A movida deste fim-de-semana estica-se para lá do normal, em horários e intensidade, desde o clássico no Dragão esta 6.ª à noite até aos Óscares pela madrugada dentro de segunda-feira. Para arranjar uma figura enquadrada com a rubrica do “Questões do Forno Interno”, basta-nos tropeçar em Carlitos a meio de um treino no Racket Centre. O homem é um espetáculo à parte e encaixa em todos os eventos deste fim-de-semana. Porto? Check, é jogador da formação no hóquei em patins. Sporting? Check, campeão da Taça CERS-2015. Óscares? Definitivamente, os de Melhor Ator e Melhor Argumento Original numa entrevista de 100 minutos sem paralelo. Carlitos fala à vontade de tudo e muda de conversa com uma facilidade tremenda. Atenção, ele vai de patins.
És de onde?
Matosinhos. Mas já vivi no Porto, em Angola e agora estou em Lisboa. Quando estava no Porto, vi um dos melhores jogos da minha vida.
Qual?
Itália-Suécia, para o Euro-2004. O daquele golo do Ibrahimovic [Carlitos salta da cadeira e dá um salto com o calcanhar direito todo no ar]. Eisch, nunca mais me esqueço. Esse golo foi perto do fim, 80-e-tal minutos. Antes, a Itália do Trapattoni faz uma substituição e sai o Gattuso. Coitado do rapaz que entrou para o lugar dele [Favalli].
Então?
É que não estás bem a ver a pressão que o Gattuso lhe meteu em cima, eheheheh. O gajo saiu de campo cheio de adrenalina, abraçou-o e rosnou tanta coisa ao ouvido do outro. Eu pensei para mim ‘fogo, isto é que é sentir a selecção’. E nós aqui com o mentiroso do Scolari, que era tudo menos técnico. Aquilo era bajulação, era o “vamos lá vamos lá”, é aquele treinador com os dias contados. E trabalho técnico-táctico? A verdade é que ele criou aquela coisa do ‘vamos lá’ e apaixonámo-nos por isso. Agora é diferente.
Com o Fernando Santos?
Também criou um estilo, uma identidade. Aquela coisa da equipa não jogar bem, mas joga o que tem de ser e ganha. Voltámos a apaixonarmo-nos. E deu certo, com a conquista do Europeu em França.
E tu, gostas de que futebol?
Tem de ser ao ataque, porra. A jogar bem, a mandar. Sou um benfiquista do Norte e vou à bola sempre, faça chuva ou tenha febre. Quero lá saber. Depois ia ao hospital curar todos esses males, eheheheh. Ninguém me impedia de ver o Benfica. Fui ver o Benfica-Parma da Taça das Taças. De autocarro. A meio da semana, com aulas no dia seguinte. Só que apanhei uma fase do Benfica, nossa senhora. Quando o Benfica quase ganhava aquela Supertaça [5-0 do Porto na Luz], que horror. Até o Wetl marcou, porra. Nessa altura, jogava hóquei no Porto.
E eles sabiam?
Sabiam, sabiam.
E então?
Não piava, não dizia nada do Benfica. Não podia, os gajos ficavam cegos pá.
Já agora, és do Benfica por alma de quem?
Família. O meu avô, que se dizia bombeiro voluntário à força, falava assim para mim: ‘Tu és benfiquista por imposição’. Também sou do Leixões E, como qualquer leixonense que se preze, o nosso segundo clube é o anti-Porto. Não há outra, os leixonenses detestam o Porto.
O Leixões que até ganhou uma Taça de Portugal ao Porto, nas Antas.
Ya. O meu padrinho era o capitão dessa equipa, o Raúl Oliveira. Ainda é vivo, o Grua. Central.
Imagino as histórias dele nesse tempo’
Uiiii, fooogo. Quando foi para a tropa, jogou aqui no Belenenses e depois foi para Lourenço Marques.
Outros tempos. Ias também ver o Leixões?
Sempre, sempre.
E és anti-Porto?
Era, mas depois joguei lá e deixei de o ser. Aquela força deles é algo de especial. Aquele clube regional a nível mundial tem uma força para lá do normal. Sentia isso vezes sem conta, mais quando vínhamos à Luz, nas camadas jovens. A ideia que nos passavam durante a semana era de que aquilo era de vida ou de morte, muito mais que um jogo.
Como é que entraste no Porto?
Pra aí em 1993, pouco depois da morte do meu avô. Vou para os infantis do Porto e faço todos os escalões até aos seniores.
Eras craque?
Era o maior da aldeia, eheheheheh. Era o melhor jogador do clube da minha terra em Matosinhos: fintava todos e marcava dez, onze golos por jogo. Vou explicar-te [Carlitos puxa dos talheres e dá a táctica]: eu morava aqui e o pavilhão era aqui [da faca para o garfo, a distância é mínima]. Sabes o que fazia? Ia de patins de casa até ao pavilhão e era assim a minha vida. O meu pai, que era estivador, não me pagou o ATL nem explicações e eu passava horas e horas no pavilhão, onde o meu tio era o guarda de serviço. Aquilo era sempre bar aberto. Ia para lá e praticava, praticava, praticava, praticava sem parar. Foram horas de especialização precoce. Ainda hoje não me importo de passar horas num ginásio. É a vida de que mais gosto.
Mas quem é que te ensinava?
Via as miúdas da patinagem artística, via os miúdos do hóquei e estudava-os. Como era miúdo, aventurava-me sem medos. É mais fácil ensinar uma criança a andar de patins do que um adulto, porque o adulto tem mais medos e inseguranças interiores. O miúdo é mais prà frente e logo se vê: se cair, caiu. Fui assim, à boleia dos outros. Meti uns patins bem cedo, aos dois anos e meio.
E foste para o Porto com que idade?
Onze anos. Acredito mesmo que nasci para o hóquei e só o deixei há meio ano porque deixou de me dar dinheiro. Ainda agora mesmo o Juventude de Viana convidou-me para regressar até ao final da época, porque o plantel está com alguns lesionados, e a presidência até falou comigo. Eles pagavam-me a deslocação para cá e para lá, só que ia queimar um bocado a minha ficha. No dia em que ganhei a Taça CERS, disse ao presidente do Sporting que ia deixar o hóquei.
Já tinhas isso em mente ou a conquista da Taça CERS influenciou?
Pensei em grande. Já me estava a arrastar e dei por mim a pensar: ‘joguei nos três grandes e fui internacional português, está na hora de sair em grande, sem estar lesionado, com um ar saudável; não ando ali como os Hugos Almeidas que ainda jogam nos Rubans e AEKs para ganhar algum. Também tive sempre aquele pensamento do ‘tenho que estudar e começar a trabalhar porque vou deixar o desporto aos 34/35 anos’.
A sério?
Sempre fui acompanhado por psicólogos no desporto e eles diziam-me que tinha stress cognitivo. Ou seja, podia estar aqui a falar contigo e daqui a nada jogar com o Barcelona que no pasa nada, não me stressava. Mas a minha cabeça stressava com outras coisas.
De que tipo?
Epá, tipo o meu pai.
Então?
Ele é de Matosinhos e a mãe dele, minha avó paterna, é de Setúbal. Falavam vezes sem conta na história do Vítor Baptista. Ouço falar do Vítor desde que nasci. Que ele era um grande jogador, mas não estudou, entrou no mundo das drogas e acabou mal. Desde então, o meu stresse era estudar, juntar dinheiro para fazer mais coisas além do desporto.
Bolas, e nunca stressaste com uma situação de jogo?
Uma vez, marquei um autogolo pelo Benfica a favor do Porto. A bola bateu-me no patim e entrou. Nem imaginas, foooogo.
Grande rivalidade.
Nesse dia do autogolo, perdemos 3-2 para o play-off e os adeptos incendiaram o autocarro do Porto.
Esse é o dia da agressão ao Filipe Santos?
Não, não, o Filipe Santos é antes, quando eu ainda era júnior do Porto. Aqui foi quando o Cristian Rodríguez trocou o Benfica pelo Porto e os Super Dragões começaram a cantar uma música qualquer do ‘chora o Vieira, chora o Rui Costa’. A malta saiu do pavilhão e incendiou o autocarro. Foi um desastre atrás do outro.
Isso marca qualquer um, não é?
A mim, marcou-me muito, muito mesmo. É como te digo: se jogar em Barcelona ou no Mira-Sintra, é-me igual. Stresso é com o antes e o depois. Lembro-me de estar no hotel a pensar ‘mas quanto é que deve custar esta merda?’
A sério, pensavas nisso?
Sempre, sempre sempre. Sabes uma curiosidade? No último Mundial do hóquei, em 2017, na China, sou eu o seleccionador de Moçambique. E sou eu quem tenho de pensar em tudo. Tudo é tudo. Mesmo. Toda a logística, todas as viagens.
Dos hotéis e não sei mais o quê?
Tudo.
Era engraçado ver o Fernando Santos fazer isso pró Mundial-2018, eheheheh.
Ouvia as perguntas mais absurdas do chefe da delegação, como ‘o que é o almoço?’ ou ‘a que horas jantamos?’
Nãããããã.
‘Tou-te a dizer.
O que fizeste?
Como não há whatsapp lá na China, criei um grupo de chat entre mim, jogadores e directores. Tinha de ser chat, porque e-mail é mais manhoso. A malta sempre pode dizer que não leu e tal, nem me apetecia andar com prints para trás e para a frente. Então criei o chat e mandava tudo lá para dentro. O almoço é às tantas horas, as saídas para os treinos a estas horas e por aí fora. Amigo, tinha de tratar da lavandaria.
Como assim?
Quando acabava o jogo, dizia ao roupeiro da equipa ‘mal chegues ao hotel, tens que ir para a lavandaria para termos roupa no jogo de amanhã’. E o ter roupa era equipamento principal e alternativo de todos os jogadores e ainda camisolas sobresselentes. Que era uma das perguntas que me atormentava nos clubes: será que o Armando do Benfica leva calções a mais, caso eu rasgue estes no aquecimento ou assim?
Eheheheheh, vivias mesmo com isso.
Aquilo consumia-me e os psicológos diziam ‘ò Carlitos, isso não é pensamento de um jogador que é um executante’. Depois também partia a conciliar os treinos com as aulas para poder fazer três cadeiras por ano e acabar o curso em sete/oito anos.
Tiraste o quê?
Educação Física.
Sempre no mesmo sítio?
Já sénior, aos 20 anos, jogava no Juventude de Viana e ganhava 1700€. Era muito dinheiro. De repente, aparece o Benfica a oferecer-me 3500€.
O dobro. Aliás, mais que o dobro.
Meteram-me uma mala com dinheiro à minha frente. E eu nem queria ir. Só queria surfar, tirar o meu curso de Educação Física, jogar hóquei ali perto, tipo Barcelos, Porto e Oliveirense, viver em frente à praia, em Leça da Palmeira.
E foste ou…?
O meu pai só disse isto: ‘O meu filho só sai se lhe arranjarem faculdade, contrato de três anos para ele acabar o curso e pagaram-lhe a casa’. Era a cena do Vítor Baptista, ele queria preparar-me o melhor caminho possível.
E o Benfica?
Vou para a Lusófona, juntamente com Bebé e Pedro Costa do futsal mais Miguel Minhava do basquetebol, e arranjam-me casa em Odivelas, na zona de Ricardinho, Arnaldo e André Lima. Tudo malta lá de cima.
Só falta comida.
Comia no Ponto Vermelho, no Estádio da Luz.
E que tal os primeiros tempos em Lisboa?
Era emigrante de Leste: treinava-Odivelas, Odivelas-faculdade, Campo Grande. Fazia duas ou três cadeiras, as mais importantes para me dar uma bagagem intelectual. Foi bom. Se começasse a sair à noite, com elas, Lisboa matava-me. Tenho a certeza. Os Paíns desta vida são mais que muitos e há-os em todas as modalidades. Todas. E nunca mais me esqueço dos conselhos dos mais velhos, ainda nos tempos do Porto.
Quem eram os mais velhos?
Tó Neves e Pedro Alves. Quando ainda tinha 16 anos e já era convocado pelo Livramento para treinar com os seniores, eles diziam-me ‘epá puto, o Livramento gosta de ti, aproveita; se tu não juntarem 20 mil euros até ao final da carreira, não és ninguém na vida quando começares a viver os quarenta’. O Tó Neves treina a Oliveirense, o Pedro Alves está hoje na Suíça e é vendedor de cerveja pela Sagres. É só o maior jogador português de todos os tempos, o mais internacional, aquele que nos deu o último título mundial, em 2003.
Se és assim, como é que convives com a reforma?
Estou com saudades, mas chego ao pé do Pedro Nunes, meu treinador do Benfica e que é a pessoa de quem mais gosto no hóquei, e digo-lhe ‘epá, deixa-me treinar com os juniores do Benfica’. Passou uma semana com eles, pim pim pim, dou umas stickadas, meto-me com eles no balneário, respiro aquele ambiente e aquilo dá-me para mais dois meses.
Eheheheheh.
Nunca mais me esqueço do Futre no dia em que se retirou. Lembras-te?
Nem ideia.
Chegou todo partido à conferência de imprensa, meteu as chuteiras em cima de mesa e despediu-se da malta. Quando ganhei a Taça CERS pelo Sporting, meti os patins em cima da mesa e saí. E o Sporting não ganhava títulos há uma data de anos. Só que montou-se um grupo de amigos, todos do FC Porto. Um era médico, outro era professor de educação física, um era fisioterapeuta e tal. Formou-se uma equipa engraçada e o nosso objectivo era treinar defensivamente: marcávamos o golinho e encostávamos. Quando tentámos jogar de igual para igual, levámos dez na Luz e mais dez no Dragão. O Bruno de Carvalho queria matar-nos. E eu disse-lhe ‘então mas você é maluco? A gente treina em Mafra e…’
O Sporting treinava em Mafra?
Sim, no Pavilhão Livramento.
Todos os dias?
Sim. Agora vê, todos nós tínhamos uma profissão e, à tarde ou à noite, íamos treinar para Mafra.
Bem, dedicação mesmo.
Pois é, amigo. Isso mesmo. E o pessoal chateado porque perdemos com Benficas e Porto. Quer dizer.
Mas então e o Bruno de Carvalho?
Disse-lhe ‘epá, já tive experiências de clubes assim; o Sporting que nos arranje uma carrinha e nós vamos todos juntos’.
Antes era como?
Cada um ia no seu carro.
C’um caneco. O Sporting deu-vos a carrinha?
Ya. Encontrávamo-nos em Alvalade e lá íamos para Mafra.
Quem conduzia?
Eu. Sempre por paranóia, sabes porquê?
Estou curioso.
Nos tempos do Benfica, quando jogávamos no Norte, o autocarro era da Barraqueiro e sabia lá quem conduzia. Então fazia por estar sempre ao lado dos condutores. Sempre. No Sporting, assumi esse papel. Até porque tive uma experiência tramada em Angola, quando fomos jogar a Benguela.
Conta aí.
Saímos de Luanda e a viagem era de nove horas. O condutor era chinês e ia assim [Carlitos entorta-se todo na cadeira] e os cabrões da minha equipa iam todos bêbedos la atrás. Isto tudo na estrada da Barra do Kwanza, só com carros todos partidos à berma. Acredita, sou um gajo muito mais feliz desde que deixei a alta competição.
Ahahahah, imagino.
Era um stress do caraças. A minha mulher, coitada. Sugeria-me um cinema à 6.ª feira à noite e eu recusava por causa do jogo do dia seguinte. Não queria sair de casa, só a pensar no jogo.
Acabaste a beleza, com a conquista da Taça CERS. Foi final four?
Ya, em Igualada. Ganhámos ao Igualada com golo de ouro na ½ final e depois vencemos ao Reus, nos penáltis.
Golo de ouro e penáltis é dose.
Uma coisa do outro mundo.
Que tal o ambiente?
Fantástico. O Bruno de Carvalho não viajava connosco para a final four, até porque a equipa do futsal também está na final four europeia, no Pavilhão Atlântico. Ele só aparece na final e isso deu-nos força. Ele acreditava que íamos ganhar.
Mas vocês sabiam que ele ia?
Nada, foi surpresa. Jesus, e o que ele fumava? Estava sempre connosco a fumar, a fumar, a fumar. ‘Ò Carlitos, tens que me dar dos teus cigarros’. Eu só lhe dizia para comer alguma coisa no meio de tanto fumo.
E mais?
O gajo é uma figura. Aparecia nos nossos treinos às duas da tarde, pegava no stick e ia para dentro de campo. Ou era assim ou eram ataques de fúria, como no dia em que perdemos a final da Taça de Portugal para o Benfica [3-0]. Não nos deixou receber as medalhas de vice-campeões.
Isso é antes ou depois da final da Taça CERS?
Antes, é antes.
Imagino-o no final do jogo da Taça CERS.
Ao intervalo, o treinador nem deu a táctica. O Bruno abre a porta, mete a cabeça e diz-nos ‘epá, estamos empatados, vocês não querem cinco mil euros de prémio para cada um?’ E sai de cena, sempre de cigarro em punho. No final, ele desmaiou uma ou duas vezes no balneário. Quando acordava, dizia-nos ‘o meu Sporting não ganhava nada há uma data de anos, agora vocês são imortais’. O gajo estava maluco. Outra, ele ia connosco no autocarro. Até aqui, tudo bem. Mas ia onde? Onde é que o Mourinho vai no autocarro da equipa? À frente, certo? O gajo ia lá atrás, com todos nós, a dizer-nos ‘vocês têm que ganhar’, fosse quem fosse o adversário. Sou benfiquista, já disse e repito-me. Mas o gajo foi o melhor presidente que apanhei. No Benfica, quando o Luís Filipe Vieira ia ver os nosso jogos, entrava no balneário e cumprimentava-nos assim [Carlitos faz um ar de desentendido]. Ele não sabia quem nós éramos nem outras figuras das modalidades, como o João Matos e o Pedro Cary, do futsal, ou o Candeias, do andebol. Nesse aspecto, o Bruno é mais presidente. Se bem que tenha as suas coisas.
Quais?
A gente perdia e ele dizia-nos na brincadeira: ‘Vou-vos ao ordenado a todos’. E eu ‘ò presidente, isto tudo junto é um ano do Gelson, porque é que está a mandar vir connosco? Acha que fizemos de propósito, acha que não queríamos ganhar?’. Havia mais. Então a gente jogava com os nossos sticks. Uma vez, disse-lhe isso e ele ficou a olhar para mim. ‘Mas vocês não têm sticks’. ‘Temos, presidente, o meu stick, enviado pelo meu patrocinador. Tal como o João Pinto tem o do seu patrocinador e tal e tal.’ Nisso, foi bom haver abertura para meter o dedo na ferida e dialogar.
Porto, Juventude de Viana, Benfica e Sporting, onde é que gostaste mais de jogar?
Faltava aí Infante Sagres. E não foi em nenhum desses, eheheheh. Foi no Paço d’Arcos. A Juventude deu-me dinheiro e condições para ser profissional, mas o Paço d’Arcos foi o clube que me acolheu depois da dispensa do Benfica.
Ai foste dispensado pelo Benfica?
Como não há bela sem senão, o clube do meu coração deu-me uma de ‘já não serves’. Apanhei com o decacampeonato do Porto e havia que mudar. Por isso, foram buscar grandes trutas com o Sérgio Silva, campeão do mundo em 2003. O gajo estava em Itália, chegou à Luz e ganhou sozinho o campeonato nacional. Juntamente com o Luís Viana, um gajo que jogou no Sporting e que também tirava coelhos da cartola. Olho agora para trás e entendo que o Benfica precisasse de dar um abanão aos gajos que estavam enraizados.
Saíste do Benfica e agora?
Fui jogar para Angola, ia só lá para os play-off. Nesse entretanto, jogava o campeonato português pelo Paço d’Arcos. Foi um período espectacular e ficámos dois anos seguidos no quarto lugar.
Ah, foram à Europa?
Não fomos, porque a equipa vivia de apoio camarários e levámos com as troikas desta vida. Fecharam a torneira ao Paço d’Arcos e estivémos sete meses sem receber. Eu ainda tinha a mala de Angola, agora vi malta, profissionais do melhor, a ficar nas covas sem os 800€ por mês. Nunca tinha visto uma coisa assim.
E Angola, que tal?
Assim que o Sporting ofereceu-me o dobro dos angolanos, voltei para Portugal a tempo inteiro. Adeus costelas partidas.
Costelas partidas?
Dassssss, aqueles gajos a jogar hóquei? Varriam-me, atropelavam-me. A sorte é que me sabia desviar deles, embora apanhasse muita pancada nas sobras. Sabes, um toque aqui, um toque ali. Vivi coisas em Angola sem explicação. Um dia, na véspera de um jogo da Liga dos Campeões Africanos, a equipa esqueceu-se de mim na África do Sul. Os waka-waka deixaram-me lá. Acordei para tomar o pequeno-almoço e não vi ninguém. Estranhei e liguei-lhes. ‘Epá, Carlitos, esquecemo-nos e agora?’
Sim, e agora?
Só viajei no dia seguinte. Foram-se embora sem mim. E eu era o único branco da equipa. Aquilo só visto. Ganhei um campeonato nacional, perdi outro, fui campeão africano contra o Ferroviário de Maputo e pediram-me para naturalizar angolano.
Assim, sem mais nem menos?
Ah pois.
Aceitaste?
Todos temos um preço, mas também há a dignidade. Disse não. Um argentino disse sim: recebeu um Rolex e 70 mil dólares para jogar o Mundial por Angola.
Ainda bem que falas do Mundial. Em 2017, levaste Moçambique aos quartos-de-final.
Ganhámos os dois primeiros jogos, com Chile e Alemanha, antes de empatarmos 3-3 com Espanha.
Espera aí, ganhaste dois jogos?
As pessoas pensavam que íamos ficar na barraca à espera deles e surpreendemos com marcação no campo todo. Tanto Chile como Alemanha foram apanhados de surpresa e perderam.
E depois ainda empataste com Espanha?
Foi o meu jogo de sonho. Só joguei com um à pesca e tirei o guarda-redes da baliza para fazer posse de bola.
Isso é assim, tipo futsal?
Nem é comum no hóquei, mas fiz para jogar à rabia. Os espanhóis andavam malucos ‘Carlitos, hijo de puta’. Passámos em segundos e calhou-nos Portugal. Perdemos 6-2.
Jogaste quantos Mundiais?
Um, em 2005, nos EUA. Ficámos em terceiro, ganhou a Espanha. Que também ganho o Mundial 2001, na Argentina. Esse foi aquele Mundial em que Panchito marcou-nos o golo de ouro, na meia-final.
O Panchito, pois ééééééé. Jogaste com ele?
Contra ele.
E era mesmo bom?
Era um Messi, igualzinho. Depois joguei com ele em Angola. Já estava gordo e bebia uísque, mas bastava-lhe calçar uns patins e rebentava com todos. Aquilo era inato, o stick era uma extensão da mão. Como hoquista, vi-o fazer coisas que nunca ninguém fez. Fez-me a mim e fez aos outros, só que o Benfica nada ganhou com ele. E ele levou um saco de dinheiro na era Luís Filipe Vieira que lhe permitiu comprar uma quinta na Argentina que se chama La Gloriosa, com cavalos e tudo. Já o irmão dele, o Mariano, era a antítese do Panchito. O Mariano era tipo Simeone. Igual. Queria provar por A mais B que não era o irmão do Panchito, era o Mariano. E provou-o.
Quando dizes que o Panchito fazia maravilhas, é o quê em concreto?
Escondia a bola atrás dos patins, travava os patins de uma forma nunca vista. Era um craque. Só que era displicente. Nunca atava os patins por baixo e, às vezes, saltavam-lhe. Depois não treinava, não aparecia. Às vezes, a polícia apanhava-o com 1,2 de álcool. Enfim, os loucos anos 90. No futebol, eram os russos. No hóquei, o Panchito.
Esse tipo de cenas é impossível de se ver no Porto, digo eu.
No Porto? Porra, claro que sim. Se faltasse às aulas sem justificação, caía o Carmo e a Trindade. Se, por acaso, fosse jogar bilhar ou pingue-pongue no horário das aulas, o colégio sabia e informava o Porto. Ninguém metia o pé em ramo verde.
Foste campeão no Porto?
Sempre. Aquilo era cá uma corrupção.
Hein?
Já se sabia quem era o árbitro e era campeão nacional antes dos jogos. Os árbitros diziam-me mesmo ‘olhas, atiras-te para o chão e é penálti’. Já entrávamos a ganhar, até na moeda ao ar.
Ai eras o capitão?
Fui capitão até aos juniores.
Mas ainda não havia Dragão Caixa, pois não?
Nãããão, fui fazer a inauguração do Dragão Caixa pelo Benfica. Chegámos ao balneário a 90 minutos do início do jogo e estávamos preparados para aquecer quando um segurança disse-nos ‘olhe, é melhor vocês não irem aquecer, que isto hoje é o dia da inauguração e está cheio; se vocês vão para ali de sapatilhas, começam-vos a cuspir e ainda não está aqui a polícia’.
Uyyyyy.
Ficámos 90 minutos dentro do balneário a olhar para ontem. Sabes o que aconteceu? Não estava nada cheio. O pavilhão só abriu as portas a dez minutos do início do jogo. Entrámos em campo e nem tirámos os patins do chão. Apanhámos 5-0. G’anda pavilhão.
E como é que era aqui em Lisboa?
Olha, Paço d’Arcos.
Então?
Entrávamos no pavilhão J Pimenta, ao lado da praia, e lia-se ‘Paço d’Arcos, o Inferno dos Tripeiros’. Os anos 90 foram pródigos em vandalismo. Era o tempo em que o Porto superiorizava-se ao Benfica em tudo. Futebol, hóquei, basquetebol, andebol, caricas. Tudo. O Porto ganhava tudo e comprava tudo. Havia coisas no futebol. O Zé Carlos era um defesa central que pisava toda a gente. E o Fernando Couto aprendeu com ele.
Tu devias sofrer com o futebol.
Vinha a Lisboa todas as semanas para ver o Benfica. E também ia ao Estádio do Mar para ver o Leixões.
Vieste ao Jamor para a final da Taça com o Sporting em 2002?
Claaaaro. O André Cruz devia ter sido expulso por falta sobre o Detinho. O 1-0 é do Jardel e o nosso número 10 era o Abílio, pai deste João Novais do Rio Ave. Ainda tínhamos o Bruno China, meu amigo, o Ferreira, guarda-redes que morreu de esclerose múltipla. O Carvalhal fez-nos sonhar. Porra, lindo. Ganhámos 3-1 em Braga na meia-final. Fui lá ao estádio, que tareia ao Braga. Eheheheh. Tive tanta pena de não ter dado jogador de futebol. Tinha tudo para um Javi García. Porrada neles, sempre de cabelo bonito. Eheheheh. Ainda joguei no Leixões até aos seis anos, mas o hóquei puxou mais por mim. Mesmo assim, nunca perco a oportunidade de ver bola. Nem treinos.
Treinos de futebol, onde?
Olha, ia ver os treinos do Jesus quando jogava no Benfica. Nós íamos receber à contabilidade, na porta 18, e o maluco mandava correr as cortinas de todas as janelas para que não víssemos os treinos de livres e assim. No Seixal, era diferente. Quando estava de folga, ia ao Seixal e aí não havia cortinados. O Jesus matava-os, porra. Matava o Saviola, matava o Aimar. Era espectacular, o gajo. Maluco, mas espectacular. Eles dizia-lhes ‘não sabes nada de futebol, tens de fazer o que te mando’. Ainda o estou a ver a dizer ao Matic ‘estás aqui é para aprender e tens de olhar para este aqui ò’.
Quem era?
O Javi García. O Jesus só tem um problema: esgota os jogadores. Vai acontecer ao Bruno Fernandes o que aconteceu ao Rúben Amorim, tenho a certeza absoluta, Vai secá-lo todo, vai pô-lo que nem se vai mexer. É o maior catedrático do futebol português, só faço é mute quando ele começa a falar porque acha-se o maior, que sabe tudo. Agora, vou muitas vezes a Alvalade só para o ver em acção. E sou benfiquista. Fico deliciado a vê-lo. Na época passada, pobre Schelotto. O homem corria que se fartava, ia à linha, cruzava, recuava e tal, sempre a ouvir o Jesus a gritar-lhe aos ouvidos. Não tinha qualquer hipótese, ehehehehe.