“Temos uma dinâmica familiar em que ambos assumimos o papel de pais, a lei só me reconhece a mim, mas o nosso filho não tem dúvidas”, revela Diogo Infante. É a primeira vez que o ator, de 47 anos, faz declarações públicas sobre este assunto. Adotou uma criança em 2011 e no ano seguinte, em entrevista ao jornal Expresso, deu conta da novidade. Até agora, porém, nunca tinha falado abertamente sobre a vida em família e aceita fazê-lo por entender que deve participar no debate público em torno da adoção de crianças por casais do mesmo sexo — numa altura em que o Bloco de Esquerda (BE) apresenta na Assembleia da República um novo projeto de lei sobre o tema.
Em 2011, quando adotou, Diogo Infante era solteiro e já partilhava a vida com Rui Calapez, que haveria de se tornar seu marido. A lei não lhe criou qualquer obstáculo enquanto candidato a pai adotivo. Diogo e Rui casaram-se em outubro do ano passado e se neste preciso momento desejassem candidatar-se à adoção de uma segunda criança, simplesmente não poderiam fazê-lo. É ilegal. São ambos do mesmo sexo e estão casados um com o outro.
No dizer do antigo diretor artístico do Teatro Nacional D. Maria II, é importante legalizar a adoção por casais gay. “Viria consolidar uma mudança de mentalidades, que já se encontra em curso na sociedade portuguesa”, sustenta. “Viria dar a centenas ou milhares de crianças, principalmente as que têm mais de quatro ou cinco anos, a esperança de que mais gente as pudesse adotar e lhes proporcionasse um lar e um futuro.”
A lei do casamento entre pessoas do mesmo, aprovada em 2010 com os votos favoráveis de todos os partidos da esquerda e com forte apoio de muitos ativistas gay, contém a proibição. “As alterações introduzidas pela presente lei não implicam a admissibilidade legal da adoção, em qualquer das suas modalidades, por pessoas casadas com cônjuge do mesmo sexo”, diz o artigo 3º.
A lei das uniões de facto, de maio de 2001, apenas permite aos casais de sexo diferente a candidatura a processos de adoção. E a lei do apadrinhamento civil, publicada em 2009 e regulamentada em 2010, remete para a exclusão das leis do casamento e da união de facto.
Os homossexuais solteiros podem adotar crianças; os homossexuais casados ou unidos de facto não podem. Se o bloqueio não existisse, Diogo Infante e o marido já teriam optado por uma adoção conjunta. “Só não o fizemos porque a lei não o permite”, garante.
Para resolver situações como esta, o BE volta a apresentar na Assembleia da República um projeto de lei segundo o qual “a orientação sexual não é um critério que possa intrometer-se no trabalho dos técnicos da Segurança Social que procedem à avaliação de candidatos e candidatas” à adoção.
O diploma deu entrada no Parlamento a 18 de setembro e baixou à Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias para emissão de parecer, que estará a cargo da deputada do Partido Socialista Isabel Moreira. Neste âmbito, foram pedidos a 1 de outubro pareceres ao Conselho Superior do Ministério Público, à Ordem dos Advogados e ao Conselho Superior da Magistratura.
Não há data para discussão em plenário, mas o BE ainda acredita que ela possa acontecer ainda antes do debate do Orçamento do Estado para 2015, agendado para 30 deste mês.
O texto é quase o mesmo que o partido apresentou em 2011 e que acabaria chumbado pelo PSD, CDS e PCP. “Continuamos a não ter esta questão suficientemente debatida e sedimentada na sociedade”, justificou então o deputado comunista Bernardino Soares.
O projeto de 2011 teve votos favoráveis dos deputados sociais-democratas Teresa Leal Coelho, Miguel Frasquilho e Pedro Pinto, entre outros, mais a histórica exceção vinda da bancada do CDS: Adolfo Mesquita Nunes, atual secretário de Estado do Turismo, também votou a favor.
Entretanto, passaram-se três anos. Cecília Honório, deputada do BE e primeira subscritora da nova proposta, admite que são reduzidas as hipóteses de aprovação, mas tem esperança. “Parte da minha esperança reside nisto: as últimas manobras geradas em torno destes temas deixou mais clara uma posição global da sociedade. Há uma grande disponibilidade para se corrigir esta situação e uma enorme indisponibilidade para maroscas que não têm conteúdo político efetivo.”
A deputada bloquista refere-se à proposta de referendo à coadoção apresentada pelo PSD em janeiro deste ano e cuja pergunta acabaria chumbada pelo Tribunal Constitucional. Foi, aliás, na sequência da ideia de referendo que a deputada Teresa Leal Coelho, em discordância frontal, apresentou a demissão do cargo de vice-presidente da bancada parlamentar social-democrata.
Para Cecília Honório, “o contexto mudou”. “Há deputados e deputadas de vários grupos parlamentares, e no quadro da maioria, com vontade de corrigir a situação e o Bloco tem feito contactos”, adianta.
A proposta, caso venha a ser aprovada, traz uma revolução à sociedade portuguesa. Se a coadoção pretende reconhecer situações familiares já existentes (filho adotivo de um cônjuge passa a ser reconhecido como filho do outro cônjuge), já a adoção gay conjunta permite criar novas realidades familiares.
Mesmo os estudiosos claramente favoráveis à mudança da lei não são capazes de dizer com absoluta clareza que os efeitos da adoção gay seriam positivos. Põem nas suas afirmações a normal incerteza do conhecimento científico e dos métodos de investigação.
É o caso de Jorge Gato, psicólogo e investigador de pós-doutoramento. Dedica-se a esta temática desde 2008 e já este ano publicou o livro “Homoparentalidades: Perspetivas Psicológicas”, baseado na tese de doutoramento que defendeu em 2012 na Faculdade de Psicologia da Universidade do Porto.
Em termos de efeitos psicológicos, a adoção de crianças por casais gay, diz Jorge Gato, pode ser benéfica para crianças e pais. Note-se a expressão “pode”. “Estudos sugerem que a existência de legislação igualitária poderá minorar a margem de influência do preconceito”, afirma.
Eis o raciocínio do investigador:
“A proteção legal dos vínculos existentes entre mães/pais e filhos/as reduz o stress e aumenta o bem-estar das famílias homoparentais. Os filhos destas famílias sentem os benefícios da legislação igualitária:
– a nível prático (facilitação de tomadas de decisão a nível financeiro, educacional e de saúde);
– a nível simbólico (maior reconhecimento e aceitação sociais);
– a nível social (maior respeito pela diversidade e justiça social).”
Sofia Aboim, doutorada em sociologia e investigadora do Instituto de Ciências Sociais nas áreas do género e sexualidade, tem um entendimento idêntico. Mas também ela fala em “possibilidades”. “Qualquer tipo de família poderá eventualmente ser bom para uma criança, desde que as pessoas, enquanto pessoas, reúnam as condições necessárias para a adoção”, afirma.
E se as primeiras vagas de crianças adotadas por casais homossexuais forem vítimas de estigma e discriminação na escola ou na vida social? A socióloga desdramatiza: “Muitos estudos científicos se fizeram quando o divórcio era estigmatizante, tentando provar que crianças filhas de pais divorciados seriam afetadas no seu bem-estar ou no sucesso escolar. Sempre que há uma mudança que pode abalar determinados costumes mais conservadores ou enraizados, há um receio, mas não podemos estar sempre à espera. Não íamos, por exemplo, esperar que uma sociedade deixasse de ser racista para aprovarmos a igualdade das pessoas independentemente da raça ou da etnicidade.”
Pode não parecer, mas a reivindicação da adoção é muito recente e não apenas em Portugal – é uma raridade o microcosmos de Los Angeles, nos EUA, onde desde os anos 70 surgem associações de pais homossexuais.
A adoção e a coadoção fazem parte de um domínio maior que é o da parentalidade, onde também se inclui a filiação natural e a procriação medicamente assistida (fertilização in vitro, inseminação artificial, barrigas de aluguer, etc.). Quando se trata de ver esta temática do ponto de vista de gays e lésbicas é comum utilizar-se a palavra homoparentalidade.
Jorge Gato escreve no seu livro que a “legitimação da homoparentalidade” se deve ao “processo de individualização em curso desde o fim do século XIX” e às transformações sociais da década de 1960, como as lutas feministas, a revolução sexual, as técnicas de procriação medicamente assistida e o movimento de defesa de direitos das pessoas LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgénero). Em Portugal, o assunto ganha forma na segunda metade dos anos 90.
Em 1998, é distribuído em Lisboa um manifesto que entre outros aspetos pede a “não discriminação na adoção”. Os subscritores são a associação ILGA Portugal (formada três anos antes), o Grupo de Trabalho Homossexual do PSR (um dos partidos que dariam origem ao Bloco de Esquerda), a associação Opus Gay e a Abraço.
Em 1999, o BE apresenta uma proposta para permitir a adoção por casais unidos de facto, tendo em conta que estava para breve o alargamento das uniões de facto aos homossexuais. A iniciativa acaba por não ter seguimento e a questão só começa a parecer concretizável a partir de 2000, quando a Holanda se torna o primeiro país do mundo a aprovar o casamento entre pessoas do mesmo sem excluir o direito à adoção (lei que entrou em vigor em 2001).
Nesse ano, ficam claras as resistências da esquerda. A então deputada do PS Maria de Belém Roseira declara ao Diário de Notícias que “não é altura para discutir” a adoção por gays, porque “está em causa não o direito a adotar, mas sim o direito a ser adotado”. A deputada comunista Odete Santos diz que “não há estudos unânimes em relação às repercussões nas crianças.”
O processo vai acelerar-se nos anos seguintes.
A atual proposta do BE é ainda uma resposta à lei portuguesa do casamento gay, de 2010, que criou uma cláusula de exceção no domínio da adoção. O BE ajudou a aprovar a iniciativa, que partiu do governo de José Sócrates, mas, como justifica agora a deputada Cecília Honório, o partido “apresentou logo uma proposta de alteração a essa exceção”.
Os adversários da alteração entendem que gays e lésbicas têm uma influência negativa sobre as crianças. “As referências de um pai e de uma mãe são mais adequadas para salvaguardar e acautelar” os interesses da criança, do que as referências que um casal homossexual pode dar, dizia o parecer que a Ordem dos Advogados foi chamada a dar, em 2011, durante a discussão do diploma do BE. Um parecer subscrito pelo então bastonário António Marinho e Pinto.
Aparentemente, subsiste a ideia de que aumentariam as hipóteses de uma criança vir a formar uma orientação homossexual se vivesse numa família de dois homens ou duas mulheres, uma vez que o potencial hétero e homossexual das crianças seria influenciado pelo modelo familiar.
Jorge Gato rejeita esse ponto de vista: “É um receio que radica na ideia de que é melhor ser heterossexual do que homossexual”, logo, “trata-se de um preconceito”. O psicólogo garante que vários estudos científicos “verificaram que a proporção de lésbicas e gays entre pessoas que foram educadas em contexto homoparental é semelhante à encontrada na população geral, isto é, entre 0 a 10%”.
Ainda baseado em estudos que consultou para a tese de doutoramento, Jorge Gato afirma que “são mais as semelhanças que as diferenças” entre famílias homoparentais e heteroparentais.
A credibilidade deste tipo de estudos é muitas vezes posta em causa, por serem realizados com homossexuais em contextos socioeconómicos favorecidos, o que os protege a eles e aos filhos de muitas formas de discriminação.
O investigador concede: “Dúvidas que se relacionam com questões metodológicas são perfeitamente legítimas.” Mas sustenta o seu ponto de vista. “As limitações em termos da composição das amostras aplicam-se sobretudo aos primeiros estudos com famílias homoparentais, que é um corpo de investigação com cerca de 40 anos. No entanto, na última década, investigações com amostras de maior dimensão e com amostras representativas têm replicado os resultados encontrados nos estudos anteriores.”
O que quase todos dizem estar em causa, apoiantes ou detratores da adoção gay, é o direito das crianças a serem adotadas, não o direito de um conjunto de pessoas a adotar. Entende-se que é esse o espírito do conceito legal “superior interesse da criança”.
Neste aspeto, Cecília Honório apressa-se a explicar que “o diploma proposta não redefine o conceito legal de adoção, antes desbloqueia os impedimentos objetivos que estão noutras leis.” Por seu lado, a socióloga Sofia Aboim diz que “é preciso dissociar as competências parentais da orientação sexual” porque a “orientação sexual não é, de todo, um critério que interfira na capacidade de alguém ser mãe ou pai”.
Quando questionado sobre o porquê de ter decidido adotar uma criança, Diogo Infante dá a entender que se tratou de um projeto fundamental para a sua realização pessoal. “Queria exercer-me como pai, consciencializei que tinha essa vontade e essa predisposição”, responde. “Depois de um período de reflexão em que ponderei várias hipóteses, optei pela adoção porque me permitia simultaneamente proporcionar um futuro a uma criança.”
O ator garante que o atual processo de seleção de candidatos à adoção é “rigoroso e complexo” e que os psicólogos e assistentes sociais que o acompanharam tiveram como “principal preocupação o bem-estar da criança”. “Em nenhum momento me perguntaram a minha orientação sexual, mas fizeram questão não só de saber se eu tinha uma relação estável, como de conhecer todas as pessoas que viriam a fazer parte direta da vida da criança.”
De resto, Diogo Infante não vê diferenças entre a sua vida familiar e a de casais amigos heterossexuais. “As dinâmicas são idênticas, partilhamos diariamente experiências e trocamos conselhos. Creio que uma criança adotada o que procura na nova família é a garantia de que ninguém a vai voltar a abandonar ou a maltratar. Quando a nova realidade lhe devolve autoestima, estrutura e segurança, a criança pode finalmente encarar a vida com esperança. É nesse compromisso de futuro que devíamos estar todos empenhados.”