“Esperei quarenta e sete anos para visitar o lugar onde o meu irmão, Ernesto Guevara, foi assassinado. Toda a gente sabe que ele foi covardemente fuzilado a 9 de Outubro de 1967, na pobre sala de aula da escola primária de La Higuera, uma pequena aldeia perdida no Sul da Bolívia.”
É assim que Juan Martin Guevara começa o livro “O Meu irmão Che”, uma colecção de memórias sobre a vida do argentino transformado em herói da revolução cubana, mas a partir do ponto de vista familiar, de quem viveu a demnada de Ernesto Guevara à distância.
O livro é publicado no próximo dia 4, poucos dias antes do 50.º aniversário da morte de Che. O Observador faz a pré-publicação de um excerto em que José Martin recorda o momento em que a família Guevara tomou real consciência da mudança total de rumo que Ernesto escolheu dar à sua vida.
“Ernesto encontrava-se no México havia dez meses. Parecia gostar de lá estar. «O país do suborno recebeu-me com toda a indiferença de um grande animal, sem me fazer carícias nem me mostrar os dentes», escrevera ele à minha tia Beatriz, ao chegar ao país de Pancho Villa. Mantinha um contacto regular com Ulyses Petit de Murat, um poeta e cenarista amigo íntimo do meu pai, o que permitia aos meus pais receberem, por vezes, notícias indirectas.
As cartas de Ernesto denunciavam um mal-estar. Ele parecia dividido entre dois impulsos contraditórios: tomar parte num combate ou prosseguir as suas viagens errantes. Em Outubro de 1954, em resposta a uma nova súplica dos meus pais para que regressasse à Argentina e retomasse a sua carreira de médico, ele escreveu à minha mãe (que tratava carinhosamente por «minha mãe, minha mãezinha»):
«… no fundo (e à superfície), sou um incorrigível vagabundo e não tenho qualquer desejo de trocar esta carreira por uma disciplina sedentária. Tenho uma fé inabalável no triunfo final daquilo em que acredito, apesar de não saber se serei um actor ou um mero espectador interessado na acção. As notas de azedume que alguns de vocês parecem ter detectado nas minhas cartas advêm, sem dúvida, desta situação; a verdade é que a minha deambulação vai sempre ao encontro de tudo e eu não me decido a pôr-lhe fim.»
Este conflito interior colocava-lhe, ao que tudo indicava, um problema moral, como o confirmou esta carta enviada à sua amiga Tita Infante em Novembro de 1954:
«… seria hipócrita apresentar-me como exemplo: a única coisa de que posso gabar-me é de ter fugido de tudo o que me importunava, e hoje, quando me sinto preparado para me envolver na luta (em particular num plano social), continuo, tranquilo, as minhas peregrinações ao sabor dos acontecimentos, sem contemplar a hipótese de ir lutar na Argentina. Confesso que este é o meu principal quebra-cabeças, pois encontro-me num terrível dilema entre a castidade (aqui) e o desejo (vagabundear, sobretudo na Europa) e vejo que estou pronto a prostituir- -me com uma terrível desfaçatez logo que a ocasião surge.»
Já o disse: Ernesto tinha uma capacidade de autocrítica exemplar. Era capaz de analisar os seus mínimos defeitos, fraquezas e actos com uma lucidez impressionante. Em busca de um escape para os seus ideais, estava impaciente por descobri-lo e por enfrentar os imperialistas, os exploradores e os torturadores do mundo inteiro. Ou, para começar, os da América. Descobrir o mundo, mudá-lo, viver ou sacrificar a sua existência, tais eram as questões fundamentais que o atormentavam. Na época, podiam ser questões grandiloquentes, talvez até extravagantes. À luz do que ele viria a realizar, ganham todo o sentido. Ernesto morreu pelas suas ideias. É tão simples quanto isso.
Esse conflito interior, que não lhe dava trégua, encontrou uma solução definitiva: Ernesto conheceu Raúl Castro, o irmão mais novo de Fidel. Devia o encontro a Hilda Gadea, a sua companheira, que se movia agilmente nos círculos de exilados políticos. Ela e Ernesto assistiam com regularidade a reuniões e serões organizados por líderes políticos do Peru, da Guatemala, da Argentina e de… Cuba. Raúl e Ernesto tornaram-se muito próximos desde o primeiro encontro.
A 26 de Julho de 1953, os irmãos Castro atacaram o quartel Moncada de Santiago de Cuba. O assalto, cujo objectivo era desestabilizar a ditadura vigente, saldara-se por um amargo fracasso. Os membros do grupo rebelde tinham sido sumariamente executados ou presos pelas tropas de Fulgencio Batista. Aquando do seu processo, Fidel encarregara-se da sua própria defesa: era advogado, e que advogado! A sua fervorosa e magnífica alegação em defesa do povo oprimido, intitulada A História absolver-me-á, tinha durado três horas. Comovera de tal modo o país que, em Maio de 1955, sob a pressão popular, Batista acabara por amnistiar Fidel, em troca da promessa – que Fidel não tencionava, como era evidente, cumprir – de não recomeçar as suas actividades. Logo que foi libertado, partiu para o México, com o objectivo de preparar o seu regresso a Cuba. Reconstituíra o seu grupo rebelde, que baptizara de Movimento 26 Julho.
Ernesto cruzou-se com Fidel pela primeira vez na noite de 7 de Julho de 1955, em casa de uma amiga de Hilda, uma tal de Maria Antonia. Quis o acaso que aqueles dois homens excepcionais se conhecessem no preciso momento em que precisavam um do outro! Entenderam-se de imediato e passaram a noite inteira a debater ideias. Ernesto ficou seduzido. Quanto a Fidel, bastaram-lhe algumas horas para reconhecer o valor e o potencial de Ernesto. «Preciso deste tipo», deve ter dito para consigo. De tal modo que lhe propôs tornar-se médico de campanha do seu movimento. Ao romper do dia, Ernesto estava recrutado. Os dilemas e as tergiversações tinham sido ultrapassados e o meu irmão encontrara, enfim, a sua vocação. Penso que aceitou o posto de médico por defeito. A sua última viagem levara-o a uma conclusão: a medicina não chegava para curar as feridas da Humanidade.
Não possuía, contudo, qualquer formação militar, uma vez que fora dispensado do serviço na Argentina. O seu diploma de médico iria, pelo menos, servir-lhe de passaporte para a guerrilha. O treino começou algumas semanas mais tarde, sob o comando de um coronel cubano de sessenta e três anos criado em Espanha, Alberto Bayo, que formara as tropas republicanas da Guerra Civil Espanhola. Para preparar os oitenta e dois homens da guerrilha sem atrair as atenções, Castro e Bayo escolheram uma hacienda do distrito montanhoso de Chalco, a cerca de trinta quilómetros da capital mexicana. O vasto rancho era propriedade de um velho amigo de Pancho Villa. Conciliando teoria e prática, o treino durou três meses, findos os quais Bayo declarou Ernesto como o aluno mais promissor do contingente. Estava impressionado com a sua inteligência, disciplina, determinação e coragem, com a sua vasta cultura e o seu espírito de camaradagem.
Na montanha, Ernesto tornou-se o Che, assim baptizado pelos seus companheiros, como já referi, por causa da sua mania de acrescentar che a todas as suas frases, como bom argentino. Isto não o incomodava, pelo contrário: gostava que lhe lembrassem as suas raízes. Che e o chá-mate eram os seus dois «argentinismos». Che tinha ainda um outro sentido; vinha de Mapuche, que significa «povo da terra» e designa as tribos indígenas do Sul do Chile e do Sudoeste argentino.
Ernesto nada nos dissera das suas novas actividades, apesar de nos escrever com regularidade. Lembro-me, em particular, de uma carta recebida em Outubro de 1955 – depois de Perón ter partido para o exílio –, por causa da reacção do meu pai. Ernesto deplorava o rumo que os acontecimentos haviam tomado, não porque fosse peronista, mas porque achava que Perón tinha, pelo menos, a vantagem de se opor aos imperialistas ianques e de ser um mal menor, em comparação com os militares. Certo é que o meu pai antiperonista chegou furioso à rua Aráoz, agitando a carta de Ernesto no ar. «Mas escutem só o que ele escreveu!», exclamava.
O tom das suas cartas mudara. Continuava a fazer uso do humor e da troça e pedia notícias de toda a gente. No entanto, embora aludisse aos seus projectos, nunca os expunha com franqueza. Dava pistas, mas não revelava nada de concreto. Falava de «amigos cubanos» e dos seus artigos publicados numa revista médica; falava da sua «casa ambulante» e do facto de estar prestes a ser pai pela primeira vez, pois, em breve, nasceria a sua filha, Hilda Beatriz; contava a sua subida ao segundo pico mais elevado do México, o vulcão Popocatépetl (5426 metros – «tomei o Popo de assalto», escreveu) e referia-se aos seus trabalhos científicos. O meu pai queixava-se do lado enigmático e cabalístico das suas missivas. Agora era preciso decifrar não apenas a letra, mas também o sentido das suas palavras! Só bastante mais tarde soubemos que a perigosa escalada de que ele regressara com os pés gelados e a cara a arder fora, na verdade, um dos exercícios de treino militar impostos pelo coronel Alberto Bayo. Era preciso uma excelente condição física para percorrer a Sierra Maestra cubana.
Em compensação, anunciou-nos que, tendo um dia «abusado da tequila», se sentira impelido a ter «um gesto de uma nobreza absurda», e pedira Hilda em casamento. Mencionou também que, daí a pouco tempo, participaria num congresso médico na Venezuela. Estava prestes a ser pai e parecia levar o seu trabalho a sério. Talvez fosse, finalmente, assentar aquela casa ambulante. De preferência na Argentina, junto dos seus. Ainda assim, os meus pais continuavam preocupados. Devia ser a sua intuição…
Fomos informados de que Ernesto estava detido na prisão para imigrantes Miguel Schultz durante o Verão de 1956. A célula cubana do Movimento 26 de Julho fora detectada pela Direcção Federal de Segurança do México. Este organismo não desconfiava, no entanto, que aquele grupo se preparava para actuar em Cuba. Numa carta datada de Abril de 1956, Ernesto falara, com efeito, do seu crescente interesse pela «doutrina de São Carlos» (Karl Marx), «bem mais interessante do que o estudo da fisiologia». Mas daí a ir parar à prisão! Após um tempo considerável sem notícias, o meu pai, preocupado, movera céus e terra para saber o que poderia ter-lhe acontecido. O seu primo direito, o almirante reformado e embaixador argentino em Cuba, Raúl Lynch, conseguiu obter informações por via diplomática. No México estavam Ulyses Petit de Murat e o embaixador argentino Fernando Lezica, que era tio da mulher de Roberto. O meu pai alertara todas estas pessoas para conseguir informações fiáveis e foi assim que ficámos a saber da existência de Fidel Castro.
Ernesto podia, por fim, abrir-se e contar-nos a verdade. Numa carta à família, falou de Fidel pela primeira vez: «Fidel é um jovem líder cubano que me pediu que me juntasse ao seu movimento há já algum tempo, bastante tempo.» Ficámos a saber por terceiros que, de todos os membros do grupo cubano detidos, Ernesto fora quem se mostrara mais insolente. Fora o único a reivindicar, corajoso, o seu marxismo-leninismo. Concluía a sua carta dizendo: «Triunfarei com ela [com a revolução cubana] ou morrerei lá. Se, por uma qualquer razão que não consigo prever, me vir impossibilitado de voltar a escrever-vos, e se mais tarde a sorte me abandonar, considerem estas linhas como um adeus não tão grandiloquente como sincero. De agora em diante, não considerarei a minha morte como uma frustração.»
Aterrorizada, conhecendo o carácter do seu filho, a minha mãe começou a devorar tudo o que encontrava sobre esse Fidel Castro, de quem nunca ouvira falar. Queria saber em que braços se lançara Ernesto, mas o que leu não a tranquilizou – bem pelo contrário. A profunda inquietação em que viviam os meus pais, uma inquietação quotidiana, criou raízes naquela época. O meu pai tentou fazer intervir as pessoas das suas relações, pedindo-lhes que fossem visitar o filho à prisão. Ernesto reagiu, pedindo- -lhe que parasse de imediato de lhe enviar «indivíduos daquele género». Quando Petit de Murat o visitou, Ernesto rejeitou toda e qualquer ajuda de que os seus companheiros cubanos não pudessem também beneficiar e recusou todo o tratamento privilegiado. Petit Murat descreveu-nos, então, a sua «atitude moral magnífica». Parecia muito impressionado com a probidade de Ernesto.
A notícia da detenção do «médico argentino» espalhara-se por toda a América Latina. A nossa família e os nossos amigos estavam estupefactos com os seus «projectos loucos» e não se coibiram de exprimir as suas opiniões aos meus pais. O telefone começou a tocar incessantemente na rua Aráoz. Os nossos parentes aconselhavam-nos a reprimir Ernesto, a bater o punho na mesa para o trazer de volta ao bom caminho. Pela minha parte, toda aquela história me parecia formidável, genial. Que tipo excepcional, o meu irmão!
O período a que eu poderia chamar de «pré-Che» estava a chegar ao fim e entrávamos agora na época do «pós-Che», que foi conflituosa para a nossa família. Iríamos, com efeito, carregar o peso do envolvimento de Ernesto na causa que ele abraçara, o peso da sua popularidade nascente e, acima de tudo, do seu confronto com os poderes vigentes.
Eu acabava de completar treze anos e a minha educação política ia já bastante avançada. Eu e a minha mãe conversávamos muito, era uma relação que tinha muito de companheirismo, não se limitava a uma relação entre mãe e filho. Por outro lado, falava pouco de política com o meu pai, pois era raro estarmos de acordo. Neste domínio, as minhas referências eram a minha mãe e a minha irmã Celia. E Ernesto, claro, mas ele estava longe. Continuávamos a receber cartas suas com frequência.
Ainda me recordo da primeira vez que ele assinou «El Che». Era uma carta destinada à minha mãe, datada de 15 de Julho de 1956. Como ela estava agora convencida de que Fidel Castro voltaria a tentar uma invasão da ilha com a participação do filho, enviara a Ernesto uma carta a repreendê-lo, na qual exprimia a sua incompreensão e as suas dúvidas. Cuba não era a sua pátria. Se ele queria combater a injustiça, porque não lutava contra o nosso tirano nacional, em vez de pôr a sua vida em perigo a milhares de quilómetros de distância? A Argentina era, então, governada por Pedro Eugenio Aramburu, o general responsável pela Revolución Libertadora, por outras palavras, pelo golpe de Estado de 1955 contra Perón. Aramburu não passava de mais um ditador que perseguia os peronistas, prendendo-os ou assassinando-os, cujo sectarismo foi ao ponto de promulgar uma lei que ilegalizava a propaganda peronista, a evocação dos nomes de Eva e Juan Perón, bem como a posse de imagens, símbolos ou esculturas, etc., a representá-los. Esta perseguição levaria ao endurecimento inicial do incipiente movimento Montoneros.
A minha mãe temia por Ernesto. Consumida pela inquietação, tentou, pela primeira vez, refreá-lo, apesar de ele ter então vinte e oito anos. Ernesto, por seu turno, estava habituado a que a minha mãe o apoiasse em tudo. Suponho que tenha ficado muito surpreso ao ser admoestado com uma tal firmeza.
Reproduzo aqui uma parte da sua resposta, pois esta carta fundamental marcou um ponto de transição na nossa vida:
Não sou nem Cristo nem filantropo, vieja, sou, antes, precisamente o contrário de um Cristo e a filantropia parece-me uma coisa de [palavra ilegível], pelas causas em que acredito, luto com todas as armas ao meu dispor e tento derrubar o adversário, em vez de me deixar ir parar à cruz. No que se refere à guerra de fome, estás completamente enganada: levámo-la a cabo duas vezes; da primeira vez, eles libertaram vinte e um dos vinte e quatro detidos do nosso grupo, e, da segunda, anunciaram a libertação do Fidel Castro, o líder do Movimento, que deverá ocorrer amanhã. Assim, só duas pessoas, sendo eu uma delas, permanecerão detidas.
Não quero que penses, como insinua a Hilda, que as duas pessoas em questão estão a ser sacrificadas, somos apenas aquelas que não têm os papéis em ordem, é por essa razão que não temos acesso aos mesmos recursos que os nossos camaradas. A minha intenção é procurar asilo no país mais próximo, coisa difícil de alcançar, dada a reputação interamericana [sic] que me atribuíram, e aí esperar que requeiram os meus serviços. Repito-vos que é provável que não possa escrever-vos durante um período mais ou menos longo. O que mais me espanta é a tua falta de compreensão e os teus conselhos a respeito de moderação, egoísmo, etc., por outras palavras, os defeitos mais execráveis que um indivíduo pode ter.
Não só não sou moderado como tentarei nunca sê-lo, e se me aperceber um dia que o apelo sagrado deu lugar a uma chama débil, restar-me-á apenas vomitar sobre a minha própria merda. Quanto ao teu apelo a um egoísmo moderado, isto é, a um individualismo vulgar e covarde, e às virtudes de X [amigo da família], devo dizer-te que me esforcei para o liquidar em mim; não falo exactamente desse tipo de individualismo, desconhecido e pusilânime, mas do outro, boémio, indiferente aos outros e que se alimenta de um sentimento de autossuficiência tóxico para a consciência, e não da minha própria força.
Depois destes dias passados na prisão e em treino, identifico-me por completo com os meus companheiros de luta… […] Um dos teus graves erros é acreditares que da moderação ou de um «egoísmo moderado» saem as grandes invenções e as obras-primas. As grandes obras precisam de paixão e a revolução só pode ser feita com grandes doses de paixão e de audácia, qualidades geralmente presentes nos grupos humanos. Outra coisa estranha em que reparei: repetes o nome do Papá Deus, espero que tal não signifique que voltaste à gaiola da tua juventude.
Quero ainda dizer-te que a série de SOS que lançaram não serviu rigorosamente de nada. O Petit [de Murat] ficou com medo, o Lezica esquivou-se e deu um sermão à Hilda (contra a minha vontade) a respeito das obrigações do asilo político. O Raúl Lynch portou-se bem, à distância, e o Padilla Nerva disse que se tratam de ministérios diferentes. Queriam todos ajudar-me sob a condição de que eu renegasse os meus ideais; não acredito que prefiras um filho vivo e perverso a um filho morto num lugar qualquer mas que fez aquilo que considerava ser o seu dever. […] De resto, é certo que depois de me tornar defensor dos oprimidos em Cuba, partirei para outro lugar, e não é menos certo que estaria lixado se me visse fechado num consultório ou numa clínica de doenças alérgicas.
Dito isto, parece-me que essa dor, uma dor de mãe que parece estar a afectar-te na velhice e que exige que o teu filho continue vivo, merece respeito e que tenho a obrigação – e a vontade sincera – de a ver por aquilo que ela é, adoraria ver-te, não apenas para te consolar, mas também para me consolar a mim mesmo das minhas inconfessáveis e episódicas nostalgias. Vieja, mando-te um abraço e prometo-te a minha presença, se não houver nada em contrário. Teu filho, o Che.
Esta carta, que decifrámos em família, convenceu os meus pais de que não havia nada a fazer a não ser apoiar as decisões do meu irmão. Sabíamos como ele era determinado. Ernesto ia seguir aquele Fidel Castro, que, de resto, a minha mãe começava a admirar. Lera as suas alegações, uma pérola de lirismo que denunciava a tirania de Fulgencio Batista e descrevia, ao pormenor, a miséria do povo cubano. Era difícil contra-argumentar. Quanto a Ernesto, falava em vir visitar-nos e agarrámo-nos a essa ideia. Na realidade, ele nunca regressou a Buenos Aires, excepto em Agosto de 1961, para uma visita-relâmpago de apenas algumas horas, após uma estada em Punta del Este. A família inteira, tia Beatriz incluída, foi, dessa vez, ao seu encontro à estância balnear uruguaiana. Foi a última vez que o vimos. Na altura, em 1961, Ernesto era ministro da Indústria do Governo cubano e não tínhamos razões para pensar que ele iria combater longe de Cuba. Uma outra carta dirigida à minha mãe, datada de Novembro de 1956, isto é, seis meses após a anterior, era, todavia, premonitória. Ele escrevia: «Quando a doença de que sofro se apodera de nós, creio que se vai exacerbando com o tempo e que só nos larga no túmulo.» Essa doença era o seu desejo ressurgente, ou a sua necessidade, de combater a injustiça.”