomo no coração montanhoso do país (o enredo tem um elemento verdadeiramente visionário: um dos eixos da nova dinâmica económica que brota no Colorado é o método de exploração do petróleo de xisto desenvolvido por Ellis Wyatt). A componente de explanação filosófica já patente em The fountainhead torna-se mais conspícua em A revolta de Atlas – o livro está ao serviço do Objectivismo, a filosofia concebida por Rand e que defende o racionalismo, o individualismo e o mercado livre. A intenção da autora, explicitada em notas de 1945. é “mostrar como o mundo necessita desesperadamente de motores principais [os criadores e empreendedores visionários], mas também como os trata cruelmente”.

Depois de “A revolta de Atlas”

O sucesso de A revolta de Atlas – apesar das reacções frias da crítica literária – levou a que Rand proclamasse numa entrevista ser “o pensador vivo mais criativo” do mundo. Poderia pensar-se que o sucesso lhe dera volta à cabeça, mas em textos de 1946 já ela se gabava de que “criar uma abstracção nova e original e traduzi-la através de novos meios originais [de escrita ficcional] tanto quanto sei, sou só eu”. Não há, porém, nada de radicalmente novo nem no conteúdo nem na forma dos romances de Rand. A sua prosa é eficaz e desenvolta mas convencional, conformando-se ao registo épico hollywoodesco e caindo frequentemente no cliché. E alguns trechos – como a descoberta do motor enigmático na fábrica abandonada da Companhia de Motores Século XX – descem ao nível do livro de aventuras juvenil.

A revolta de Atlas marca uma inflexão na carreira de Rand: daí em diante deixou de escrever ficção e consagrou-se aos ensaios e ao desenvolvimento e disseminação do Objectivismo, para o que contou com a ajuda do Ayn Rand Collective, um círculo íntimo de admiradores que rodeou Rand quando ela se mudou para Nova Iorque no início dos anos 50 (a menção a “colectivo” num grupo que exaltava o individualismo era, claro, irónico).

Entre as figuras mais activas deste grupo está Nathaniel Branden (1930-2014), que abandonou o seu nome de baptismo, Nathan Blumenthal, depois de conhecer Rand e se consagrou à divulgação do Objectivismo, através da fundação, em 1958, do Nathaniel Branden Institute e de The Objectivist Newsletter (antecessor de The Ayn Rand Newsletter) e da escrita de livros sobre Rand e o seu sistema filosófico. Até que em 1968 Rand acusou publicamente Branden de “irracionalidade filosófica” e de desequilíbrio psicológico (Branden retorquiu que Rand ficara furiosa por ele ter recusado envolver-se sexualmente com ela) e cada um seguiu o seu caminho. O filósofo Leonard Peikoff (n. 1933), que se juntou ao grupo de admiradores de Rand em 1951, tornou-se no seu herdeiro espiritual e fundou em 1985 o Ayn Rand Institute e é ele que assina o prefácio – hagiográfico e acrítico – da reedição de 1991 de Atlas shrugged, reproduzido na edição portuguesa.

Nos anos 60 e 70, Rand publicou vários ensaios mas, como é natural, estes não lograram alcançar um público tão vasto como os seus romances: For the new intellectual (1961), The virtue of selfishness (1964), um título que é todo um programa, Capitalism: The unknown ideal (1966), The romantic manifesto (1969), The anti-industrial revolution (1971), Introduction to objectivist epistemology (1979) e Philosophy: Who needs it (1982, edição póstuma). Entre 1971 e 1976 publicou ainda uma newsletter, The Ayn Rand Letter.

Rand foi também muito activa como conferencista – sobretudo no meio universitário – e foi espalhando pelo mundo as suas posições conservadoras em relação ao colonialismo e à homossexualidade. No fim da vida trabalhou numa adaptação televisiva (pela NBC) de A revolta de Atlas, mas a morte, a 6 de Março de 1982, impediu-a de completar este guião.

A ideia de adaptar A revolta de Atlas ao grande ou ao pequeno écran, que vem do início dos anos 70, só se concretizou em 2011, com o filme “Atlas shrugged part I”, realizado por Paul Johansson. A 2.ª parte estreou em 2012 e a 3.ª e última em 2014 e todas tiveram recepção crítica invulgarmente desfavorável – o agregador de críticas cinematográficas Rotten Tomatoes regista 11% de aprovação para a I parte, 4% para a II e 0% para a III.

[Trailer de “Atlas shrugged part I” (2011)]

Os leitores estão com Ayn Rand

Em 1998, a editora Modern Library pediu ao seu conselho editorial, formado por luminárias do meio cultural norte-americano (entre os quais se contavam nomes como Daniel Boorstin, A.S. Byatt William Styron ou Gore Vidal), para escolher os 100 melhores romances do século XX. A votação resultou numa lista – que ficou conhecida como Editor’s List – encabeçada por 1) Ulisses, de Joyce, 2) O grande Gatsby, de Fitzgerald, 3) Retrato do artista quando jovem, de Joyce, 4) Lolita, de Nabokov, 5) Admirável mundo novo, de Huxley, 6) O som e a fúria, de Faulkner, 7) Catch-22, de Heller, 8) O zero e o infinito, de Koestler, 9) Filhos e amantes, de D.H. Lawrence, e 10) As vinhas da ira, de Steinbeck. Não é uma lista inesperada, nem sequer no seu clamoroso enviesamento em favor da literatura de língua inglesa – são todos títulos “canónicos”.

[Trailer de Atlas shrugged part II: The Strike (2012)]

Bem diverso foi o resultado que se obteve quando se fez pedido similar ao leitor anónimo norte-americano. A Reader’s List 100 Best Novels tem nos dez primeiros lugares 1) A revolta de Atlas, de Rand, 2) The fountainhead, de Rand, 3) Terra: campo de batalha, de L. Ron Hubbard, 4) O senhor dos anéis, de Tolkien, 5) Não matem a cotovia, de Harper Lee, 6) 1984, de Orwell, 7) Anthem, de Rand, 8) We the living, de Rand, 9) Missão Terra, de Hubbard e 10) Fear, de Hubbard.

Em 10 títulos, quatro são de Rand e três do guru da Cientologia, o que mostra quão arredados são os interesses, critérios e gostos das massas e da elite (nenhum dos livros de Rand e Hubbard surge nos 100 da Editor’s List) e quanto as convicções ideológico-filosóficas se sobrepõem aos critérios literários na apreciação do “povo”: em dez livros, oito (os de Rand, Hubbard e Orwell) aliam ao escasso ou nulo valor literário uma forte componente “filosófica” – são romances-ensaio ou até romances-panfleto, em que a ficção é posta integralmente ao serviço da explanação/promoção de uma concepção ideológica ou de uma mundividência.

[Trailer de Atlas shrugged part III: Who is John Galt? (2014)]

A votação da Reader’s List deve ser tomada com as cautelas e reservas inerente a qualquer “voto popular” ou “sondagem de opinião” (é impossível não evocar a afirmação “considerado pelos portugueses o melhor escritor nacional” com que José Rodrigues dos Santos é promovido na badana do seu romance mais recente), sobretudo quando não tenha sido apurado através de métodos científicos de amostragem. As votações para as Reader’s List 100 Best Novels não representam o universo de leitores mas a fracção que se voluntariou para exprimir a sua escolha (cerca de 200.000), o que, claro, faz com que os “crentes” (e, sobretudo, os “fanáticos”) estejam largamente sobre-representados.

A popularidade de Rand e Hubbard é também distorcida por outros factores. Os livros de Hubbard são activamente promovidos pela Igreja da Cientologia, quer através de pressões informais, vindas da hierarquia e dos correligionários, para que os fiéis desta seita os comprem e leiam, quer por a Igreja efectuar compras de quantidades maciças de livros através das suas delegações e instruir explicitamente fiéis a adquirirem dois ou três exemplares cada um, de forma a que o livro figure em lugar proeminente nos tops de vendas.

John Galt ganhou finalmente um rosto: em Atlas Shrugged part III (2014) é o actor Kristoffer Polaha; à sua esquerda, Laura Regan, no papel de Dagny Taggart

Quanto a Rand, tem a trabalhar a seu favor o Ayn Rand Institute, que distribui os seus livros gratuitamente pelas escolas, um escoamento que corresponde a 10% do volume total de vendas. E há que reconhecer que The fountainhead e A revolta de Atlas são, quando não se enredam na explanação da mundividência da autora (na III parte de A revolta de Atlas há um discurso radiofónico que se estende por 70 páginas), um entretenimento competentemente estruturado e redigido, conforme às regras do filme de acção da era clássica de Hollywood e com uma componente de tensão e suspense que os transforma, aos olhos de muitos leitores, num irresistível page-turner.

Seja como for, o domínio esmagador de Rand e Hubbard nas preferências “populares” dos leitores não pode ser ignorado, pois revela algo sobre uma fracção substancial dos cidadãos americanos.

Quando é preciso um actor para encarnar um barão da droga ou um poderoso e enigmático magnata argentino, pode contar-se sempre com Joaquim de Almeida, aqui na pele do misterioso milionário/playboy Francisco d’Anconia, que tem um envolvimento amoroso com Dagny Taggart (Laura Regan), a mulher-de-armas da Taggart Transcontinental, em Atlas Shrugged part III

E as elites políticas e empresariais também…

Entre os louvores a A revolta de Atlas reproduzidos na contracapa da edição portuguesa lê-se que o romance “é a celebração da vida e da felicidade”, uma frase que provém de Alan Greenspan (n. 1926), que foi presidente da Reserva Federal durante 19 anos, entre 1987 e 2006, ou seja, o homem que, vendo no mercado a fonte última de racionalidade e o egoísmo e a livre iniciativa como motores do mundo, apoiou a privatização da Segurança Social e deixou o sistema financeiro norte-americano chocar a bolha especulativa que estoirou em 2007. Não se pense que a frase de Greenspan sobre A revolta de Atlas é apenas um comentário distraído de um economista proeminente que dispensa uma atenção passageira a um ou outro romance, entre um relatório financeiro e o seguinte: no início dos anos 50, Greenspan fez parte do Ayn Rand Collective, ouviu a autora ler rascunhos do romance para a plateia de eleitos, ainda antes da publicação, e converteu-se ao Objectivismo.

Nos salões e festivais literários discute-se recorrentemente se a literatura é capaz de mudar o mundo, e a conclusão tende a ser negativa, mas isso é porque se está a pensar em escritores como Paul Celan, Bruce Chatwin, Wisława Szymborska, Camilo José Cela ou W.G. Sebald, cujos livros se têm mostrado incapazes de interferir com as cotações do Dow Jones ou com as notações das agências de rating. Mas os autores relevantes para a história da literatura não são necessariamente os mesmos que são relevantes para a história do mundo e é possível que Ayn Rand seja um dos escritores mais influentes de todos os tempos e que A revolta de Atlas tenha feito mais para condicionar a marcha da história do que Mein Kampf, que foi comprado e oferecido aos milhões, mas que foi muito pouco lido (o que é perfeitamente compreensível, dado que está ineptamente escrito e argumentado).

A Fundição Rearden no filme Atlas shrugged part III

As posições de Rand em defesa do mercado livre e da redução da esfera de influência do Estado e a sua exaltação do génio individualista e do empresário visionário têm suscitado a adesão de muita figura grada de Silicon Valley e da “nova economia digital”: é o caso de Steve Jobs, para quem A revolta de Atlas foi (segundo o seu amigo e parceiro de negócios Steve Wozniak) um livro que norteou a sua vida; de Travis Kalanick, ex-CEO da Uber; de Peter Thiel, um dos primeiros investidores a apostar no Facebook e um apoiante de Trump; de Evan Spiegel, co-fundador e CEO da Snapchat e um dos mais jovens bilionários do mundo; ou de Mark Cuban, milionário dos media, dono da equipa de basquetebol Dallas Mavericks e um dos “tubarões” do programa Shark tank, que declarou em 2006 que The fountainhead lhe moldou o modo de pensar e a atitude perante a vida (e serviu também para baptizar o seu iate).

The Fountainhead, o iate de Mark Cuban

É natural que uma autora que defende que o egoísmo é uma virtude, que a vida é uma competição implacável e cujos heróis proclamam que “a competência no trabalho […] é a única medida do valor humano” seja bem acolhida junto dos campeões do empreendedorismo, dos CEOs das start-ups e dos “unicórnios” e dos directores das “business schools”.

A crise decorrente do estoiro da bolha do sub-prime deveria ter mostrado (a quem não o tivesse percebido antes) que o egoísmo e a falta de regulação defendidos por Rand podem ter consequências catastróficas para a economia, mas a humanidade está pouco disponível para aprender lições e as vendas dos livros de Rand aumentaram significativamente depois de 2007. E a ideia de que “somos nós [os egoístas visionários] que movemos o mundo e somos nós que o vamos salvar” (pg. 126) encontrou eco na célebre declaração de Lloyd Blankfein, CEO da Goldman Sachs, em 2009: “Estamos a fazer o trabalho de Deus”. E isto quando ainda não tinham acabado de cair os destroços e estilhaços da explosão da bolha financeira de que a sua empresa era co-responsável.

[Excerto de “Wall Street” (1987), de Oliver Stone: o infame Gordon Gecko (Michael Douglas) ecoa Rand quando proclama que “A ganância é boa, a ganância é justa, a ganância funciona”]

Muitas figuras proeminentes da direita norte-americana – sobretudo na órbita do Tea Party e da alt-right têm manifestado a sua identificação com as ideias de Rand.

Paul Ryan, uma das figuras cimeiras do Partido Republicano e que ocupa hoje a posição de speaker na Câmara dos Representantes, declarou que cresceu com os livros de Rand e que foram eles que o levaram a abraçar uma carreira política. É um activo prosélito do Objectivismo, tendo oferecido um exemplar de A revolta de Atlas a cada membro da sua equipa e, como Rand, vê a Segurança Social como um sistema de inspiração socialista (note-se que, na sua boca e nos ouvidos dos seus eleitores, “socialismo” é uma palavra suja). Mais reveladora ainda é a declaração de 2009 em que Ryan vê a situação dos EUA e do mundo como saída de “um romance de Ayn Rand. Acho que Ayn Rand fez melhor do que qualquer outra pessoa, a justificação moral do capitalismo e que essa moralidade do capitalismo está hoje sob ataque”.

Paul Ryan

Durante algum tempo circulou o rumor de que Rand Paul, senador republicano e filho de Ron Paul, teria sido assim baptizado em homenagem a Ayn Rand. Não parece ser fundado, apesar da inegável devoção por Rand de Ron Paul – candidato à presidência dos EUA pelo Partido Libertário em 1988 e candidato nas primárias do Partido Republicano em 2008 e 2012 –, que foi manifestada, entre outras ocasiões, por um discurso numa universidade em 2007, em que reconhece que Rand teve grande influência sobre ele, apesar de discordar das suas posições sobre religião.

O juiz do Supremo Tribunal Clarence Thomas (nomeado por George Bush pai, em 1990) faz os novos membros da sua equipa assistir ao filme “The fountainhead” (e não será certamente por razões cinematográficas).

Rex Tillerson, Secretário de Estado da administração Trump, elegeu, em 2008, A revolta de Atlas como livro favorito e esta sua declaração, no tempo em que era CEO da ExxonMobil, poderia ter sido colocada por Rand na boca de Ellis Wyatt, o empresário do petróleo de xisto do Colorado: “A minha filosofia é fazer dinheiro. Se eu puder perfurar e fazer dinheiro, é isso que farei”.

Rex Tillerson discursa numa tribuna com os nomes das duas divindades que mais venera

Já Steve Bannon, fundador do Breitbart News (um dos mais influentes websites de inspiração alt-right), um dos principais ideólogos por trás de Trump e até há pouco tempo chefe de estratégia da Casa Branca, tomou posição, num discurso em 2014, contra o “capitalismo libertário” defendido por Ayn Rand, considerando-o tão nefasto quanto o “capitalismo de Estado” praticado na Rússia e na China, e advogando, em alternativa, aquilo que designa por “capitalismo iluminista”, de inspiração judaico-cristã (talvez o facto de a conferência em questão ter tido lugar no Vaticano tenha influenciado estas palavras).

“Goddess of the market: Ayn Rand and the American right” (2009), uma biografia de Rand por Jennifer Burns, que enfatiza a influência do pensamento de Rand sobre os movimentos libertários e conservadores nos EUA

Não é coincidência que tantos membros da administração Trump (ou figuras que foram consideradas para ela e depois rejeitados) sejam admiradores dos livros e das ideias de Rand – o próprio Presidente dos EUA se conta entre os fãs.

Donald Trump e Howard Roark: Duas almas gémeas?

Numa entrevista de 2016 com Kirsten Powers, Donald Trump elegeu The fountainhead como um dos seus livros favorito: “Tem a ver com negócios, beleza, a vida e emoções íntimas. É um livro que tem a ver com tudo”. A apreciação parece mais própria de uma Miss Kentucky do que de um Presidente dos EUA, mas o que salta mais à vista é que o apreço de Trump por Rand é incongruente com as promessas e a prática de Trump de fazer o seu governo interferir com o mercado, desfazendo acordos de comércio livre e impondo barreiras aduaneiras.

Mas congruência é algo que não pode pedir-se a alguém com a estrutura psicológica de Trump e, provavelmente, o seu interesse por The fountainhead não tem a ver com a ideologia de Rand mas com a sua identificação com Howard Roark: o homem de acção determinado e inflexível, que paira acima da carneirada e ousa desafiar o establishment, o macho-alfa de cabelo alaranjado (é verdade, também Roark o tem) a quem mulher alguma resiste e cuja técnica de sedução está sintetizada em “grab’em by the pussy” – e vale a pena considerar que a primeira cena de sexo entre Roark e Dominique Francon anda perto de ser uma violação, com Dominique a desempenhar um ambíguo papel entre provocadora e vítima submissa.

Patricia Neal (Dominique Francon) e Gary Cooper (Howard Roark) no filme The fountainhead

Seja o que for que Trump pense e a que imagem tenha de si mesmo (já se sabe que narcisismo e bravata são os seus fortes), o seu perfil e historial como “empresário de sucesso” não poderiam estar mais afastado dos heróis dos romances de Rand. Bastaria atentar nestas palavras de Howard Roark: “O homem que trapaceia e mente, mas preserva uma fachada respeitável. Sabe no seu íntimo que é desonesto, mas os outros julgam-no honesto e ele retira daí o seu amor-próprio, em segunda mão. O homem que aceita ser creditado por algo que não realizou. Ele sabe ser um medíocre, mas é grande aos olhos dos outros […] O homem cujo único objectivo é fazer dinheiro […] Se ele o quer para um propósito pessoal – investir na sua empresa, criar, estudar, viajar, desfrutar do luxo – é absolutamente moral. Mas os homens que colocam o dinheiro em primeiro lugar vão muito para lá disso […] O que querem é ostentação: exibir, entreter, impressionar os outros. São também gente de segunda mão […]”.

Trump terá talvez saltado esta passagem, ou se a leu, como narcisista incorrigível que é, entendeu que não lhe dizia respeito.

[Seguidores de Rand pelo mundo fora exprimem as suas reservas em relação a Trump: ter gostado de The fountainhead não o qualifica como objectivista e um dos entrevistados vê-o antes como um oportunista]

A paixão da direita americana por Rand assenta em equívocos?

Na idolatria dos políticos da direita americana por Rand há uma contradição impossível de sanar: eles são, quase sem excepção, cristãos devotos e a sua suposta musa era uma ateísta irredutível, que via a religião como absolutamente incompatível com o Objectivismo. Não podemos, sem recurso a uma mesa de pé-de-galo, saber o que Rand pensaria hoje dos seus fãs da alt-right, mas podemos fazer algumas extrapolações a partir do que Rand disse sobre Ronald Reagan. No seu último discurso público, em Outubro de 1981, no National Committee for Monetary Reform, classificou a administração de Ronald Reagan (que assumira a presidência em Janeiro desse ano) como uma “desgraça pavorosa”, acusou Reagan de pactuar com a Moral Majority (um lobby conservador) e os pregadores televisivos na tentativa de impor as suas ideias religiosas a outras pessoas e repudiou a sua intenção de “fazer os EUA regredir para a Idade Média através da união inconstitucional entre religião e política”, e apontou a contradição de Reagan alegar ser um defensor das liberdades e, ao mesmo tempo, ter a intenção de proibir o aborto.

[Último discurso público de Rand, em Outubro de 1981]

Alguns dos políticos que tinham exprimido uma identificação total com Rand têm vindo a fazer “recuos estratégicos”, à medida que descobrem que a ideologia de Rand não é exactamente o que eles pensavam ou quando calculam que a sua identificação com uma filosofia que defende o ateísmo e o aborto poderá fazer-lhes perder eleitores. É o caso de Paul Ryan, que em 2012 classificou a sua adesão ao ideário de Rand como uma “lenda urbana” (“é uma filosofia ateísta que reduz as relações humanas a meros contratos e que é a antítese da minha mundividência”) e afirmou que o seu pensamento está afinal fundado em… São Tomás de Aquino.

Talvez parte da recente onda de entusiasmo por Rand entre a alt-right resulte de uma leitura superficial ou equívoca dos seus livros. Se é certo que um “romance filosófico” de tom épico e pleno de tensão, suspense e reviravoltas inesperadas exerce muito maior apelo junto das massas do que um ensaio filosófico, a margem de subjectividade e ambiguidade que uma obra de ficção necessariamente comporta – mesmo aquelas que têm um propósito didáctico – faz com que apenas parte da “mensagem” atinja os leitores, sobretudo se forem leitores com hábitos de leitura rarefeitos e limitados.

Quando o interesse pelos livros de Rand recrudesceu no rescaldo da crise do sub-prime, Barack Obama comentou “Ayn Rand é um daqueles autores que podem tocar-nos quando temos 17 ou 18 anos e nos sentimos incompreendidos. Depois, quando crescemos, percebemos que um mundo em que só pensamos em nós mesmos e os outros são irrelevantes […] é uma visão muito estreita”.

Manifestação do Tea Party, em Chicago, 2009: um manifestante identifica-se com John Galt, um dos heróis de A revolta de Atlas

Ayn Rand e os eleitores americanos

Numa entrevista televisiva realizada pouco depois do discurso no National Committee for Monetary Reform, em 1981, Rand detalhou alguns aspectos da sua visão da situação política americana da altura: acusou os homens de negócios americanos de terem vergonha de terem enriquecido e de financiarem universidades que promovem propaganda anti-capitalista e reprovou Reagan por ter um pendor demasiado… socialista: “Não é o advogado adequado do capitalismo; ele não é a favor do capitalismo, defende uma economia mista”. E conclui Rand: “o público está farto do Estado social [Welfare State] e gostaria de regressar a um americanismo racional”.

[Uma das últimas entrevistas de Ayn Rand, com Louis Rukeseyer, em 1981]

Pode perguntar-se o que sabe Rand sobre o sentir do “público” americano que a autoriza a falar em nome dele, mas não deixa de ser verdade que há largos sectores do eleitorado americano que vêem o Estado social como um incentivo ao parasitismo – nalgumas manifestações do Tea Party viam-se cartazes que exigiam “Free markets, not freeloaders”, um trocadilho intraduzível cujo sentido é “mercados livres, não parasitas”, sendo “freeloader” uma expressão que designa quem desfruta de algo (comida, alojamento) de borla, à custa de outrem.

Também está amplamente disseminada junto de muitos eleitores a ideia veiculada por A revolta de Atlas de que Washington e o governo federal são antros de políticos e funcionários incompetentes e corruptos e de lobbistas, que funcionam como sorvedouros de dinheiro e ameaças à livre iniciativa e às liberdades individuais e que o Estado é ineficiente a desempenar muitas das suas funções, pelo que é urgente diminuir a esfera de intervenção do Estado (o conceito de “menos Estado é melhor Estado”, também com voga na Europa).

Washington, 12 de Setembro de 2009: a Marcha dos Contribuintes (Taxpayer March), promovida pelo Tea Party, protesta contra o “Big Government” e a sua interferência nefasta na vida dos cidadãos, nomeadamente a tentativa de criar uma aproximação a um Sistema Nacional de Saúde (o chamado Obamacare)

Tem também ampla expressão – não só na América – a ideia – claramente transmitida em A revolta de Atlas – de que o capitalismo sem freio é a forma mais eficaz de gerar riqueza e que esta, mesmo que beneficie mais os capitalistas, acaba por espalhar as suas bençãos a toda a sociedade, enquanto o socialismo (entendido aqui no sentido lato de qualquer ideologia política com consciência social) é tão obcecado com a redistribuição e a igualdade que acaba por coarctar e minar as iniciativas dos empresários visionários e debilitar a economia, condenando toda a sociedade à pobreza – uma pobreza que oferece o dúbio consolo de ser igualitária.

E, finalmente, deve considerar-se que o ambiente de decadência e retrocesso civilizacional que permeia A revolta de Atlas corresponde, de alguma forma, à imagem que Trump e os seus estrategas de campanha conseguiram impingir a um eleitorado pouco esclarecido sobre assuntos económicos e financeiros: o país estava a definhar a olhos vistos – quando na verdade, Obama deixou a economia americana bem mais pujante do que a recebeu das mãos de George W. Bush – e para fazer “America great again” era preciso votar Trump.