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José Francisco de Sousa queria alugar uma carrinha Volkswagen pão de forma, “daquelas icónicas, antigas, já vintage”, para ir num fim de semana para a costa alentejana. Começou à procura na Internet e, depois de algum esforço, conseguiu encontrar uma no OLX. Combinou encontrar-se com o dono numa bomba de gasolina. Ele passou-lhe as chaves e José deu-lhe o dinheiro do aluguer. Quando voltou, pensou: “Isto correu bem, mas, e se tivesse corrido mal?”. No fundo, acabou por ser “um aluguer informal entre duas pessoas que nunca se tinham visto, mas que confiaram uma na outra, sem nenhuma segurança ou garantia para nenhum dos lados”, conta ao Observador. Foi aqui que surgiu a ideia de fundar a Shareacar, “o Airbnb dos carros”, como lhe chama — uma rent a car sem ter um único carro. A operar em Lisboa desde março, quer chegar aos 5 mil utilizadores, com mil carros registados na plataforma e 4 mil pessoas a procurar alugá-los, até ao final do ano. Não revelam o número de alugueres mas têm uma meta “ambiciosa”: “entregar” 1 milhão de euros até ao final de 2018.
A Shareacar é um exemplo de uma plataforma de carsharing (partilha de carros) peer-to-peer, isto é, de pessoa para pessoa, que quer permitir a quem tem um carro parado em casa poder rentabilizá-lo, alugando-o a outras pessoas. É um setor que integra o mercado da economia de partilha, um conceito que surgiu há alguns anos com o aparecimento de plataformas como o Airbnb ou a Uber, baseadas na partilha de bens e serviços, e que têm provocado alterações na organização e dinâmica das cidades.
São negócios que, geralmente, permitem transações entre fornecedores e clientes, a partir de uma plataforma tecnológica. “A empresa permite a transação, mas não produz quaisquer bens ou serviços. Esses são produzidos pelos “parceiros” da plataforma, que podem ser freelancers, empreendedores, artesãos”, explica ao Observador Antonin Léonard, cofundador da Ouishare, organização francesa, fundada em 2012, que trabalha na promoção da economia colaborativa.
Na União Europeia (UE), os cinco setores-chave da economia de partilha (alojamento e transporte peer-to-peer, serviços domésticos e profissionais, financiamento coletivo) geraram 28 mil milhões de euros em transações, em 2015. Os números refletem um crescimento muito elevado nos últimos anos: as receitas quase duplicaram de 2014 para 2015 (de 1,8 mil milhões para 3,6 mil milhões de euros). Para 2025, a consultora PricewaterhouseCoopers (PwC) estima que, na UE, vão ser geradas receitas acima dos 80 mil milhões de euros, e quase 570 mil milhões de euros em transações.
“Quero pôr um quadro na parede lá de casa mas não tenho um berbequim. O que é que acontece? Toda a gente nessa situação vai comprar uma máquina. Mas o objetivo é só pôr o quadro. As máquinas em casa têm uma média de utilização de 15 minutos. Toda a gente tem uma máquina quando podia partilhá-la”, exemplifica Jorge Forte, 51 anos, fundador da Booking Drive.
Não seguiu a ideia do berbequim, e, tal como José Francisco, focou-se na ideia de que há muitos carros parados em casa a apanhar pó. A ideia surgiu-lhe há nove anos, mas, na altura, era ainda “muito para a frente montar isto em Portugal”, conta Jorge Forte ao Observador.
“Na altura, fiz um estudo de mercado pelo mundo e só havia uma empresa australiana e outra em Inglaterra, que acabou por fechar”, refere. Decidiu repescar a ideia há dois anos com a entrada do Airbnb, Uber e Cabify em Portugal. A Booking Drive arrancou a 1 de novembro para captação de veículos. Um mês depois, tinha 100 e abriu ao público. Em quatro meses, a empresa conseguiu mais de três mil utilizadores, tem perto de 200 carros na plataforma e chegou aos 300 alugueres.
“O Airbnb dos carros”
Quando José Francisco, 29 anos, teve a ideia de fundar a Shareacar, há dois anos, trabalhava na Unilever como gestor de marca da Axe, e ainda não sabia bem o que era o peer-to-peer car rental. Pediu uma licença sem vencimento à empresa e começou a estudar o mercado das caravanas. “Mas as companhias de seguros nem nos quiseram ouvir”, conta. O mercado “era muito pequeno”, por isso, desistiu da ideia das caravanas e mudou para os carros. “Pensamos que a ideia era completamente inovadora. Em dez minutos no Google, vimos que já havia alguns players espalhados pelo mundo mas nenhum em Portugal”. Por isso avançou, com João Marques Rosa (responsável tecnológico) e Ricardo Ortigão Ramos (responsável financeiro) ao lado.
“O mercado português não deixa de ser relevante e não deixa de ser um bom ponto de partida para atacar o resto da Europa. O turismo cresce sustentadamente e nós vemo-nos como um player que pode contribuir para o enriquecimento da economia de partilha em Portugal”, sublinha. Mas o peer-to-peer car rental é “uma novidade em Portugal e as pessoas começam agora a perceber que podem rentabilizar o carro”, nota.
O transporte peer-to-peer é já o maior setor da economia de partilha da Europa, em termos de receitas, tendo angariado cerca de 1,7 mil milhões de euros em 2015 — quase metade das receitas totais dos cinco setores analisados num estudo da PwC, publicado em abril de 2016.
“Está a haver uma loucura total no que diz respeito à mobilidade e aos transportes. No presente, as pessoas ainda compram carros, as pessoas gastam muito dinheiro com os carros — cerca de 5 mil euros por ano — e o peer-to-peer car rental é uma solução para o presente no sentido de rentabilizar o carro, de fazer algum dinheiro extra. Estamos a posicionar-nos como um negócio do presente”, considera o líder da Shareacar.
José Francisco vê a Shareacar como um “complemento ao Airbnb, tanto pelo lado da oferta, como do lado da procura”. Como? Se os proprietários das casas tiverem carros parados, por exemplo, podem também alugá-los. “Já estive nos Açores, não havia carros para alugar, e quem me alugou o carro foi a pessoa da casa do Airbnb em que fiquei”, conta.
Millennials e a ‘appificação’ do alojamento, do trabalho e das viagens
Alec Ross, um dos maiores especialistas americanos em inovação e que foi, durante quatro anos, consultor sénior para a Inovação da Secretária de Estado Hillary Clinton, escreve no seu livro Indústrias do Futuro que a economia de partilha é o “próximo passo em frente na codificação e da confiança e dos mercados”.
“A economia de partilha utiliza uma combinação de plataformas tecnológicas embaladas sob a forma de aplicações de telemóveis, ciências comportamentais e dados de localização de telemóveis para criar mercados peer-to-peer“, refere.
O americano acredita “não ser coincidência que a economia de partilha tenha levantado voo durante a crise económica”, quando as pessoas, nos Estados Unidos e na Europa, “necessitavam de rendimentos extra”. Assim como não ser coincidência o facto de os fundadores de a maioria destas plataformas pertencerem à geração do milénio, para quem “a ‘appificação’ do alojamento, do trabalho e das viagens é mais inata e permite acreditar na ideia de que a economia de partilha ainda está numa fase incipiente”.
Também a procura é feita por essa geração de nascidos nos anos 80 e 90. Do lado dos donos dos carros, os utilizadores da Shareacar, diz José Francisco, são millennials, lisboetas, que têm um carro em casa, “mas que não têm dinheiro para o usar todos os dias e veem aqui uma forma de o rentabilizarem, de ganharem algum dinheiro extra”.
O conceito, que “tendia inicialmente para a proximidade, entre vizinhos”, é agora diferente, pela procura dos turistas e dos emigrantes, “que foram para fora e venderam o carro, e que quando vêm a Lisboa gostam de circular com mais autonomia”, acrescenta Jorge Forte.
Até ao momento, a Shareacar já investiu cerca de 50 mil euros. Está a fechar uma ronda de investimento para ir além fronteiras continuar esta que tem sido uma “aventura gira”, diz o fundador. Espanha é o mercado que se segue. Depois, França, onde a “cultura do peer-to-peer car rental já está enraizada”, nota. Mas, antes disso, José Francisco quer chegar ao resto do país, incluindo as ilhas. Chegar a estes países no próximo ano também está nos planos da Booking Drive.
Mas, para Antonin Léonard, o “grande desafio” é conseguir escalar estes projetos. “É preciso ter oferta e procura suficientes. E isso é a coisa mais difícil de gerir quando falamos em grande escala”, nota.
Jorge Forte não adianta números de investimento, mas diz que quer lançar, “em breve”, uma app que vai monitorizar toda a condução. “Queremos consolidar-nos, aumentar o número de utilizadores e, de forma muito significativa, a frota, e gerar mais alugueres”, admite.
Ser um “microempresário”
Alec Ross entende a economia de partilha é “uma forma de transformar qualquer coisa num mercado e qualquer pessoa num microempresário”. Neste tipo de negócio, as plataformas de aluguer são um mercado e os proprietários dos carros microempresários. São eles quem define o preço do aluguer. A Shareacar cobra uma comissão de 30% por cada transação e oferece um seguro da Allianz, contra terceiros e danos próprios. Durante o aluguer, o seguro dos donos dos carros fica suspenso.
A Booking Share cobra 20%. O utilizador escolhe ainda uma franquia de 2% ou 4% do valor da Eurotax (avaliação do veículo) para o caso de haver algum acidente ou avaria. O aluguer dos veículos está segurado pela Fidelidade.
Para alugar um carro nestas plataformas, tem de se registar no site, enviar a carta de condução e o cartão de cidadão. Para quem quer registar o próprio carro, tem ainda de enviar o documento único automóvel, comprovativo da inspeção periódica e do seguro. Depois de aprovado pelas plataformas, pode começar a alugar o carro.
A partir daí, “funciona como um marketplace tradicional” em que alguém pede para alugar o carro, faz o pagamento online e depois há um encontro pessoal de troca de chaves. Não há custos em ter o carro registado na plataforma, nem por alugar.
A Shareacar só aluga ao dia. A duração do aluguer é definida com o dono. As grandes concorrentes destas plataformas são as grandes empresas de aluguer de carros, refere José Francisco. “Elas faturam 500 milhões de euros em Portugal e têm 60 mil carros. É esse mercado que nós queremos atacar”, admite.
“Negócio da confiança”
Para alcançar as previsões — receitas acima dos 80 mil milhões de euros, na UE, em 2025 –, os negócios da economia de partilha vão ter de superar as questões de confiança e da cultura de partilha com que se deparam atualmente.
“Os portugueses ainda têm uma cultura de carro próprio muito enraizada e queremos desmistificar isso. Há que fazer ver às pessoas que isto faz sentido, que podem ter confiança”, nota José Francisco.
Em 2016, uma sondagem do Eurobarómetro revelou que mais de metade dos cidadãos da UE sabiam o que é a economia colaborativa e que uma em cada seis pessoas já era utilizadora.
Em Portugal, mais de quatro em cada dez entrevistados, que já tinham ouvido ou visitado plataformas colaborativas (45%), disseram não confiar em transações feitas na Internet, assinalando ser esse um dos principais problemas deste tipo de plataformas.
“O negócio do e-commerce é o negócio da confiança. O Airbnb, quando foi lançado em 2008, não teve alugueres durante meses, até os proprietários se aperceberem que tinham de ir para a rua sentir o pulsar das pessoas para entenderem porque é que não alugavam. Hoje estamos a falar de algo que fatura 20 mil milhões. Em Portugal já passou os mil milhões de euros em termos de alugueres”, explica Jorge Forte.
Antonin Léonard acredita que Portugal é um país “muito interessante” para acolher projetos inovadores. “Além da startup vibe, penso que Lisboa e Porto estão muito bem posicionados para se transformarem em centros de referência para freelancers na Europa”, refere, adiantando que está nos planos da organização trazer o OuiShare Fest (principal evento OuiShare, que este ano vai decorrer de 5 a 7 de Julho, em Paris) para o Porto ou Lisboa, no próximo ano, cujo tema vai ser o futuro do trabalho.
“Na economia de partilha, ninguém partilha nada”
“Podemos chamar-lhe economia de partilha, mas não nos podemos esquecer do cartão de crédito”, escreve Alec Ross, admitindo que “na economia de partilha, ninguém partilha nada”.
Para Antonin Léonard, este tipo de plataformas permite “formas mais diversas de empreendedorismo e de criação de valor económico”. Mas não são só vantagens. “Há muito poucos projetos que são realmente bem sucedidos, e os que são tendem a tornar-se monopólio, o que pode levantar outras questões”, sublinha.
Mas se os negócios enquadrados na economia de partilha abrem caminho à criação de novos postos de trabalho e de mais escolha para os consumidores, também levantam outras questões: os direitos dos trabalhadores, impostos e proteção do consumidor, num mercado em que a regulamentação é ainda uma dor de cabeça.
“Na maioria dos casos, os negócios de economia de partilha são apenas negócios. Mesmo que exista uma ideologia subjacente, não se trata de partilhar ou criar uma comunidade à volta da mesa de pequeno-almoço: é a teoria económica do neoliberalismo, encorajando a livre circulação de bens e serviços, num mercado sem regulamentação governamental”, nota o autor de Indústrias do Futuro.
Antonin Léonard defende que os governos devem ter uma papel mais ativo na regulamentação deste tipo de serviços, especialmente ao nível das cidades. “Vemos novas formas de alianças e de redes de cidades surgirem para enfrentarem os desafios dado o crescimento destas plataformas. As próprias cidades também poderão criar plataformas alternativas no futuro”, sustenta.
“A maioria das pessoas pensava, há uns anos, em alugar a própria casa? Nunca. Eu alugar a minha casa, a minha cama, a turistas? Estava fora de hipótese, nem pensar. E hoje toda a gente aluga a própria casa. É um novo paradigma”, nota o líder da Booking Drive.
Para Alec Ross, a economia de partilha vai crescer de modo a que “todas as forças de trabalho sejam construídas com base em mercados peer-to-peer, em que toda a gente, dos engenheiros de topo aos empregados de limpeza, vende os seus serviços online, aniquilando os caçadores de talentos e as agências de trabalho de temporário”.
Em março, Taavi Rõivas, antigo primeiro-ministro da Estónia — o país mais digital do mundo — disse, em entrevista ao Observador, que acreditava que a profissão de taxista ia deixar de existir daqui a 10, 20 anos.
“Pode demorar décadas, como pode demorar menos. Não sei, mas sei, com toda a certeza, que isto vai acontecer. E que vai haver cada vez menos carros nas mãos das pessoas. Se viveres numa cidade, a verdade é que não precisas de ter um carro. Precisas de um serviço que te leve de um sítio para outro e de um carro que pode estar a ser conduzido por si próprio”, notou Taavi Rõivas.
“Acredito que a profissão de taxista já não exista daqui a 10 anos”
O que abre caminho à indústria de carros autónomos (Taavi Rõivas chegou mesmo a convidar a Uber e a Tesla a utilizar a Estónia como mercado teste para os seus veículos) e a novos modelos de negócio: por exemplo, ser um operador de carros autónomos, nota José Francisco. Ao mesmo tempo, vão ser criados mais empregos no mundo da digitalização, acrescenta Jorge Forte.
Sobre o futuro da economia de partilha, o líder da Ouishare acredita que serão lançados novos projetos em setores como a saúde, energia, economia circular e novas plataformas para freelancers e que as “empresas mais tradicionais vão acabar por lançar as próprias plataformas ou colaborar com startups”. Se economia de partilha aparece muitas vezes associada ao empreendedorismo social — apesar do principal objetivo das plataformas não ser ter impacto social ou ambiental — isso “pode ser um ativo muito forte para as plataformas construirem relações pacíficas com as cidades”, sublinha Antonin Léonard.