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[Texto recuperado a 18 de junho de 2020, dia em que se assinala os 40 an0s de lançamento do álbum ‘Closer’, da banda Joy Division]
O que é que Manuela Moura Guedes, uma claque do Sporting e os Sétima Legião têm em comum? Todos eles guardam uma enorme paixão por Closer, o segundo e derradeiro disco dos Joy Division, que celebrou 35 anos em julho. Das trincheiras britânicas, Closer quebrou fronteiras e, pelas mãos de alguns, desabrochou no então deserto da pop portuguesa.
Eternamente ligado ao suicídio do vocalista Ian Curtis, Closer acumula histórias e deixa mais perguntas do que respostas. Terá sido Closer um reflexo do desespero de Ian Curtis ou uma representação da dor humana? Uma coisa é certa: o mito foi criado e o rock nunca mais foi o mesmo. Especialmente aquele que é cantado em língua portuguesa.
O “boom” e o “Cabo da Roca do continente pop”
No início dos anos 1980 preparava-se uma revolução. Entre os capitães estavam os Joy Division. Em Manchester ou em Lisboa, a ouvir rádio ou a ler jornais, no estúdio ou em casa, em vinil ou em cassete, cada um representou o seu papel.
Em 1982, António Variações estava pronto para gravar a sua versão de Povo que lavas no rio. Em estúdio, Variações queria soar como os Joy Division após ler um texto de Miguel Esteves Cardoso que identificava os pontos comuns entre o fado e a música da banda de Manchester. “O António tinha esse texto com ele, recortado do Se7e, tanto quanto me lembro, e perguntou-me se eu podia fazer o Povo que Lavas no Rio soar da maneira que o Miguel descrevia. E foi assim que aquela versão nasceu”, explicou ao Observador o produtor Ricardo Camacho, também radialista e teclista dos Sétima Legião.
De bairro em bairro, de ruela em ruela, de quarto em quarto, de telefonia em telefonia, a cultura pop insinuava-se lentamente nos ouvidos de melómanos e de futuros artistas. Entre a uma e as três da manhã, os programas de António Sérgio eram seguidos religiosamente. O Rolls Rock – mais tarde Som da Frente – na Rádio Comercial, apresentava em primeira mão os ecos do estrangeiro. Muitos gravavam cassetes do programa e anotavam as suas bandas preferidas. A uma escala maior, Luís Filipe Barros, com o Rock em Stock, também da (antiga) Rádio Comercial, levava a “música de vanguarda” ao grande público, como refere António Duarte, crítico de música. “Na altura, qualquer disco tinha futuro assegurado desde que tocado no Rock em Stock”, escreveu no livro A Arte Eléctrica De Ser Português – 25 Anos de Rock’n Portugal.
https://www.youtube.com/watch?v=6w44ARbt-wU
Na viragem para a década de 1980, Ricardo Camacho trabalhava no Rock em Stock e lembra-se do aparecimento dos Joy Division. “O António Sérgio foi o primeiro a passar Joy Division na rádio, mais precisamente o álbum Unknown Pleasures. Mas o verdadeiro boom de popularidade aconteceu quando o Luís Filipe Barros passou, no Rock em Stock, o single Love will tear us apart, seguido do álbum Closer e do single Atmosphere” contou Camacho ao Observador.
Dentro dos bastidores da rádio, as notícias chegavam do estrangeiro, vindas de portugueses que conviviam diretamente com o crescimento do movimento pós-punk britânico. Uma dessas pessoas foi a madeirense Ana da Silva, amiga de infância de Camacho e vocalista/guitarrista das Raincoats, uma das principais bandas londrinas originária do movimento pós-punk. “Todos estes discos foram trazidos de Londres pela Ana da Silva”, conta Camacho, relembrando quem trouxe Closer para território português. “Eu trabalhava no Rock em Stock por essa altura e levei os discos ao Luís Filipe Barros”, concluiu.
Enquanto Ana da Silva trazia discos da capital britânica, Miguel Esteves Cardoso trazia de Manchester as boas novas para a imprensa lisboeta – a cidade da Factory, dos Joy Division e de toda a cena musical Madchester. O autor e jornalista estudava Ciência Política na Universidade de Manchester quando os Joy Division estavam em fase de crescimento.
Miguel Esteves Cardoso, também conhecido por MEC, escrevia com regularidade para vários órgãos de comunicação social, como o extinto Se7e. Entre 1980 e 1982, as histórias que o jovem jornalista relatava sobre música eram muito procurados em Lisboa, mesmo estando a mais de dois mil quilómetros de distância. MEC, grande apreciador da música de Joy Division, não resistiu em comentar o disco Closer, considerando-o “o mais belo e influente da década de 80”.
“Closer é limpidamente belo – tem a transparência silenciosa da escuridão, sem nunca se transformar em autocompaixão ou sentimentalismo. É o momento em que nos damos fé de uma tristeza insolúvel e da futilidade de a combater”, escreveu Miguel Esteves Cardoso a 11 de novembro de 1980, em “O Jornal”, quase três meses depois de o disco ter sido lançado no Reino Unido.
“A música pop é demasiado limitada, está demasiado circunscrita para ir longe. Mas pode ir até aqui. Até Closer. Até. E quem for até Closer logo verá estar parado num extremo, numa colina diante de outra inalcançável imensidão. É o cabo da Roca do pequeno continente Pop“, finalizou.
A rádio amplificava os discos e as cartas do estrangeiro, inspirando uma geração que, de cassete em cassete, acumulava referências. Entre as audições encontravam-se bandas como os Echo & The Bunnymen, The Durutti Column, U2, The Sound, The Chameleons, The Fall ou, claro, Joy Division.
Para António Duarte, 1981 é o ano oficial do boom do rock português, apesar dos passos já dados pelo punk e a new wave nacional, como os Faíscas ou, mais tarde, os Corpo Diplomático. O que dita o início da idade dourada do rock nacional é o lançamento de À Flor da Pele, o primeiro disco dos UHF. A banda do “Jim Morrison português”, António Manuel Ribeiro, já se tinha popularizado com o seu segundo single, Cavalos de Corrida. Pela mesma altura, surge o então desconhecido Rui Veloso que surpreende com o disco Ar de Rock.
Ao longo de 1981 terão sido editados, em média, um álbum e três singles de rock de expressão portuguesa por mês, afirma António Duarte. “Nunca em Portugal se venderam tantos discos de artistas nacionais. Nunca a indústria discográfica nacional concedeu tantos discos de prata e de ouro. O ano de 1981 foi o da ‘descoberta’ do rock português”, escreveu o crítico de música.
A aventura da Fundação Atlântica
Em 1982, Miguel Esteves Cardoso voltou à capital portuguesa, numa altura em que e o terreno da música se encontrava cada vez mais fértil. Não demorou muito até se juntar a Pedro Ayres Magalhães, Ricardo Camacho e Francisco Sande e Castro para darem um abanão no panorama musical com a criação da Fundação Atlântica, uma editora independente de música.
A motivação era clara: “Criar o seu projeto editorial, sem depender de grandes estruturas; marcar a evolução da música, imprimindo-lhe o seu cunho pessoal. Foi essa a nossa ideia, penso. Creio que o Miguel Esteves Cardoso e o Pedro Ayres de Magalhães também concordarão com isto”, disse Ricardo Camacho ao Observador, que para além de tocar com os Sétima Legião, teve também um papel fulcral enquanto produtor da editora.
Em dois anos, a editora lançou discos de bandas como Xutos & Pontapés, Delfins e Sétima Legião. Como é habitual, as influências refletiram-se inevitavelmente no som. Closer marcava o ritmo e Ricardo Camacho estava “completamente obcecado”: “Foi o meu som de referência durante muitos anos”.
A jornalista Manuela Moura Guedes, também influenciada pelas vivências londrinas, cantou na altura Foram Cardos, Foram Prosas e a assinatura de produção de Ricardo Camacho é bem evidente. Até aos olhos da crítica o elemento Joy Division não escapou: “Manuela Moura Guedes é revelação com o single Flor Sonhada/Foram Cardos, Foram Prosas, embora tentando, nitidamente, seguir as ‘pisadas’ dos ingleses Joy Division'”, escreveu o crítico António Duarte.
Apesar de já terem passado 35 anos, Manuela Moura Guedes ainda se recorda de quem ficava mais feliz com as comparações: “A pessoa que mais ficava agradada com isso era, de facto, o Ricardo [Camacho]”.
“Associarem a sonoridade dos Joy Division à música sempre foi um grande motivo de orgulho”, acrescentou Manuela Moura Guedes, que se sente uma “privilegiada” por ter podido trabalhar com Ricardo Camacho, responsável pelos arranjos e pela produção, e Miguel Esteves Cardoso, o autor da letra.
“Eu, primeiro, ouvi o som do Ricardo [Camacho]. O Miguel [Esteves Cardoso] chegou um pouco atrasado, cheio de folhas de papel, com letras escritas à mão, de um lado e de outro, meio enviesado. Nós já estávamos todos à espera dele e perguntámos: ‘Então?'”, relembra Manuela Moura Guedes. “Ele chegou, eu olhei para as folhas de papel e comecei a gravar”, concluiu.
Quando é confrontado com as semelhanças, Ricardo Camacho é claro: “Bem, foi mais do que um simples toque. Aquilo foi feito para soar a Joy Division desde o início. E o Toli e o Vítor Rua colaboraram bastante para o resultado final. Todos queríamos que a canção soasse daquela maneira. Talvez, por isso, o resultado tenha sido tão conseguido. Até a Manuela, que no início tinha outras ideias, acabou por entrar no espírito geral”.
Manuela Moura Guedes confessa que, na altura, era uma grande consumidora de música. “Fui muito privilegiada, tinha acesso a muitos discos antes de chegarem a Portugal”, contou a jornalista, relembrando as suas passagens por Londres: “Eu ia muito ao Marquee, que era o sítio onde passavam as grandes bandas antes de serem globalmente conhecidas”, explicou.
O rock português estava ao rubro, de norte a sul. Em Lisboa, Sétima Legião, Croix Sainte ou Dead Dream Factory. No Porto, os GNR, os Ban (com o EP Alma Dorida) ou os Culto Da Ira.
Os copos na Rockhouse e os Divisionários leoninos
Começar a semana a ouvir rádio e a ler as crónicas vindas do estrangeiro. Anotavam-se as bandas e compravam-se os discos possíveis. Gravavam-se cassetes e falava-se de música. Vestidos de preto, saíam à noite com os amigos, bebiam uns copos e consumiam mais música. Repetiam o processo. Tudo se fez por amor à música. Em 1980, um jovem português apaixonado pela arte corria por gosto e não cansava.
Um desses jovens foi Virgílio Santos que, com apenas 17 anos, tinha uma rotina musical disciplinada, para não se perder no admirável mundo novo da pop anglo-saxónica. Nesta aventura, a rádio foi o seu melhor companheiro. “Tenho muitas cassetes gravadas da rádio, especialmente de O Som da Frente, que ouvia durante o dia, na escola ou no trabalho”. Sempre que ouvia uma música que gostasse na rádio, apontava o nome do artista: “Queria-me tentar situar neste universo desconhecido”.
Entre as “trezentas e tal” cassetes gravadas, Virgílio encontrava prazer em arranjar a imagem da capa de cada disco, apesar do esforço de “corte e colagem”. “É uma época romântica. Não sei se era consequência da pouca oferta, mas a verdade é que dávamos mais valor. Hoje em dia já não damos o mesmo valor aos nossos grandes criativos”, explica.
Carlos Magalhães, amigo de Virgílio, lembra-se de como “o mercado das cassetes estava a florescer”, até nas revistas. “O pessoal trocava e vendia cassetes no jornal Blitz, no Pregões e Declarações“, recorda.
“Essa secção eram duas páginas. A malta costumava usar para três coisas: miúdas, bandas e cassetes”, revela Carlos, explicando que na altura não existiam “eventos de Facebook” para descobrir pessoas. “Ou metias conversa no concerto ou então era muito difícil. Nessa parte do jornal Blitz tentávamos procurá-las: ‘Olá, vi-te no concerto X ao pé da coluna, achei-te muito gira, olhaste para mim, se te lembras disto contacta-me’. E, por vezes, respondiam ‘Fui eu! Queria-te conhecer’ “, explica Carlos Magalhães.
Na secção do jornal, também era possível comprar cassetes ou ser recrutado (e recrutar) para uma banda de rock. “Havia malta que tinha discos e anunciava que gravava cassetes por 50 escudos. Depois, era só enviar para a morada”, concluiu.
Havia muita vontade para pouco dinheiro. Contavam-se os escudos para comprar o próximo disco e, quando o dinheiro faltava, arranjava-se uma cassete. Quando algum dos amigos sortudos importava um disco, via postal, era sabido que nos dias seguintes iria receber uma reunião de gravadores de cassetes à volta do sistema de som.
“Um disco custava dois ou três contos. Além disso, não havia quase mercado nenhum, tínhamos de importar tudo o que fosse ‘música de vanguarda'”, explica Virgílio Santos. Uma história de que não se esquece foi a forma como adquiriu um dos seus discos preferidos, o Closer”. “Um amigo meu no 10º ano tinha comprado o Closer. Ele andava na área D, em humanísticas. Só me lembro que na altura eu tinha uma t-shirt com o lettering dos AC/DC. Comprei-lhe o Closer em troca da t-shirt dos AC/DC e de 100 escudos, uma pechincha”, conta.
O amor por Joy Division foi além da simples audição. Odivelense e sportinguista de coração, Virgílio e o grupo de amigos formaram uma claque leonina diferente: os Divisionários. “Éramos cinco ou seis, mas fazíamos o barulho de muitos. Aliávamos a nossa paixão por música à que tínhamos pelo nosso clube”, relembra.
Carlos Magalhães, também Divisionário, não se esquece desses tempos. “Os Divisionários acabaram por ser uma brincadeira minha e do Virgílio. Éramos fãs de Joy Division e malucos pelo Sporting. Foi uma questão de juntar as duas paixões”, conta.
Enquadravam o seu amor pelo clube em letras de canções que gostavam. Iam para todos os jogos com bandeiras verdes e uma tarja com mensagens inscritas. “Sempre que pudéssemos, lá fora ou em Lisboa, íamos ver o Sporting. Em Alvalade, não faltávamos”, explica Carlos. Na tarja liam-se várias mensagens: desde excertos do Pornography dos The Cure, passando por Love Will Last Forever dos Virgin Prunes até Vamos arrumar com esses cagalhões mancos que era, segundo Virgílio, inspirado no que “um locutor anarquista da Rádio Universidade Tejo dizia”.
“Aquilo fazia um bocado de confusão aos jornais, pensavam que éramos hooligans, quando nós não fazíamos mal a uma mosca”, garante Carlos. “Os jornais desportivos fotografavam-nos e escreviam: ‘É para isto que o desporto caminha?'”. A popularidade dos Divisionários custou-lhes um convite para integrarem a Juveleo. “Mas nós dizíamos sempre que tínhamos uma filosofia diferente”, garantiu Virgílio.
Para além de amigos e colegas de claque, Virgílio e Carlos pertenciam à mesma banda: os Khaos. Virgílio, com uns 180 contos que ganhara num curso remunerado, comprou um sintetizador Korg DS8. Carlos era baterista e juntos tocaram algumas vezes no Rock Rendez-Vous. “Era espetacular. Já tínhamos o hábito de ver bandas de que gostávamos muito ali. Daquelas vezes, nós é que estávamos em cima do palco”, contou Carlos Magalhães, garantindo que se sentiam como se estivessem no Coliseu dos Recreios.
Khaos > Jesus Atropelou Maria Nove anos após a morte de Ian CurtisRock Rendez Vous - 18.Maio.1989
Posted by Virgilio Santos on Tuesday, 14 April 2015
Uma dessas ocasiões coincidiu com o nono aniversário da morte de Ian Curtis, em 1989. Os Khaos tocaram com os O Jardim do Enforcado. Dessa ocasião guardam muitas alegrias e, sobretudo, uma história curiosa: “Os Jardim do Enforcado quiseram entrar no Rock Rendez-Vous com um caixão. Tentaram transportar a urna num táxi, mas o taxista recusou-se. Então arranjaram uma carrinha, mas o Rock Rendez-Vous também não os deixou entrar com o caixão”.
Após uma semana com algumas passagens pelo Rock Rendez-Vouz, chegava o sábado de manhã. A caça pelas bootlegs e discos começava na Feira da Ladra. Pela tarde, ia-se à Rockhouse. À noite, o destino era o Bairro Alto, especialmente a Jukebox, o Café Concerto ou o Catacumbas Bar. Pelo menos assim o diz DJ Yggdrasil, que atualmente é um dos principais promotores do pós-punk nacional e que passa discos no Club Noir, situado na Rua da Madalena, em Lisboa.
“São tempos marcantes em que eu comia menos todos os dias para poupar uns escudos e ao final de semana e meia poder comprar uma cassete TDK de crómio para gravar dois álbuns”, recorda. Na memória está, também, a primeira vez que ouviu Closer na casa de um sociólogo amigo.
“Éramos um grupo de quatro e ele vivia numa vivenda com dois pisos e umas águas furtadas. A sala de música ficava nesse piso e e era muito ampla. Comecei a ouvir o álbum e perguntei, a certa altura, o que era. Foi aí que começou a devoção aos Joy Division”, explicou. O disco teve tanta influência sobre Yggdrasil que o disc jockey dedicou uma folha do diário pessoal à canção The Eternal.
“Foi nestes anos que descobri que a data do suicídio [de Ian Curtis] tinha sido a 18 de maio de 1980, durante a madrugada. Eu nasci pelas seis da manhã. Não mais deixei de viver a noite de 17 para 18 de forma especial”, confessa o DJ. “Quando estou por casa nessa noite, ouço o Closer de uma a ponta à outra. Passo, depois, pelo tema Atmosphere e retomo o Closer e a tríade 24 Hours, The Eternal e Decades”, acrescenta.
Yggdrasil explica a popularidade de Joy Division pela “magia muito própria” e pela qualidade, admitindo que “a tragédia em torno do suicídio de Ian Curtis ajudou a amplificar a curta carreira da banda“. Mas até os Joy Division chegarem a Portugal, foi necessário atravessar um longo deserto musical, marcado por conflitos políticos e desentendimentos.
O desértico rock português na ressaca da revolução
Antes de 1981, a vida não estava fácil para a música portuguesa. Portugal acabara de sair de um longo regime autoritário que perdurou 48 anos e ainda se estava a adaptar à liberdade. Grande parte do cancioneiro português ainda vivia do protesto político, ou seja, era alimentado pela censura que, após a revolução dos cravos, deixara de existir.
No gira-discos de um cidadão português comum podia-se ouvir desde fado a música ligeira, passando pelos clássicos baladeiros de protesto até alguns (mas poucos) álbuns estrangeiros. Também era possível deparar-se com o jazz psicadélico de bandas como os Plexus ou o Quarteto 1111 e o rock interventivo da Banda do Casaco. O rock progressivo já tinha dado os primeiros passos pelas mãos de Petrus Castrus, que começava a juntar uma legião de ouvintes.
A luta do rock
Havia pouca cultura (e concertos) rock nos meses que sucederam à revolução. Portugal vivia à beira de uma crise política e social grave, com forças revolucionárias e moderadas em constante conflito. O rock “cru” e “duro” era acusado de ser um género “alienador e subversivo”, apesar das muitas cartas já dadas no estrangeiro em meados dos anos 70.
A cobertura da imprensa ao concerto duplo dos Genesis no Pavilhão Desportivo de Cascais, a 6 e 7 de março de 1975, é um exemplo do preconceito que se exercia no rock. “Desilusão! O entretenimento supera a política. A fantasia é um progresso na realidade”, lia-se na manchete do Diário Popular.
A capital parou para ver um dos momentos fulcrais da música no país: o primeiro grande nome do rock mundial em Lisboa. Os dois dias, esgotados, viriam a estar marcados pela intervenção da força militar COPCON, liderada por Otelo Saraiva de Carvalho. Apesar de não se registarem feridos, muitos jornais noticiaram uma falsa catástrofe.
“Jovens excitados de tremores pop arrombaram as portas, e entrando de roldão pelo recinto super cheio rebentaram grades e fizeram voar cadeiras, espezinharam pessoas. Estão no hospital oito pessoas feridas”, lia-se na crítica de António Carvalho para o jornal A Capital. Também se sublinhava o “destrutivo” consumo de marijuana.
No Porto vivia-se o mesmo espírito. “Os Genesis mostraram aderir alienadamente à especulação bárbara dos produtores discográficos, a loucura capitalista da reprodução mercantil”, lia-se na crítica de Jorge Lima Barreto ao jornal nortenho Mundo da Canção. “Os Genesis cumpriram tudo o que uma sociedade burguesa esperava deles: divertir, alienar, dar-nos prazer idealista”, concluiu.
Mas os sinais de mudança estavam evidentes: os Genesis esgotaram os dois dias e a nova geração rebelava-se. “Aos poucos, a juventude constata que esta é que era a sua forma de estar na vida e que podia (e devia) intervir na sociedade saltando freneticamente num concerto de rock, tocando nas ruas, usando cabelo comprido ou rapado, subvertendo a moral institucionalizada, fazendo amor, gritando injustiças ao som de guitarras elétricas”, constata o crítico António Duarte em A Arte Eléctrica De Ser Português – 25 Anos de Rock’n Portugal.
Um desses exemplos é Jorge Palma, assumidamente rocker. Na canção Eles já estão fartos, do álbum Té Já (1977), Palma escreve: “Dizes que é uma miséria veres os teus próprios filhos / transformados em vadios e drogados – o teu orgulho de pai está ferido. / Apressas-te a culpá-los, mais à sua geração, / por não quererem alinhar na engrenagem / que eles viram esmagar o teu pobre coração”.
A luta do punk
Como se não bastasse, em 1976 o movimento punk surgiria no Reino Unido. Em Portugal, do pouco que se sabia do punk, apenas se conhecia o sensacionalismo dos jornais que anunciavam os protestos dos Sex Pistols contra Margaret Thatcher, líder do governo britânico. Nenhuma editora portuguesa da altura teve a coragem de divulgar este novo movimento. Em 1977, um homem da rádio começou a agitar a maneira de ouvir música em Portugal: António Sérgio. Com o programa Rotação, da emissora católica Rádio Renascença, chegavam aos melómanos portugueses os novos sons do punk.
Motorhead, Eater, The Jam e Sex Pistols juntaram-se em Punk-Rock/New Wave ’77, coletânea da Pirate Dream Records, editora de António Sérgio. Apesar de ter adquirido os direitos das canções que constam na compilação, Sérgio teve de enfrentar batalhas legais com a editora Polygram e o seu despedimento da Valentim de Carvalho.
Mas isso não o parou. Entre 1977 e 1979, o culto de António Sérgio cresceu. Mais bandas eram afetadas pelos discos que Sérgio decidia passar. Um deles foi Unknown Pleasures, o álbum de estreia dos Joy Division. Mas ainda permanecia tudo restringindo a um nicho”.
“Caraças, criámos algo enorme”
Enquanto em Lisboa ainda não se falava de punk, em Manchester o género estava em fase de metamorfose. Herdeiros da agressividade dos Sex Pistols, do misticismo dos Doors e da pop de David Bowie, os Joy Division nasceram a 4 de junho de 1976 quando o guitarrista Bernard Sumner e o baixista Peter Hook assistiram a um concerto dos Pistols e pensaram: “Se eles conseguem, nós também”. Mais tarde, Ian Curtis e o baterista Stephen Morris juntaram-se para a formação final. Começaram por imitar o punk da época, sob o nome de Warsaw, em homenagem à canção Warszawa de David Bowie, mas decidiram desconstruir o conceito punk.
“O punk dizia: ‘Vai-te lixar’. Os Joy Division foram os primeiros a dizer: ‘Estamos lixados.'”, disse Tony Wilson, dono da editora independente Factory, responsável pelo fabrico de grande parte da mítica Madchester, da qual os Joy Division constam.
No primeiro trimestre da década de 1980, os Joy Division já tinham ganho fama, espaço e identidade. Ian já tinha sido capa da New Musical Expresse (NME) e já tinham ido em digressão pelo Reino Unido com os Buzzcocks, abrindo para os Cure no Markee, em Londres, considerado na altura como uma montra do melhor que se fazia na música. Peter Hook lembra essa noite no Marquee com alguma tristeza: “os Cure ignoraram-nos”.
Começavam a ser reconhecidos na Europa central. Já tinham tocado pela Europa durante 10 dias e Unknown Pleasures, o disco de estreia, já tinha vendido quase 15 mil cópias graças à notoriedade que o single Transmission, lançado posteriormente, lhes deu, tornando-se no primeiro grande êxito da banda.
“No fim de 1978 tínhamos apenas uma pessoa na audiência. E aguentava apenas duas músicas. Sentíamos que seria o fim e que estávamos a perder o nosso tempo. Apenas três meses depois, começámos a tocar o Transmission, e todos – desde músicos, a técnicos e empregados – paravam para nos ver”, lembra Peter Hook em Unknown Pleasures – Inside Joy Division. “Foi aí que começámos a pensar: ‘Caraças, criámos algo enorme!”, lembra Hook.
“Closer”, Martin Hannett e a “música gótica adulta”
Entre 1979 até ao primeiro trimestre de 1980, o segundo disco foi-se construindo. A banda atirava linhas instrumentais e Ian orquestrava a canção. “Ele ouvia-nos a tocar e a improvisar, pegava nas partes que achava interessantes e alinhava-as”, conta Peter Hook. “Ele era o nosso ouvido, um grande ouvido. Todas as bandas precisam de um ouvido”, conclui.
As canções foram testadas ao vivo ao longo das digressões europeias e britânicas. Os sintetizadores ganhavam um papel cada vez mais forte na banda: Ian começou a dar os primeiros acordes na guitarra e Bernard Sumner ocupou-se das teclas, um ARP Omni-2.
Após o instrumental estar composto, Ian pegava num saco de plástico, que levava para todo o lado, repleto de letras e poemas da sua autoria, e encontrava a mais adequada. “Necessidade de ignorar + destruir influências passadas – olhar em frente. Sabor é hábito. A repetição de algo já aceite”, lê-se na folha do bloco-notas de Ian que tinha a canção Atrocity Exhibition anotada.
De Unknown Pleasures para Closer nota-se a diferença, tanto lírica como sonora. Segundo o crítico Jon Savage, Ian começou a centrar-se mais no sujeito poético e menos na narração de uma circunstância ficcionada. Será que as letras de Ian eram autobiográficas? “As palavras de Ian estavam a escrever-se por elas mesmas”, disse Sunmer, suspeitando que sim.
Entre dia 18 e 30 de março, Closer foi gravado na Brittania Row, em Londres, o lendário estúdio dos Pink Floyd. Martin Hannett tomava outra vez as rédeas da produção, e todos, excepto Ian, estavam com receio que Hannett pudesse voltar a “estragar canções”, como fez, na opinião da banda, com Unknown Pleasures.
“Um de nós dizia em estúdio: ‘Martin, podes pôr o prato de choque um pouco mais cristalino?’. Ele respondia logo aos berros: ‘Calem-se, seus idiotas'”, conta Peter Hook. “Nós queríamos um som mais pesado e metálico, como um conjunto numa garagem com paredes de metal, tal como os Stooges ou os Velvet Underground. Ele queria tornar-nos – como é que ele descreveu? – música gótica adulta ou algo do género”.
Seria uma injustiça escrever sobre Closer sem sublinhar o trabalho de Martin Hannett. Tal como George Martin para os Beatles, também Martin Hannett teve um papel importante de produtor com os Joy Division. Considerado o quinto elemento da banda, Hannett usou as canções de Closer como um laboratório sónico.
https://www.youtube.com/watch?v=vIkhQujATBA
Hook explica que Martin posicionava o som milimetricamente e triplicava o nível comum de reverb nas guitarras de modo a soarem “monolíticas” e “introspetivas”. Hannett também não guardava reservas no uso de efeitos na bateria, colocando-a ao serviço da tarola, o seu vício. Martin costumava gravar sons do dia-a-dia, outro sinal da sua excentricidade: vidro a partir-se, um elevador ou murmúrios. Tony Wilson, diretor da editora Factory, relata que, durante as gravações de Closer, o apanhara a “gravar silêncio”.
Apesar da faceta carrancuda e ditadora, Martin Hannett estava apaixonado com o trabalho que tinha acabado de produzir. “O álbum foi feito o mais fechado possível, cabalístico, enclausurado no seu próprio mundo misterioso”, disse Hannett. O disco Closer, bem como as canções Komakino, Incubation e As You Said, estavam gravados.
Uns dias depois, Peter Saville, designer da Factory, também responsável pela icónica capa de Unknown Pleasures, apresentava sugestões para o design gráfico do disco que viria a ser lançado. Saville tinha visto um artigo com umas fotografias de um cemitério em Génova de comerciantes italianos ricos que competiam constantemente pela melhor sepultura.
“Todos nós adorámos as fotografias, especialmente o Ian. Será que quando ele as escolheu tinha noção do seu simbolismo? Não sei, ninguém sabe. Eu acho que ele sentiu que as fotografias se ajustavam perfeitamente às canções do disco”, desabafou Hook. Dois meses depois de gravarem, Ian suicidou-se.
Closer foi lançado dia 18 de julho de 1980, dois meses após a morte de Ian Curtis, icónico vocalista da banda. Misterioso, não tem lado A nem lado B indicado. O disco, genuinamente triste, contempla várias facetas da frustração humana, tanto através da atmosfera fantasmagórica e melancólica criada pelos Joy Division, gerida pela produção genial de Martin Hennett, como pelas letras de Curtis.
Curtis sempre evitou desvendar detalhes sobre a origem das suas letras, sublinhando estarem “abertas à interpretação”, tal como disse numa entrevista à fanzine britânica Printed Noises. Será que Closer é o epilogo de Ian Curtis? Os mais próximos de Ian acreditavam que sim. “Apesar de existir sempre espaço para a ambiguidade, é difícil evitar a conclusão de que a maior parte destas letras [de Closer] eram extremamente pessoais”, escreveu o crítico britânico Jon Savage em This is Permanence. Quando Closer foi composto, entre meados de 1979 e março de 1980, Ian encontrava-se numa situação difícil.
Ian sofria de epilepsia, ia ficando cada vez mais frágil pela respetiva medicação, ainda demasiado rudimentar nos anos 70, e encontrava-se dividido entre a sua mulher e Annik Honoré, com quem teve um caso, “platónico” segundo Hook, até ao fim da sua vida. Além disso, vivia uma situação financeira deplorável que levava a mais conflitos com Deborah Curtis. “Quando deixávamos o Ian em casa já sabíamos que ele estava lixado”, relembrou Hook.
Durante a madrugada de 18 de maio de 1980, Ian Curtis bebeu café e uma garrafa inteira de whiskey, viu o filme Stroszek, do realizador alemão Werner Herzog, ouviu The Idiot, de Iggy Pop, e enforcou-se na cozinha. “O Stroszeg é um filme sobre um europeu a viver na América, que prefere suicidar-se a ter que escolher entre duas mulheres”, lê-se em Touching From a Distance. “Eu acredito que o Ian já tinha escolhido a sua data limite”, concluiu Deborah.
35 anos depois a paixão permanece
Tal como Miguel Esteves Cardoso profetizava em 1980: “Não me parece, caso Ian Curtis ainda fosse vivo, que viessem a merecer uma página inteira – os Joy Division são demasiado rígidos para isso – mas o certo é que a sua influência e a sua tristeza poderão, um dia, incorporar-se numa futura banda que mereça tal página”. E assim foi: U2, Interpol, The Cure, entre outras.
https://www.youtube.com/watch?v=xQrJYzzGN2A
35 anos depois, ainda vestem as mesmas roupas, mas consumiram sempre cada vez mais música. O ponto de encontro é no Club Noir, na Rua da Madalena, ou na discoteca do centro comercial do Imaviz, o ClubMetropolis. No Club Noir, o DJ Yggdrasil continua a animar a pista com os “sons da vanguarda”, sem descorar das novidades que nunca param de chegar. A dançar estão Carlos Magalhães e Virgílio Santos.
A herança de Closer reflete-se também nos novos artistas portugueses. É o caso de Manuel Fúria, músico e líder da editora independente lisboeta Amor Fúria. Já nos seus trinta anos, foi um dos protagonistas da mais recente idade do ouro da música portuguesa. Cresceu em Santo Tirso e mudou-se para Lisboa para estudar. Já na capital, criou amizades, formou bandas e consolidou a sua missão: ajudar a cultura pop portuguesa. No ouvido e na inspiração, os Joy Division nunca o abandonaram.
“É um disco fundamental na minha maturação”, sublinhou. Apesar de tudo, garante que foi um álbum “difícil”. “O Closer é um disco muito claustrofóbico. Sentes um aperto o tempo todo”, explicou. “Tive de ter capacidade e estofo para o ouvir sem ficar fisicamente e espiritualmente inutilizado”, acrescentou.
“Ouvi o Closer pela primeira vez com 20 e poucos anos. Já conhecia os Joy Division de adolescente, por causa dos meus irmãos, que são uma geração mais velha do que eu”, explicou ao Observador Fúria. Closer foi o primeiro disco que ouviu dos Joy Division, mas o primeiro contacto veio dos discos do pai e das cassetes dos irmãos, com gravações do Som da Frente.
As constantes homenagens à banda de Manchester estão à vista. Entre o seu arsenal de guitarras, Fúria guarda um especial carinho pelas suas três Phantom Vox, a guitarra que Curtis usava. “É de usar uma coisa igual à do Ian Curtis”, justifica. A que mais usa em palco foi comprada a um inglês. Na parte detrás da guitarra lê-se: “Esta máquina destila Som da Frente“.
Além disso, a canção O Amor Separar-nos-á foi feita a pensar no êxito dos Joy Division Love Will Tear Us Apart. “Nas primeiras versões da música [O Amor Separar-nos-á], gravada para nada que se ouça, o riff inicial da guitarra é o mesmo que se ouve em Love Will Tear Us Apart“, conta Fúria.
A música de Closer que mais o marcou foi Isolation e não pelas melhores razões: “Tive contacto pela primeira vez no 10º ano. Tinha 16 anos e um amigo meu, com uma história de vida complicada, estava sempre a ouvir canção enquanto fumava charros às escondidas. Ele punha-me a ouvir para eu curtir, e aquilo era mesmo desagradável. A canção”, explicou.
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Mas Fúria garante que qualquer influência dos Joy Division é apenas “um ponto de passagem, não um fim em si mesmo”. “Mesmo se tentasse [ter a melancolia de Joy Division] não dava. Primeiro pelo meu cristianismo – acreditar na redenção – e depois pelo meu caráter mediterrânico: por mais oprimido que te sintas estarás sempre ao pé do mar, com um sol maravilhoso enquanto comes sardinhas e bebes imperiais muito boas”.
Viver em Santo Tirso,”onde nada acontecia”, ajudava-o a focar-se no seu crescimento musical. “O meu pai sempre viajou muito, em trabalho. E trazia discos para os meus irmãos, e mais tarde para mim”, contou Manuel, revelando que começou a formar bandas desde os 12 anos.
Manuel Fúria, também líder de uma companhia discográfica independente, bebe muita influência da Fundação Atlântica. “Influência sobretudo pela vontade de querer procurar gerar uma cultura pop de raiz portuguesa. Mas uma raiz portuguesa que não pode ser pura. Porque o pop rock não nasce aqui. É uma cultura pop herdeira de determinadas referências, ligadas à Factory e à maneira como eles faziam as coisas”, explica o cantautor português.
Manuel Fúria pertence a uma fornada de artistas nacionais muito influenciada pela geração de ouro dos anos 80. Também os Uni Form, banda de David e Nuno Francisco. Apesar de terem sido novinhos durante o boom, ouviram as cassetes do seu amigo Virgílio Santos que motivaram os seus gostos pela música. Também os Supreme Soul, banda de pós-punk portelense, não abdicam de tocar ao vivo uma versão de Disorder, canção dos Joy Division.
Em 2015, a música portuguesa ainda gosta de si mesma. Herdeiros desses tempos, consciente ou inconscientemente, estendem a intemporalidade dos Joy Division e, mesmo sem terem vivido o boom, guardam uma paixão como se lá tivessem estado.
Texto editado por João Cândido da Silva.