Publicado pelo Centro Pompidou a acompanhar a grande retrospectiva de Henri Cartier-Bresson (1908-2004) que aí esteve patente até Junho deste ano, Voir est un tout. Entretiens et conversations (1951-1998) foi agora traduzido para castelhano. A edição espanhola visou igualmente enquadrar aquela exposição, que transitou de Paris até Madrid e foi apresentada na Fundação Mapfre até há pouco, tendo encerrado ao público no passado dia 7 de Setembro.
Com mais de quinhentas peças, entre fotografias, filmes, desenhos e documentos, a exposição de Paris/Madrid, cuja montagem demorou mais de três anos, foi a primeira retrospectiva de Cartier-Bresson realizada na Europa após a sua morte. Antes dela, realizara-se uma mostra antológica na Biblioteca Nacional de França, em 2003 (ou seja, ainda em vida do autor), e outra no Museu de Arte Moderna (MoMA) de Nova Iorque, em 2008.
Comissariada por Clément Chéroux, um dos maiores especialistas na obra de Henri Cartier-Bresson (ou «HCB», como é conhecido), a exposição patente no Centro Pompidou e, depois, na Fundação Mapfre recorreu, para efeitos promocionais, ao famoso conceito de «instante decisivo», ainda que em larga medida haja proposto uma ruptura com essa chave interpretativa da obra de Cartier-Bresson e, bem assim, com a dicotomia que habitualmente separa a sua produção anterior e posterior à 2ª Guerra, fazendo ressaltar, entre a primeira fase (1926-1935) e a última (1947-1970), uma etapa intermédia, em que o comprometimento político de Cartier-Bresson e o seu engajamento na militância comunista são agora revalorizados.
A mostra dá ainda um maior realce à ligação de HCB com o surrealismo, na década de trinta, para, no fundo, demonstrar a heterogeneidade de uma obra que se presta a múltiplas leituras, até agora relativamente sufocadas pelo peso esmagador do conceito, erigido em dogma, de «instante decisivo» (cf. a penetrante análise dessa exposição feita por Sérgio B. Gomes no Público/Ípsilon, de 16/05/2014, ou a entrevista com Clément Chéroux no número especial do Le Nouvel Observateur, Março/Abril de 2014, inteiramente dedicado a HCB, bem como o catálogo da exposição: Clément Chéroux, Henri Cartier-Bresson, Fundación Mapfre-Centre Pompidou, 2014, em esp. pp. 350ss).
Ver es un todo. Entrevistas y conversaciones (1951-1998) constitui, como o título indica, uma colectânea de entrevistas concedidas por Cartier-Bresson de 1951 a 1994, sendo esta última com o seu principal biógrafo, Pierre Assouline, o controverso autor de Cartier-Bresson. L’œil du siècle (Plon, 1999) e de biografias de Simenon ou Hergé. O texto final de Ver es un todo, de 1998, corresponde a uma resposta do fotógrafo ao questionário de Proust, originalmente publicada na Vanity Fair, terminando o volume com uma utilíssima resenha das entrevistas dadas por Cartier-Bresson ao longo dos anos e divulgadas em papel, áudio ou vídeo.
Para uma personalidade conhecida pelo seu carácter elusivo e furtivo, Cartier-Bresson revela-se mais loquaz do que esperávamos. Não sendo exaustiva, a antologia agora dada à estampa é suficientemente vasta e abrangente para nos permitir penetrar no âmago do «programa Bresson», ou seja, a estratégia estética, política e retórica que o projectou à escala mundial como um dos mais consagrados fotógrafos do século XX («o maior repórter do século XX», assim lhe chamou a capa da revista Photo em 1998, por ocasião do seu 80º aniversário).
Além do valor documental, tanto maior quanto o entrevistado pouco escreveu sobre a sua vasta obra, este livro tem ainda o mérito de, através da justaposição de depoimentos de várias épocas, nos levar, se a isso estivermos dispostos, a dessacralizarmos Henri Cartier-Bresson, devolvendo-lhe aquilo que o próprio sempre reclamou como uma das grandes qualidades e mais perenes demandas da sua obra, a total autenticidade: «a autenticidade é, sem sombra de dúvida, a maior das virtudes da fotografia», disse a Daniel Masclet, em 1951.
Ainda que com naturais variações na dimensão e no conteúdo, as entrevistas de Bresson revelam uma profunda honestidade do depoente, quer para com os outros quer para consigo mesmo. Simplesmente, na composição da sua personae pública, a que não é alheio um panache tipicamente francês, Cartier-Bresson torna-se, de certo modo, vítima de si próprio e da mitologia criada em seu redor. É o que sucede, por exemplo, quando disse que só enquadrava as fotografias no momento em que disparava o obturador, sendo essa «a única verdade»; e acrescentou, com alguma imodéstia: «Acredite ou não, tenho imagens cuja composição, cuja ordem – num centésimo de segundo – se integra exactamente no número áureo!»
Noutra entrevista tem palavras depreciativas para alguns dos seus colegas de ofício, criticando «essas imagens de pose, postas em cena, sem o menor sentido da forma, da dialéctica, herdeiras da moda e da publicidade, as fotografias de [Richard] Avedon, de [Jean-Pierre] Sudre, de David Hamilton, de Diane Arbus, de Duane Michals, os trabalhos recentes de Bruce Davidson, e não sei quem mais», referiu numa entrevista ao Le Monde, em 1974. No dia seguinte ao da publicação dessa entrevista no jornal parisiense, Cartier-Bresson apressou-se a enviar uma nota ao Le Monde, claramente retractando-se do que dissera: «O senhor Henri Cartier-Bresson comunica-nos que na entrevista concedida a Yves Bourde deve ler-se: “A Avedon e a Richard Hamilton não pode negar-se uma profunda atenção à forma, e as preocupações de Duane Michals e Bruce Davidson nada têm a ver com a moda e a publicidade, menos ainda as de Sudre e Diane Airbus.”»
De algum modo, estas entrevistas confirmam que raramente os artistas são felizes a falar do seu trabalho, e Cartier-Bresson não é excepção. Ano após ano, os clichés e os lugares-comuns acumulam-se, mesmo que com cambiantes e, por vezes, algumas contradições. Quanto a estas, tanto diz, em 1966, «não creio na inspiração. Estou convencido que há que trabalhar, trabalhar», como, vinte anos depois, refere veementemente que a fotografia não é um trabalho (em 1951 observara que a fotografia era o seu «ofício»… que gostava de qualificar, numa expressão que ganhou fama, como um duro prazer). A dado passo, afirma que se lembrava precisamente do tempo e do lugar em que tirara cada uma das suas fotografias, enquanto noutra entrevista confunde o cenário de uma das suas mais conhecidas imagens, Dimanche sur bords de Seine (1938), [imagem 2], tal como é descrita no catálogo da sua exposição de Paris/Madrid, que noutros registos aparece como tendo sido feita nas margens do Marne.
Surpreendentemente, referiu a Pierre Assouline nunca ter fotografado a nudez, quando alguns dos seus nus se destacam como das obras mais marcantes da etapa inicial da sua carreira, com destaque para a de Leonor Fini nas águas translúcidas de Itália, em 1933, muito próxima da tela L’indolente, que Pierre Bonnard pintara em 1899 [imagem 3] [imagem 4].
Até praticamente ao final da sua vida continuaria, de resto, a fotografar a nudez feminina, como sucede na imagem de 1989 que retrata dois modelos fazendo uma pausa no decurso de uma sessão de desenho em Paris [imagem 5].
Mais grave é o facto de se dizer avesso à fotografia comercial praticada por alguns dos seus colegas e, em vários lugares, referir que fez produções para empresas como a Mercedes Benz ou fotografias para ilustrar os relatórios anuais de bancos norte-americanos, como o National City Bank, ou para grandes empresas como a Citröen, viajando ainda um ano inteiro por França, em 1969, ao serviço da Reader’s Digest, reportagem que dará lugar ao livro Vive la France, de 1970.
Estranha-se, assim, a perplexidade manifestada em 1979 – «hoje em dia, o mundo é puro negócio. Onde iremos parar?» –, sobretudo se tivermos presente o que dirá pouco mais tarde: «ganho a vida vendendo fotografias aos coleccionadores, fotografias de juventude que na altura não conseguia vender, o que é um pouco absurdo! Autentico-as com a minha assinatura e já está. Quando era rapaz, nunca iria pensar que acabaria ganhando a vida desta forma.» Logo a seguir, refere as peças de caça que, na sua jeunesse africaine, vendia para ganhar a vida, o que implicitamente sublinha a analogia que sempre traçou entre as actividades fotográfica e venatória, seja quanto à rapidez e ao carácter instintivo da captura da presa, seja quanto à comercialização do produto final.
Curiosas observações da parte de quem, em 1952, no auge da sua fase de fotojornalista, dizia peremptoriamente: «as fotografias existem para ser captadas e reproduzidas para as massas, não para os coleccionadores.» Em 1979, criou a Master Collection, uma exclusiva selecção das suas melhores 385 fotografias, de que foram impressos seis jogos de provas, quatro dos quais integram o acervo de museus de França, Japão, Estados Unidos e Reino Unido. Cartier-Bresson apreciava figurar-se como um «fotógrafo-matador», um caçador, mas um caçador delicado e subtil; a comparação que estabelece é com a caça à perdiz, morta com um tiro certeiro. «Não se atira às perdizes com uma metralhadora», disse numa entrevista à Popular Photography, reprovando os fotógrafos que disparavam incessantemente sobre um mesmo objecto. Felizmente, não viveu o tempo suficiente para assistir ao triunfo esmagador da fotografia digital e, muito menos, das selfies captadas por telemóveis.
Por diversas vezes, confessa abertamente ser uma personalidade inquieta, com os nervos à flor da pele («não bebo nem fumo e, apesar disso, sou uma pilha de nervos»). Era esta a imagem que procurou transmitir à posteridade: um fotógrafo de rua, farejando a imagem perfeita, saltitando como um pássaro ou um bailarino, que tentava a todo o custo passar despercebido («na crista da onda, como um surfista, em luta permanente contra o tempo», dirá em 1986). Numa analogia pouco original, comparou a actividade fotográfica à dos funâmbulos e sobretudo à dos carteiristas, já que fotógrafos e ladrões de carteiras tinham em comum o facto de furtarem algo que pertence a outros: nuns casos, o dinheiro que transportavam; noutros, a sua imagem ou a sua cultura.
É isso que explica o facto de não gostar que o fotografassem, sabendo que se o seu rosto fosse conhecido perderia liberdade de movimentos (cita Degas: «é bom ser famoso, desde que sejas desconhecido»). De igual modo, é isso que explica a escolha da Leica, a mais silenciosa das máquinas, «uma câmara muito discreta».
Reside também aí a razão de não se apresentar como um retratista comum, igual aos demais. Segundo dizia, nunca pedia que posassem para ele, deixando os retratados sentirem-se à vontade, durante horas se fosse necessário, para lhes extrair a alma – e a aura – num centésimo de segundo, no instante decisivo. Talvez seja no domínio dos retratos – ou, pelo menos, nalguns deles, como o de Ezra Pound aos 86 anos, passando os seus últimos meses de vida num palácio veneziano [imagem 6] – que a noção de «instante decisivo» se aplique com maior propriedade.
Fotografou grandes nomes da vida intelectual e artística do seu tempo, mas pouca atenção concedeu a líderes políticos, religiosos ou a académicos e cientistas (há excepções, claro: Nehru e Luther King, na política, ou Oppenheimer e o casal Irène e Frédéric Joliot-Curie, na ciência). A lista é infindável, tendo mesmo proporcionado a realização de uma exposição que deu lugar a livro, por sinal traduzido e publicado em português (Um Silêncio Interior: os retratos de Henri Cartier-Bresson, Dinalivro, 2006). Georges Rouault, Christian Dior, Giacometti, Colette, Faulkner, Carson McCullers, Ezra Pound, Breton Duchamp, Rossellini, Calder, Arthur Miller, Neruda, Genet, Barthes Sartre, Eluard, Aragon, Camus, Robbe-Grillet, Beauvoir, Claudel, Mauriac, Cioran, Miró, Stiegliz, Sontag, Truman Capote, Chagall, Prévert, Piaf, Stravinsky, Picasso, Chanel, Matisse, Visconti, John Huston, Marilyn Monroe, Francis Bacon, Braque, Beckett, todos foram trespassados pelo olhar certeiro de HCB.
Este tem, no entanto, afirmações algo contraditórias sobre o retrato fotográfico. Assim, diz que «para um retrato, é possível acercar-se do modelo e conseguir a imagem perfeita logo na primeira foto»; mais tarde, afirmará todavia que, em fotografia, «o mais difícil de tudo é o retrato».
Em qualquer dos casos, as constantes referências à «imagem perfeita» e à «fotografia única» reintroduzem inevitavelmente o tópico do «instante decisivo». Algumas das imagens de Cartier-Bresson são consideradas a expressão plena desse problemático conceito. Entre elas, a célebre Derrière la gare Saint-Lazare, em Paris, de 1932. [imagem 7].
Mas também, e sem forçar a nota, a do pai que ergue uma criança na palma da mão, nas margens do Lago Sevan, na Arménia, foto de 1972. [imagem 8]
Ou ainda, e porventura mais do que em todas as outras, na movimentada cena de amor sáfico que HCB surpreendeu ao abrir a porta de um quarto na casa em que vivia na Cidade do México, em 1934. [imagem 9]
O instante decisivo
Esta expressão surge associada a HCB a um tal ponto que corre o risco de aprisionar toda a sua obra num conceito que, para mais, não fora criado por ele, tendo sido um «plagiador», de acordo com as suas próprias palavras.
Henri Cartier-Bresson, como se disse, não gostava que o reconhecessem. Deleitava-se a contar histórias em que, sendo já famoso, conseguira passar despercebido. Uma vez, quanto fotografava um leilão de jóias na Parke-Bernet Galleries, uma senhora perguntou-lhe se pertencia à imprensa, ao que HCB respondeu «não, sou um maníaco», tendo aquela retorquido: «Ah, assim está bem, então continue». Noutra ocasião, em Cape Cod, um grupo de japoneses, ao vê-lo fotografar debaixo de chuva, terá comentado: «aquele julga-se Cartier-Bresson».
Quando alguém lhe perguntava se conhecia Cartier-Bresson, dizia que este era uma pessoa insuportável, da qual não seria aconselhável aproximar-se… Pierre Assouline conta ainda que, em Budapeste, onde o Museu Ludwig lhe dedicou uma grande retrospectiva em 2002, HCB sentou-se no meio da multidão, incógnito, para assistir a um colóquio que tinha a sua obra como tema. Ora, se o anonimato era uma garantia de liberdade de acção, o «instante decisivo» actuava justamente no sentido inverso, reduzindo a leitura de uma obra de décadas a um chavão, a um labéu, indiscutivelmente sedutor e apelativo, mas claramente redutor e limitativo.
Por isso, tenta desmistificá-lo, desvalorizando as suas origens. Desde logo, começa por dizer que a expressão não é sua, tendo-a encontrado nas memórias do cardeal de Retz, em que a dado passo se lê: «não há nada no mundo que não tenha o seu momento decisivo.» Confrontado com a paternidade de um conceito que o iria perseguir toda a vida, será peremptório a negá-la, numa entrevista de 1979, em que o diálogo com Alain Desvergnes é assaz esclarecedor:
− Deixou uma expressão célebre na fotografia, “o instante decisivo”.
− Não fui eu. Não tenho nada a ver com isso.
− Não tem nada a ver?
− Nada, em absoluto!
A este propósito, sublinha que a noção de «instante decisivo» não resultou de uma reflexão amadurecida e prolongada, sendo antes uma resposta momentânea, quase repentista, ao pedido de Robert Simon, da Simon & Schuster, para um título para o seu livro Images à la Sauvette, com capa de Matisse, que seria publicado nos Estados Unidos justamente com o nome The Decisive Moment (mais precisamente, a expressão abre o prefácio de Images à la Sauvette, que HCB foi obrigado a escrever, e Robert Simon sugeriu que fosse usada como título da edição americana desse livro).
O que o conjunto das entrevistas de Cartier-Bresson mostra, entre outras coisas, é a existência de uma relação complexa e oscilante do fotógrafo com o conceito-chave que o celebrizou. Umas vezes, desvaloriza-o; noutras, produz afirmações que contribuem para o sustentar: «a diferença entre uma boa fotografia e uma fotografia medíocre é uma questão de milímetros, uma diferença minúscula», disse em 1973. Já antes, em 1952, afirmara: «sei se é uma fotografia logo no momento em que carrego no botão.» E, mais tarde, em 1974: «uma fotografia só se corrige tirando a seguinte, e isso só acontece se a realidade o permitir.»
O «instante decisivo» adquire os contornos de uma epifania sui generis, a visão de uma entidade sacra e intangível mas impregnada de erotismo no momento em que é capturada. Uma boa fotografia seria uma «fotografia natural» e Cartier-Bresson, ajudando a fabricar e alimentar o mito do «momento do tudo ou nada», chama a si o dom, quase místico, de saber captá-lo como ninguém. Afirmou, com uma certa sobranceria, que «um dom ou se tem ou não se tem. Se tens um dom, então és responsável por ele. Há que trabalhá-lo».
Ele, o mâitre des images, não só fora bafejado pelo destino e pelos deuses, que lhe concederam o dom da imagem, como era capaz de saber, logo quando a captava, se tinha produzido uma boa imagem. No entanto – e aí reside o seu carácter insondável e misterioso – nunca é possível saber quando irá chegar o «momento culminante» de uma dada realidade. O «instante decisivo» significa, antes de tudo, o absoluto domínio do tempo, a que Cartier-Bresson juntava, na organização visual das suas composições, o controlo do espaço, também ele absoluto. É com base na afirmação desse duplo domínio, do tempo e do espaço, que HCB pretende projectar o seu trabalho e, mais do que isso, vincar o seu carácter inigualável.
Em certos momentos, porém, não é claro o que HCB considerava ser uma «boa imagem». Por um lado, refere que gostava, acima de tudo, que as suas imagens fossem nítidas. Por outro, admite que a fotografia que tirou a Gandhi, e saiu nas páginas da Harper’s Bazaar, não primava pela nitidez, qualidade agora relegada para um plano secundário: «desfocada ou não, nítida ou não, uma boa fotografia é uma questão de proporções, de relações entre o branco e o negro.»
A recusa de todos os artifícios («a fotografia jamais deve ser artificial»), em nome da pureza e de uma fidelidade absoluta à realidade observada, leva alguns a acreditarem que Cartier-Bresson só utilizava objectivas de 50mm. O próprio HCB contribuiria para adensar esta lenda ao dizer que a objectiva ideal é a 50mm, sendo a 35mm «demasiado grande, demasiado ampla», a ponto de, com ela, «todos os fotógrafos julgarem ser Tintoretto.» Todavia, é o próprio que reconhece que transportava consigo objectivas de 50mm, de 35mm e de 135mm, que Dimanche sur bords de Seine foi tirada com uma grande angular e que usou uma 135mm para captar algumas das imagens da multidão compacta que assistia às exéquias fúnebres de Gandhi, com o qual Cartier-Bresson se avistou – e fotografou – escassas horas antes de ser assassinado.
Cartier-Bresson, aliás, assumia que usava o conceito de «instante decisivo» por pura «comodidade intelectual», deixando pairar no ar «uma certa ambiguidade» («sou normando, pelo que isso não me desagrada: “pode ser que sim, pode ser que não”»). Essa ambiguidade iria gerar tremendos equívocos sobre a sua obra, se a tomarmos na íntegra.
Assim, e muito mais do que a noção de «instante decisivo», o que percorre as sucessivas entrevistas e lhes confere alguma coerência é a rejeição do romantismo e, de forma ainda mais visível, do salonismo. Traço presente em toda a sua carreira, sobretudo quando abandona as incursões na imagética surrealista, o desprezo pela composição fotográfica leva-o a adoptar uma postura anti-intelectualista e avessa a «escolas», privilegiando o experiencialismo vivencial em detrimento quer do ensino ministrado em academias, quer do experimentalismo técnico. «Observo, observo, observo. Compreendo através dos olhos», disse em 1963, sendo ainda mais explícito em 1979: «As minhas fotografias estão aí, não as comento, nada tenho a dizer. Fala-se demasiado, “pensa-se” demasiado. Há escolas para tudo, em que se aprende tudo e, no final, acaba-se não sabendo nada, não se sabe absolutamente nada. Não existe uma escola da sensibilidade.»
Num certo sentido, as suas grandes referências situavam-se no século XIX, confessando-se um admirador do classicismo e dizendo ter Mozart e Bach como músicos favoritos; em pintura, elencava Paolo Uccello, Tiziano, Piero della Francesca, Cézanne, Goya e Daumier, acentuando que nenhum deles pertencia à escola romântica. Para HCB, «o século XIX durou até 1950». «Tive sorte de conhecer esse mundo», acrescenta, falando ainda de «uma época dourada em que existia interesse pelo mundo.» «Existia uma curiosidade no mundo que foi truncada pela guerra, não existia televisão, não havia meios de comunicação, não havia tanta gente.»
Com algum pedantismo, queixa-se que, desde essa altura, «toda a gente esteve já em toda a parte, existem agências de viagens», como se o conhecimento do remoto e do exótico devesse ser privilégio de poucos, inacessível às massas. «O mundo de entre-guerras era ainda o século XIX, o qual terminaria por volta de 1955, com a sociedade de consumo», repetiu numa entrevista a Gilles Mora, em 1986, reiterando essa opinião em 1989, ao falar com Philippe Boegner: «para mim, as grandes mudanças remontam a 1955, com a vitória da sociedade de consumo e todas as consequências decorrentes desse mundo exponencial em que o planeta tem sido objecto de saque.»
Ao lamentar a transformação operada em meados da década de cinquenta, Henri Cartier-Bresson dava voz aos que, como ele, constatavam nostalgicamente o declínio da cultura francesa e de tudo o que lhe estava associado. O fim da joie de vivre, inocente e bela. Ao regressar do seu périplo pelo Extremo-Oriente, observara o modo como o seu país sofrera os efeitos da atracção pelo american way of life.
À maneira de todos os intelectuais de esquerda franceses, e apesar de ter dedicado dois documentários e um livro a esse país (L’Amérique furtivement, Seuil, 1991), Cartier-Bresson possuía uma relação de amor-ódio com os Estados Unidos, como bem observou Peter Galassi, que durante vários anos dirigiu o departamento de fotografia do MoMA. É assaz significativo, por outro lado, que aqueles que retratou tenham sido os últimos grandes expoentes das letras e das artes francófonas, de Edith Piaf a Albert Camus, passando por Matisse, Sartre ou Beauvoir. Também ele integrava essa plêiade de últimos representantes de um mundo em vias de extinção. Na verdade, depois de Cartier-Bresson a França não produziu um fotógrafo com a sua projecção ou sequer um nome como Lartigue ou Doisneau.
De todo o modo, se Cartier-Bresson verberava a sociedade de consumo, não deixou de a utilizar como objecto do seu trabalho. O consumo de massas, como se assinala no volumoso catálogo da exposição de Paris/Madrid, foi um dos temas predilectos da obra fotográfica de HCB no pós-guerra, que retratou mulheres a experimentarem chapéus em grandes armazéns do Texas, casais a apreciarem viaturas no Salão Automóvel de Paris, crianças mirando brinquedos nas Galeries Lafayette, elegantes desfiles de moda em Düsseldorf.
Mesmo que o seu olhar seja eventualmente crítico, o facto é que, de uma maneira ou doutra, HCB soube tirar partido de uma realidade nova, incorporando-a no seu trabalho. Aliás, di-lo-á de forma expressa, logo em 1953, quando afirma que, graças à reprodutibilidade técnica, as fotografias que fazia se destinavam a ser impressas em publicações de grandes tiragens, e não exibidas em salões ou galerias selectas, apenas acessíveis a elites ilustradas. Possivelmente, não se apercebeu de que, no pós-guerra, ser «popular» não era sinónimo de estar perto ou em contacto directo com o povo; equivalia, isso sim, a produzir objectos de consumo das mais variadas espécies, incluindo fotografias.
Sustentava que a fotografia jamais deveria tentar imitar a pintura; se o fizesse, definharia, acontecendo-lhe o mesmo que à tapeçaria. Reconhece, em todo o caso, a profunda influência que sobre ele tiveram os quadros de Giorgio de Chirico: «pus-me a fotografar o sol nos postigos das janelas e coisas do género.» Mesmo em etapas posteriores da sua carreira, é possível vislumbrar a marca do inconfundível traço de Chirico; porventura de forma não muito evidente, ele está presente, por exemplo, na imagem que retrata uma fugaz rapariga numa ruela de Sifnos, na Grécia (1961) [imagem 10]
e na delicada composição de sombras e desencontros num interior de Oaxaca, México (1963); [imagem 11]
ou também noutra fotografia, essa famosa, captada em Hyéres, França, em 1932. [imagem 12]
Um ano depois, as imagens a contraluz de crianças em Arzila, no Marrocos espanhol, e em Salerno, Itália, [imagem 13]
possuem algumas afinidades com as telas de Giorgio de Chirico (mas também com as figuras esguias de Giacometti, amigo pessoal do fotógrafo, que este imortalizaria num célebre retrato sob a chuva de Paris, na rue d’Alésia, em 1961, ou, no mesmo ano, circulando atarefado na preparação de uma exposição das suas esculturas na Galerie Maeght). [imagem 14] [imagem 15]
O marginal integrado
Sobretudo até uma certa fase, em que algumas das marcas distintivas da sua obra ainda não tinham sido assimiladas pelo grande público, são repetidas como um mantra afirmações sobre a câmara fotográfica ser um prolongamento do olho humano («a Leica é uma extensão do meu olho») ou sobre o facto de o autor nunca usar filtros e flash («o flash não é a iluminação da vida») nem enquadrar as suas imagens, as quais eram impressas exactamente como foram captadas.
Abre, todavia, uma oportuna excepção, ao admitir que as imagens possam ser enquadradas por razões editoriais, para serem publicadas nas grandes revistas… Por outro lado, sustentava não utilizar a cor por uma razão de salvaguarda do seu trabalho («não emprego a cor porque, no seu actual grau de desenvolvimento, não posso controlá-la totalmente», referiu em 1961); contudo, reconhece que fez várias reportagens a cores para publicações como Paris Match, Life e Stern, dizendo em 1974 que se tratou de uma «necessidade profissional, não um compromisso mas uma concessão.»
Como se vê, Henri Cartier-Bresson, que proclamava «gosto de princípios, horrorizam-me as regras», era capaz, também ele, de transigir com as necessidades do mercado e as exigências do público consumidor de revistas. Em vários momentos, aliás, mostra-se particularmente atento ao poder do mercado: «no nosso trabalho não existe competência, talvez a única competência seja o mercado», assinala numa entrevista de 1957, a mesma em que observa que qualquer fotógrafo enfrenta o «problema do mercado, já que cada qual tem que ganhar a vida, viajar é caro, etc.».
A grande oportunidade da fundação da Magnum, assevera, era que, naquela altura do pós-guerra, «existia um mercado» para as imagens da cooperativa criada por Cartier-Bresson em conjunto com Robert Capa, David «Chim» Seymour, George Rodger e William Vandivert. Anos mais tarde, recordará que na época não só não existia televisão como «havia uma considerável procura de imagens documentais por parte do público.» Os fotojornalistas podiam dar resposta a essa procura, satisfazer essa curiosidade, tanto mais que, assinala, ainda não existiam os voos charter ou os tours pelo mundo para os excursionistas de classe média.
Estranha-se, pois, o discurso subsequente, em que, já consolidada a sua reputação universal – em particular, nas redacções das grandes revistas –, Cartier-Bresson fustiga impiedosamente a sociedade de consumo e a «neurose» que afectava o Ocidente, incluindo as suas vanguardas artísticas e o seu culto por aproximações doentias e mórbidas (quando ele, na juventude, sobretudo na fase de maior ligação ao surrealismo, também adoptara o léxico visual do obscuro e do grotesco, ainda que nunca resvalando na exploração de efeitos oníricos; trilhou antes a linha de Éli Lotar, fotografando, como este, as vísceras de animais mortos nos matadouros de La Villete). Henri Cartier-Bresson, que, exceptuando breves períodos na juventude, sempre viveu aventurosa e desafogadamente, queixava-se da «neurose causada pelos problemas de dinheiro». Esquecia que também ele orientara a sua carreira para os mercados mais rentáveis, sobretudo quando enveredou pelo fotojornalismo no pós-guerra, ou quando fez produções de encomenda para grandes companhias e bancos americanos.
Causa também alguma perplexidade saber que só tomou conhecimento da morte trágica de Robert Capa dez anos depois de esta ter ocorrido, enquanto folheava o livro Images of War. Procurou, em mais de uma ocasião, apresentar-se como um «marginal» («sou um marginal, sem profissão nem domicílio fixo»), o que decididamente não correspondia à verdade: em 1946-1947, morava no nº 31 da rue de Lisbonne, em Paris; no final da vida, num belo apartamento na rue de Rivoli, frente às Tulherias.
Mais ainda: trabalhando para grandes empresas e publicando nas maiores revistas do mundo, sendo exposto nos mais prestigiados museus do hemisfério norte, dos dois lados do Atlântico (e, muito em particular, nos Estados Unidos), HCB pertencia claramente ao mainstream da cultura visual do Ocidente da segunda metade do século XX. Sempre foi um integrado, jamais um apocalíptico. Nesse aspecto, apesar de se considerar «profundamente libertário, contrário a todo o poder», reconhece que «ser um fotógrafo conhecido é também uma forma de poder.» Soube exercê-lo com enorme talento, artístico e não só.
Em 1947, tomara uma «opção radical» a favor da foto-reportagem, quando poderia ter continuado, como outros (Alfred Stieglitz, por exemplo), a produzir as suas obras e a comercializá-las junto de coleccionadores, ponto bem observado por Clément Chéroux, o organizador da exposição no Centro Pompidou e na Fundação Mapfre. Henri Cartier-Bresson escolheu outro caminho, tornando-se um globe-trotter de sucesso, até financeiro. O próprio o reconhece quando diz, a propósito da sua incursão pioneira na URSS: «para a Magnum, foi das reportagens mais bem vendidas, a Magnum e eu ganhámos uma fortuna.» (só a Life pagou 40.000 dólares pela reportagem, vendida também a publicações como Epoca, Der Stern, Picture Post, Paris Match, entre dezenas de outras revistas norueguesas, suecas, finlandesas, holandesas, belgas ou suíças). [imagem 16]
Justificará esta lucrativa opção pelo fotojornalismo com a necessidade de «comunicar». Em 1957, afirmou que «o trabalho criativo necessita ser comunicado» e que «o mais gratificante para um fotógrafo não é o reconhecimento, o êxito, etc., mas a comunicação: o que dizes pode ter significado para as outras pessoas e revestir-se de alguma importância».
Na verdade, desde os tempos em que começou a publicar em revistas de grande circulação e a exibir as suas fotografias em galerias do México e dos Estados Unidos, Cartier-Bresson sempre trabalhou, produziu e esteve ao serviço de uma «indústria», uma indústria visual vocacionada para alimentar um público ávido de imagens de lugares distantes, as quais, mesmo que não explorassem deliberadamente o «exótico», acabavam por transmiti-lo. Que outro sentido têm, que não esse, as fotografias do eunuco da corte imperial da última dinastia chinesa, em Pequim, ou dos lutadores da Mongólia? [imagem 17] [imagem 18]
A Magnum, de resto, além do elitismo que sempre a notabilizou, era um empreendimento comercial, mesmo que os seus sócios não primassem pelas suas capacidades de gestão, a ponto de a cooperativa ter estado algumas vezes no limiar da falência, sendo salva pelas afortunadas apostas de Capa nas corridas de cavalos.
Animado, sem dúvida, por um propósito de libertar os fotógrafos da dependência que tinham em face das grandes agências e grupos editoriais, o projecto da Magnum nem por isso era destituído do intuito de concorrer no mercado das imagens, o que é justificável e compreensível desde que essa faceta não seja iludida por declarações de repúdio pelo poder das empresas ou pelo consumo de massas. As imagens de HCB constituíram – e constituem – um produto de consumo massificado, mesmo se inquestionavelmente transportam o timbre da excelência e a marca da «grande arte».
Sobre a Magnum, aliás, é interessante observar alguma ambiguidade, ou talvez mesmo contradição, no discurso de Cartier-Bresson. Por um lado, fornece um retrato dos primeiros tempos da cooperativa como uma comunidade de iguais, cada qual gozando de inteira liberdade, que partilhavam experiências entre si, aprendendo uns com os outros. Por outro lado, numa entrevista concedida em 1973 tanto diz «trabalhávamos juntos, criticávamos os nossos trabalhos» como afirma «nunca falávamos de fotografia».
Cartier-Bresson insistiu, vezes sem conta, que procurava acima de tudo captar a Vida (com maiúscula) ou, noutra expressão, «a poesia da realidade da vida», e alcançar a «naturalidade» plena dos ritmos plásticos. Quando já pouco fotografava, em finais da década de setenta, permanecerá fiel à sua crença vitalista: «Na fotografia, só um aspecto me interessa. Tem muitos outros, mas o que me comove, o que me apaixona, é o olhar sobre a vida, uma espécie de interrogação perpétua e uma resposta imediata.» Tudo isto, porém, sem abandonar o compromisso ou envolvimento, tão militante quanto paternalista, com os objectos fotografados: «não somos unicamente, não queremos ser unicamente espectadores, papel que ao cabo e ao resto seria bastante triste. Também somos actores, já que por todas as vias estamos implicados nesse mundo e nessa Vida».
Muitos procuraram desvalorizar a autenticidade desse compromisso humanista com base na genealogia burguesa de HCB. Mesmo aqueles que o enaltecem até ao limite, como Sebastião Salgado, não deixam de recordar as suas origens de classe: «À partida, tínhamos pouco em comum. Cresci no Brasil, ou seja no Terceiro Mundo, e trabalhei sobretudo em países pobres. Henri provinha da alta burguesia de um Estado rico.»
Entre nós, Paulo Nozolino vai mais longe, observando com acidez: «Era um burguês. Viajou pelo mundo e teve acesso a coisas que mais ninguém teve. Não me parece que tivesse a mínima empatia pelo proletário russo ou pelo operário chinês. Era pedante e frio.» O seu temperamento difícil é lendário, como lendária era a forma como tratava com distanciamento e até desprezo os jovens repórteres da Magnum, que não hesitava em humilhar diante de todos os colegas. Nos corredores da agência, temiam-no como a um deus maléfico e destrutivo. Apenas Josef Koudelka se atrevia a comentar com Bresson as fotografias que este fazia.
As origens de classe podem explicar a sua trajectória biográfica, sobretudo nos seus primeiros momentos (por exemplo, partiu para África com a mesada que a família lhe dava e a primeira Leica, comprada em Paris, que o fotógrafo diz ter sido «caríssima», foi paga graças a um empréstimo paterno). No entanto, essas origens não bastam, só por si, para impugnar a veracidade dos propósitos humanistas de Cartier-Bresson (que o fizeram, por exemplo, participar no evento apoteótico da fotografia humanista, a exposição The Family of Man, organizada por Steichen em 1955).
O que se torna insuportável, isso sim, é a afirmação, com laivos de alguma arrogância, da sua essencial «diferença» relativamente a todos os demais, mesmo dos que admirava, como Edward Weston, Paul Strand ou Ansel Adams. Estes, dizia, concentravam-se «no elemento natural ou geológico, nas paisagens e monumentos» que tinham «toda a eternidade à sua frente»; ele, em contrapartida, acudia ao «mais urgente», o homem, «o homem na sua vida, tão breve, tão ameaçada.» É a pretensão da superioridade do «seu» humanismo frente a todas as outras intervenções – sejam a dos salonistas, sejam a de fotógrafos como Weston ou Strand – que torna questionável a retórica de HCB. Assim construído, todo o «humanismo» é ilusório, assentando num fatal equívoco sobre os seus pressupostos.
O discurso de Cartier-Bresson contra o salonismo, criticando-lhe o peso esmagador que concedia à forma em detrimento do conteúdo, traz implícita a ideia de que as suas fotografias, em contraste, se encontravam impregnadas de substância, não se reduzindo a uma organização plástica perfeita e equilibrada. Eram isso, mas iam além disso. Tomando uma dicotomia criada por René Char a propósito da poesia, gostava de dividir os fotógrafos em duas categorias, os «inventores» e os «descobridores», integrando-se a si próprio, como seria de esperar, nesta última classe.
Noutros lugares, e por mais de uma vez, salienta e enaltece a emulação entre os fotógrafos, confessando que ao ver uma boa fotografia de um colega sentia uma avassaladora vontade de regressar às ruas, de Leica em punho. Se HCB dizia ter repulsa pela competição (afirmando, por exemplo, que gostava de desportos solitários, como andar de bicicleta, caminhar a pé ou nadar, mas que o horrorizavam os desportos concorrenciais em equipa), se também dizia com veemência que os fotógrafos não eram cavalos de corrida, o certo é que, de uma forma ou outra, sempre cotejou o trabalho que fazia com o dos seus pares, geralmente para os menosprezar.
Cartier-Bresson erguia assim a sua aura a partir da articulação de três eixos: a indiscutível beleza formal das imagens que captava, o seu inigualável «conteúdo» e, como toque de supremo génio, o facto de serem tiradas de forma instantânea, graças a um instinto certeiro e alquímico. «A minha técnica de toma é uma reacção instintiva», diria em 1951, repetindo no ano seguinte, em conselho dado a Robert L. Simon, da Simon & Schuster: «Deves tirar a fotografia instantânea e instintivamente, ao mesmo tempo que a compões.»
Já aureolado pela fama internacional conquistada pela exposição que o MoMA lhe dedicara em 1947 e pela fundação da Magnum nesse mesmo ano, Henri Cartier-Bresson apresentava-se como único face aos seus pares. Não só porque fotografava com mais beleza e conteúdo, mas porque o fazia de forma intuitiva e inteiramente natural, numa fracção de segundo. Bem e depressa, portanto, sem necessitar de produzir fotografias sobre fotografias para atingir a imagem perfeita.
Compreende-se, pois, o uso ambivalente da noção de «instante decisivo», de que Cartioer-Bresson se afastava quando intuía ser limitador, mas a que lançava mão para se definir no confronto com os outros grandes nomes da fotografia contemporânea.
Uma vida em busca da Vida
A biografia, riquíssima, contribuiu para a consolidação da lenda. Talvez graças a um «acaso objectivo», expressão de Breton que tanto gostava de citar, teve a ventura de assistir presencialmente a alguns dos mais marcantes acontecimentos do seu tempo. Esteve em muito instantes decisivos: a denúncia e os julgamentos sumários dos colaboracionistas com os nazis, a deslocação de hordas de repatriados pela Europa em ruínas, os derradeiros momentos de Gandhi e os seus funerais, a vitória das tropas de Mao Zedong sobre o Kuomitang (de que fará um livro, prefaciado por Sartre), as alocuções de Luther King em Washington, o Maio de 68.
Vangloriava-se, de resto, de ter o privilégio de poder passar largas temporadas num território, aí permanecendo um, dois ou três anos, em contraste com os seus colegas de ofício que, por contingências várias, designadamente financeiras, tinham apenas um par de meses para realizarem as suas reportagens.
Henri Cartier-Bresson nasceu em Chanteloup, Seine-sur-Marne, não muito longe do local onde actualmente se encontra a Eurodisney, no seio de uma família abastada de empresários têxteis. Os seus pais eram «católicos de esquerda» (como o próprio os caracterizou), e Henri foi educado num colégio religioso, o Instituto Fénelon, cedo começando a interessar-se pelas artes plásticas. Neste campo, a influência mais marcante terá sido, insiste vezes sem conta, a de um tio, o pintor Louis Cartier-Bresson, falecido em combate na Grande Guerra. Além dele, André Lothe, com quem estudou pintura em 1927-1928, autor de duas obras que HCB citaria a vida inteira, Traité de la figure (1939) e Traité du paysage (1950).
O jovem Henri venderia apenas um quadro, entre tantos que por certo produzira no ateliê de Lothe, mas o mais importante foi a influência deste pintor e teórico do cubismo na gramática visual de HCB, dominada por eixos, figuras e linhas que definem um espaço fechado, no interior do qual o tempo se suspende e petrifica num momento único, irrepetível, que o fotógrafo captura silenciosamente de forma sóbria e elegante, despojada de truques e artifícios.
No âmbito da fotografia, a sua referência terá sido Eugène Atget e, porventura num plano secundário, Man Ray. À influência de Atget ficam a dever-se fotografias de HCB que hoje parecem deslocadas do sentido geral da sua obra: manequins, vitrines, fachadas de lojas, anúncios publicitários, objectos perdidos e estranhos, bustos em pedra, lixo. Entretanto, começara a frequentar timidamente o círculo surrealista dos cafés da Place Blanche, tornando-se especialmente próximo de Max Ernst (é na companhia deste que comunicará ao pai a decisão de se tornar fotógrafo, não seguindo os negócios da família).
Dirá que, mais do que a pintura surrealista, foi influenciado pelos conceitos que este movimento gerou – além do «acaso objectivo», a importância da «expressão espontânea» (jaillisement), do magique-circonstancielle, da érotique-voilée, do explosant-fixe e, enfim, da intuição –, bem como pela sua atitude rebelde e inconformista. Provavelmente, o que mais o terá marcado foi a afirmação de Breton, que HCB cita com admiração mesmo nas últimas entrevistas que concede: «Primeiro, a vida!»
Por diversas vezes, cruzar-se-á com Salvador Dalí e com outra personalidade próxima dos surrealistas, o historiador de cinema Georges Sadoul, casado com uma das suas irmãs, e pela mão de quem aderirá ao Partido Comunista («entrei no partido por culpabilidade. Havia que estar perto do povo e eu tinha vergonha de ser burguês. A adesão ao partido era algo religioso.»).
Sintomaticamente, afirma que desde a infância o poeta que mais o marcou foi Rimbaud, recordando: «quando era jovem, atraía-me uma vida de aventura e horrorizava-me a ideia de trabalhar na empresa têxtil da minha família». Após uma breve passagem por Cambridge, onde conhece o etnógrafo James Frazer, famoso autor de The Golden Bough, viajará em 1931 até aos Camarões, à maneira de Rimbaud.
No regresso a França, faz escala e desembarca na Costa do Marfim. Fixa-se ali, onde encontra uma atmosfera que, segundo ele, reproduzia com absoluta fidedignidade Viagem ao fim da noite, de Céline. Com um compatriota, caçava de noite, perto dos pântanos, à luz de uma lanterna de acetileno: veados, antílopes, macacos e crocodilos. Como modo de vida, vendia depois a sua carne, a que os locais atribuíam poderes curativos. A dada altura, contraiu paludismo e esteve gravemente enfermo. Regressou debilitado, escolhendo Marselha para sua residência devido à amenidade do clima.
A passagem por África torná-lo-á um fervoroso adepto da causa anticolonial e, mais tarde, um defensor das independências, designadamente da saída dos holandeses da Indonésia, acontecimento que fotografaria anos depois. [imagem 19]
Entre 1937 e 1967, esteve casado com Carolina Jeanne de Souza-Ijke, conhecida como «Ratna Mohini» ou «Eli», uma bailarina indonésia, natural de Java. Provavelmente, tal terá contribuído para o tornar um militante da independência indonésia (passados alguns anos, quando tinha por companheira Martine Franck – fotógrafa oficial do Théatre du Soleil – apoiará a causa tibetana e ambos irão aderir ao Comité de soutien au peuple tibétan desde a sua fundação, em 1987; mais tarde, HCB criticará violentamente os massacres da Praça Tiananmen e a «ignomínia do exército chinês que buscou, com o sangue dos estudantes, salvar a esclerose do regime»).
Após regressar à Europa, ao percorrer as páginas da revista Arts et métiers graphiques encontra uma imagem do húngaro Martin Munkásci que mostrava um grupo de rapazes negros a entrar nas ondas do Lago Tanganica. [imagem 20]
Nesse instante, esse sim absolutamente decisivo, opta por consagrar a sua vida à fotografia. Pouco depois, em 1933, já expõe na Galeria Julian Levy, em Nova Iorque, na companhia de Walker Evans. Em 1931, num velho Buick, viaja pela Europa na companhia do seu amigo de infância, o poeta André Pieyre de Mandiargues, e de Leonor Fini. Percorrem Berlim, Budapeste, Varsóvia; mais tarde, Itália e sobretudo Espanha. Deslocar-se-á ao México em 1933, integrado numa expedição etnográfica ligada à construção da Panamerican e financiada pelo governo mexicano. É aí que produz as célebres fotografias das prostitutas da calle Cuauhtemoctzin, oferecendo os seus serviços aos clientes debruçadas sobre os beirais das janelas ou emergindo dos postigos das portas. [imagem 21] [imagem 22]
O seu trabalho no México será exposto nesse país em 1935, ao lado das imagens de um jovem fotógrafo mexicano, Manuel Álvarez Bravo, que fora cameraman na rodagem de Que Viva Mexico!, o célebre filme inacabado de Eisenstein.
Como aconteceu com vários jovens da sua geração, ficará chocado pela manifestação que as ligas de extrema-direita organizam na Praça da Concórdia em Fevereiro de 1934, sendo este um ponto de viragem decisivo para adensar o seu empenhamento político, que o faz aproximar-se da Association des écrivains et artistes révolutionnaires, onde encontrará Robert Capa e David Seymour, seus futuros parceiros na aventura da Magnum. No seu país natal, fotografará a pobreza e a miséria, [imagem 23] [imagem 24]
mas também os momentos de lazer dos trabalhadores e da pequena-burguesia: nas margens do Sena e do Marne, grupos de casais amigos a déjeuner sur l’herbe graças às medidas sociais da Frente Popular, nomeadamente a instituição de duas semanas de férias remuneradas. [imagem 25]
Em 1935, nova temporada nos Estados Unidos, onde se inicia no cinema através de Paul Strand e da cooperativa Nykino, fortemente influenciada pela filmografia soviética e pelos trabalhos de Poudovkine, Dovjenko, Eisenstein ou Vertov. Prosseguindo o seu envolvimento no cinema, colaborará em La vie est à nous. Ainda que assinado por Jean Renoir, este documentário propagandístico foi realizado por um colectivo nas vésperas das eleições de Maio de 1936, graças ao financiamento que o Partido Comunista conseguira angariar através de uma subscrição pública.
Proibido pela censura, no filme apareciam, entre outras, figuras históricas do movimento comunista francês, como Jacques Duclos ou Maurice Thorez. Pouco depois, em Julho e Agosto desse mesmo ano, Cartier-Bresson será segundo assistente de Jean Renoir em Une partie de campagne, onde aparece como figurante, vestido de seminarista, ao lado de Georges Bataille. [imagem 26]
Na produção, destacava-se um jovem estagiário aderecista, Luchino Visconti.
Com o deflagrar da Guerra Civil, regressará a Espanha, onde, segundo muitos, fizera as melhores e mais poderosas fotografias de toda a sua carreira (registe-se que cerca de metade das imagens desta série, realizada em 1933, retratam crianças). Em Espanha, curiosamente, não fotografará as atrocidades da Guerra Civil, optando por dirigir Victoire de la vie, um documentário de propaganda sobre os hospitais republicanos, bem como With the Abraham Lincoln Brigade (recentemente descoberto) e L’Espagne vivra, este para o Secours populaire de France.
Só nos anos 80 confessará ter sido comunista (quanto ao abandono da militância, as opiniões divergem: uns situam-no nos anos 30, na sequência dos processos de Moscovo; outros diziam só ter ocorrido na década de 50, após a denúncia dos crimes do estalinismo e o esmagamento da insurreição de Budapeste). Começa então a colaborar assiduamente com a imprensa comunista: Regards, a grande revista ilustrada do partido, e Ce Soir, dirigido por Louis Aragon.
Aí realiza diversas reportagens, com destaque para aquela que, na companhia de Paul Nizan, o fez ir até Londres para assistir à coroação de Jorge VI; ao invés de fotografar o novo monarca, HCB vira as costas ao desfile real, concentrando-se na multidão que assistia à cerimónia recorrendo a inventivos e estranhos dispositivos ópticos. [imagem 27] [imagem 28]
Em 1939, trabalhará de novo com Jean Renoir, sendo assistente na realização de La Règle du jeu, onde de novo surge na tela, fazendo de mordomo, num filme em que as crianças que apareciam como figurantes eram netos de Auguste Renoir e Paul Cézanne.
Mobilizado para a unidade «Filme e Fotografia» da 3e armée, em 23 de Junho 1940 será feito prisioneiro pelos alemães, tendo sido encarcerado num campo na Floresta Negra e, mais tarde, em Wurtemberg. Após duas tentativas fracassadas, conseguirá evadir-se em Fevereiro de 1943, para praticamente de imediato aderir ao Mouvement national des prisionniers de guerre et déportés, um grupo clandestino de ajuda aos presos e fugitivos.
Refugiado em Indre-sur-Loire, viaja até Lyon e daí até aos Vosges, indo até à quinta onde, antes da guerra, enterrara a sua Leica. Munido dela, integrará o conjunto de fotógrafos que acompanham a festiva libertação de Paris, andando pelas perigosas barricadas da rue de Rivoli, assistindo ao desfile triunfal do general de Gaulle nos Campos Elísios, fotografando o interrogatório de Sacha Guitry e, depois, a invasão da sede da Gestapo, na avenue Foch. Ao que parece, as imagens perder-se-iam, sendo descobertas 25 anos mais tarde por HCB no interior de uma caixa de biscoitos…
Pouco depois da Libertação, e na companhia de dois operadores de câmara do exército norte-americano, realizará Le Retour, um impressionante documentário sobre o repatriamento dos deportados e prisioneiros de guerra, produzido para os serviços de informação dos Estados Unidos e para o ministério francês dos prisioneiros. Alguns dos planos, como os da chegada dos repatriados à Gare d’Orsay, em Paris, foram dirigidos por Claude Renoir, sobrinho do realizador com quem HCB trabalhara.
É no decurso da rodagem deste filme que, em Dessau, assiste e regista a revanche de uma vítima da Gestapo sobre aquela que a denunciara nos tempos do nazismo. [imagem 29]
Mais impressionante do que essas fotografias é a que mostra uma criança num campo de trânsito entre as zonas norte-americana e soviética, caminhando sozinha, cabisbaixa, com um sobretudo de adulto e um guarda-chuva na mão. [imagem 30]
Em 1946, o MoMA, julgando que tinha morrido, toma a iniciativa de apresentar uma exposição em sua homenagem. HCB ainda chega a Nova Iorque a tempo de participar na montagem, com a minúcia que sempre dedicou à apresentação das suas obras (a exposição levou cerca de um ano a preparar…). Nessa altura, começa a esconder a militância comunista do passado, sabendo que, em tempos de Guerra Fria, isso lhe poderia ser fatal no acesso ao mercado norte-americano (a Georges Sadoul tinham recusado um visto para assistir a um festival de cinema na Alemanha).
Em 1947, funda a cooperativa Magnum e entre 1948 e 1950 passará três anos na Ásia, a conselho de Robert Capa, que lhe dissera enfaticamente: «Vai ver a descolonização!» Em bom rigor, a opção pelo Oriente e a própria criação da Magnum deveram-se ao fracasso comercial da venda das imagens que HCB fizera ao longo de uma road trip de 25.000 quilómetros pelos Estados Unidos. Nenhum editor se mostrara interessado em comprar o seu caderno de viagem norte-americano. Havia, pois, que procurar paragens mais longínquas e atractivas.
Em 1954, será o primeiro fotógrafo admitido na URSS após o início da Guerra Fria (Capa estivera lá com Steinbeck, em 1947, numa parceria que deu lugar ao livro A Russian Journal, de 1948). As reportagens que Cartier-Bresson produziu para a Life, e o livro que as reunirá (Moscou vu par Henri Cartier-Bresson, 1955) tinham claramente o propósito de mostrar ao Ocidente que os soviéticos levavam uma vida «normal», com trabalhadores a dançarem num refeitório, o pai levando o filho pela mão sob a imagem tutelar de Lenine [imagem 31]
e soldados a contemplarem duas raparigas que aguardavam o eléctrico numa praça de Moscovo. [imagem 32]
Em 1955, publicará Des Européens, com capa de Miró, que recolhe algumas das imagens das suas digressões pelo Velho Continente, um espaço cultural que, segundo HCB, estava na iminência de desaparecer para sempre. À excepção de uma ida a Cuba em 1963, após a crise dos mísseis, com inevitáveis retratos a Fidel Castro e a Che Guevara, e de outra ao Japão, em 1965, as viagens que faz são sempre de regresso a lugares onde estivera: retorna à China (1958-1959), ao México (1963), à Índia (1966), aos Estados Unidos (onde em 1969 realiza dois documentários para a CBS, Impressions of California e Southern Exposures), à União Soviética (1972), novamente à Índia (1980).
Entretanto, abandonara a Magnum em 1969, e a partir de 1974 concentra-se no desenho e nas fotografias de paisagens. Dos dois lados do Atlântico, sucedem-se as retrospectivas, consagrando em definitivo o seu nome como um dos maiores da história da fotografia.
Em 2000, juntamente com a mulher e a filha, decide criar uma fundação com o seu nome, num edifício art déco inaugurado em 2003, em cerimónia a que não faltou sequer uma bênção budista. Com um orçamento anual de 700 mil euros, a Fundação Henri Cartier-Bresson vive exclusivamente de financiamentos privados, onde se inclui o apoio mecenático de grandes empresas como a Hermès ou a Olympus, facto que não deixa de ser curioso se pensarmos que, em vida, HCB sempre verberou o modo de vida ocidental, dilacerado pelo consumo desenfreado e pela avidez do capitalismo.
Para aumentar as receitas, a Fundação leiloou na Christie’s, em 2011, cem provas originais que possuía em duplicado, obtendo por elas 1,6 milhões de euros; a grande peça em disputa, uma cópia de Derrière la gare Saint-Lazare foi arrematada por 430 mil euros. Já antes a Leica decidira comemorar com grandeza o 80º aniversário do mestre: um exemplar único do modelo M6, com a assinatura de HCB gravada, acomodado numa luxuosa caixa Louis Vuitton, foi leiloado na Christie’s em Junho de 1998, desconhecendo-se o valor da licitação.
Henri Cartier-Bresson morreu a 3 de Agosto de 2004 em Montjustin, na região de Alpes-de-Haute-Provence.
O fotojornalismo como prisão
Aprisionado pelo dogma do «instante decisivo», Cartier-Bresson vivia num outro cárcere, o da sua condição de repórter, que orgulhosamente reivindica na entrevista a Masclet, em 1951, expressivamente intitulada «Un reporter… Henri Cartier-Bresson» («a nós, repórteres, não nos preocupa tanto a estética da cópia em si, qualidade, tom, riqueza, matéria, etc., quanto a imagem em que a Vida brota em primeiro lugar, antes de todo o esteticismo»). Em 1973, por contraste, já dizia ser um «muito mau repórter e fotojornalista». E, no ano seguinte, vai mais longe: «John Szarkowski, o conservador da secção fotográfica do Museum of Modern Art de Nova Iorque, escreveu que eu me havia servido do fotojornalismo, mas que não era de modo algum um fotojornalista. Tem toda a razão.»
Pressentindo que o qualificativo de «fotojornalista», que tanto lhe servira aquando do lançamento da Magnum, era agora redutor da grandiosidade artística que pretendia imprimir à sua obra («a imprensa torna-nos livres e prisioneiros»), Cartier-Bresson, à semelhança do que ocorrera com a noção de «instante decisivo», começou a desvalorizar o epíteto de foto-repórter.
Diz que se tratou disso mesmo, de um epíteto de ocasião, que Robert Capa o aconselhou a usar para se livrar da fama de cultor do surrealismo. Aquando da exposição no MoMA, em 1947, verdadeira rampa de lançamento de Cartier-Bresson para o estrelato da fotografia mundial, Capa ter-lhe-á dito: «Henri, vai com cuidado. Evita o mais possível o rótulo de fotógrafo surrealista. Caso contrário, ficarás sem reportagens e irás surgir como uma planta de interior. Trabalha no que bem quiseres, mas procura que o teu rótulo seja o de fotojornalista.» Cartier-Bresson louvaria sempre a sensatez do colega.
Naquela época, em que o mercado do fotojornalismo se encontrava em expansão – como HCB o reconhece abertamente ao falar da génese da Magnum –, ter-lhe-ia sido fatal apresentar-se como um fotógrafo-artista, na linha do surrealismo ou de qualquer outra escola. É, pois, a uma circunstância historicamente localizada e, por assim dizer, fortuita (mas, em todo o caso, claramente «comercial») que Henri Cartier-Bresson atribui o facto de surgir como fotojornalista. Simplesmente, essa marca foi tão intensamente projectada, a ponto de muitos o enaltecerem como «pai do fotojornalismo», que acabou por agrilhoá-lo, mesmo quando já não precisava dela – e, pelo contrário, almejava um outro estatuto, o de grand artiste.
Mais ainda, no imediato pós-guerra, e com prolongamento até à década de cinquenta, com as grandes reportagens na Índia (1947), na China e na Indonésia (de 1948 a 1950), na União Soviética (1954) e no Japão (1965), a marca de fotojornalista fica de tal modo inscrita no seu currículo que é extremamente difícil escapar à grelha interpretativa que geralmente tem sido utilizada para analisar a sua obra, dividindo-a em duas etapas distintas, divididas pela 2ª Guerra.
Um dos objectivos de Clément Chéroux, o curador da exposição de Paris e Madrid, consistiu precisamente em esconjurar essa dicotomia redutora. Na verdade, é possível sustentar que, quando adere à fotografia militante e politicamente comprometida, ainda na década de trinta, Cartier-Bresson abandonara já as rêveries esteticistas que o fizeram orientar-se em direcções muito distintas, tacteando o caminho entre o surrealismo que absorvera nos cafés de Paris e o construtivismo russo que lhe é trazido por via da corrente da Nova Visão, assimilada pela Bauhaus. Ou ainda da busca obsessiva da geometria visual perfeita e do número áureo, presente num livro que muito o marcou à época, Le nombre d’or. Rites et rythmes pythagoriciens dans le development de la civilisation occidentale, publicado em 1931, com prefácio de Paul Valéry, pelo príncipe romeno Matila Ghyka, surpreendente polímato (foi escritor, matemático, diplomata, filósofo, teórico de arte).
De igual modo, pode dizer-se, sem sombra de dúvida, que sobretudo a partir dos anos sessenta, e com particular incidência nas duas décadas seguintes, Henri Cartier-Bresson procurou libertar-se do invólucro de fotojornalista, readquirindo a condição de criador artístico.
Tomada em perspectiva histórica, como o fez a exposição do Pompidou e da Mapfre, a obra de HCB afigura-se, com efeito, muito mais plural e complexa daquilo que geralmente se julgava. Contudo, deve dizer-se, em abono da verdade, que, ao ocultar ou menorizar a sua militância política e ao fazer oscilar a sua imagem de marca entre o artista e o foto-repórter, foi o próprio Cartier-Bresson a contribuir em larga medida para uma leitura redutora e simplista da sua trajectória como fotógrafo.
Pouco a pouco, com a aproximação ao taoísmo, ao budismo tibetano e à filosofia zen, os seus depoimentos adquirem tonalidades quase místicas, discorrendo sobre a fé religiosa que não tinha, o sentido da eternidade («a eternidade, como a linha do horizonte, retrocede sempre»), o omnipresente desejo de evasão (que o levara a tentar a fuga por diversas vezes, quando esteve presos pelos nazis), a sua pulsão libertária, à luz da qual o anarquismo era concebido pomposamente como «uma ética».
Em 1974 cita o livro de culto de Eugen Herrigel, Zen ou a Arte do Tiro com Arco (1948), que lera a conselho de George Braque e que, em seu entender, estabelecia de forma lapidar os fundamentos da actividade fotográfica. São cada vez mais frequentes as suas críticas ao individualismo contemporâneo e à hegemonia do «eu, eu, eu». Recusava ir à televisão e evitava o estrelato mediático que facilmente poderia ter alcançado. Nunca autorizou que as suas imagens fossem vendidas para fins publicitários, sendo este um mercado que lhe causava a mais profunda das aversões (por exemplo, é impiedoso para com a pintura de Magritte, dizendo estar cheia de «truques», sendo «boa para a publicidade!»).
Outro detalhe curioso: negava a existência de um «fosso de gerações», rejeitando a ideia de que entre novos e velhos existe uma radical diferença de perspectivas; mas, em simultâneo, por causa dos traumas da guerra, dizia ter dificuldades em relacionar-se com alemães da sua idade.
A personalidade que, ao longo dos anos, mais o influenciou foi, sem dúvida, o crítico de arte e editor Tériade. HCB chama-lhe o seu «guru». É este que o aconselhará a abandonar a fotografia, passando a dedicar-se ao desenho e à pintura, artes que exigiam uma serenidade contemplativa que não era fácil alcançar para o inquieto Cartier-Bresson, sobretudo ao fim de décadas a saltitar pelas ruas em busca da imagem perfeita. «A fotografia é uma acção imediata. O desenho é uma meditação.», disse numa das últimas entrevistas. Para HCB, «a fotografia era um modo de desenhar» (ou «a fotografia, tal como a concebo, é um desenho»), pois ambos enfrentavam o mesmo desafio e proporcionavam idêntico prazer: a luta contra o tempo. Todavia, requeriam competências distintas: «o nervosismo, que tão necessário é para fotografar ao natural, perturba-me ao desenhar».
Fiel a si próprio, continuará a menorizar os demais fotógrafos, incluindo aqueles que o admiravam e que Cartier-Bresson dizia respeitar. Sobre Sebastião Salgado tece considerações no mínimo desconcertantes: «O meu colega Sebastião Salgado consegue fotos extraordinárias, que exigem um enorme trabalho. Não as concebeu com o olhar de um pintor, mas o de um sociólogo, um economista, um militante. Tenho o maior respeito pelo que faz. Mas há um lado messiânico nele que não existe em mim. É a diferença entre uma novela (mas não uma novela “de tese”) e um panfleto.» Segundo o próprio, Henri Cartier-Bresson escreveria novelas; Sebastião Salgado, panfletos… No entanto, admirava sinceramente o trabalho do brasileiro, tendo feito tudo para que, em 1994, aquele não abandonasse a Magnum, como veio a acontecer (em contrapartida, será um forte adversário à admissão de Martin Parr, cujas fotografias irónicas e exuberantemente coloridas se encontravam nos antípodas da geometria sóbria e austera da estética de HCB).
***
Cartier-Bresson deixou-nos uma vasta obra: milhares de imagens, preservadas por uma fundação que ostenta o seu nome. Poucos como ele terão contribuído para a memória visual de um século feito esperanças e tragédias. Mas se aí reside o principal e mais perene legado de HCB, o discurso que produziu em torno do seu trabalho leva-nos a supor que tanto atingiu os cumes da consagração mundial como se deixou enredar nos labirintos de um humanismo tremendamente equívoco.