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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Fahrenheit 451: não é só a floresta que arde, é também o conhecimento científico

Tal como na obra Fahrenheit 451, em Portugal relatórios técnicos, livros e artigos científicos sobre incêndios florestais são aparentemente “queimados” e menosprezados no processo de decisão política.

Em 1954 um relatório da FAO realça o quase perfeito dispositivo de prevenção e combate a incêndios, gerido pelos Serviços Florestais (SF), que defendia a floresta pública e comunitária portuguesa. O relatório chamava a atenção para o facto da defesa das matas privadas (a larga maioria) ser executada pelos proprietários e populares, sem equipamentos adequados, técnica ou coordenação. A desorganização agravava-se em incêndios de maior dimensão, a que podiam ocorrer unidades militares, alguns corpos de bombeiros e os SF. Dada “a riqueza e importância estratégica para o país” (estávamos em 1954!) recomendava-se que se investisse na gestão das matas privadas e se executassem medidas preventivas, expandindo a este património privado o dispositivo que protegia as matas sob gestão pública.

Em 1981 a FAO e o Banco Mundial de novo recomendavam a existência de um sistema profissional de prevenção e combate a fogos, aproveitando as competências técnicas que existiam acumuladas em mais de 100 anos de experiência.

Após grandes incêndios na década de 50 e 60 (como o de Sintra, onde morreram 25 soldados, em 1966) reuniram-se comissões ministeriais e publicaram-se estudos técnicos, tendo o Estado iniciado a extensão do dispositivo público dos SF à floresta privada, alargando em 3km o raio da sua intervenção para além das matas públicas (20% do país e quase 40% do território a norte do Tejo), também expandindo as redes viária, de vigilância e de meios aéreos. Publicou-se o primeiro diploma legal que definiu o sistema de proteção das florestas, o DL 488/70. Porém, provavelmente devido à falta de recursos financeiros (eram então absorvidos pela guerra colonial cerca de 1/3 do PIB) e à complexidade em atuar na propriedade privada, a resposta do Estado foi lenta, incompleta e insuficiente. Com o 25 de Abril de 1974, outras prioridades de desenvolvimento económico e social surgiram.

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Contudo, em 1981 a FAO e o Banco Mundial de novo recomendavam a existência de um sistema profissional de prevenção e combate a fogos, aproveitando as competências técnicas que existiam acumuladas em mais de 100 anos de experiência.

Na sequência das áreas ardidas no final da década de 1970 o poder político, pressionado para obter resultados no curto prazo, encetou uma transformação populista e radical. Em vez de expandir e reforçar um sistema profissional a todo o território (como os estudos referidos recomendavam e outros países, como Espanha, o faziam), o Estado retraiu a sua esfera de atribuições, limitando-se à sensibilização, à detecção e à gestão de áreas públicas e comunitárias.

Excerto de artigo de opinião de 1986 do Engenheiro Lino Teixeira, administrador florestal de Arganil onde já se alertava para os problemas que só se têm agravado. Os avisos são antigos.

Doravante, o DL 327/80 atribui aos municípios a responsabilidade de proteção civil e aos privados a gestão dos combustíveis e aceiros. Na área do combate, através da dupla tutela dos recém-criados Serviço Nacional de Bombeiros e Serviço Nacional de Proteção Civil, é dinamizada uma parceria público-privada com as associações humanitárias de bombeiros voluntários, atribuindo-lhe o exclusivo do combate, apesar da sua notória inexperiência e impreparação.

Sem conhecimentos técnicos e apesar das melhores intenções, o sistema evoluiu numa perversa aliança entre municípios e bombeiros, tutelada e financiada pelo Estado, reforçando a cada ano o combate (meios materiais e pagamento de deslocações e de equipas de bombeiros voluntários), em detrimento da prevenção.

Optou-se assim por municipalizar a coordenação da prevenção e também o combate, uma vez que em cada concelho e em muitas freguesias iam surgindo corpos de bombeiros, aliás em parte dependentes das autarquias. Sem conhecimentos técnicos e apesar das melhores intenções, o sistema evoluiu numa perversa aliança entre municípios e bombeiros, tutelada e financiada pelo Estado, reforçando a cada ano o combate (meios materiais e pagamento de deslocações e de equipas de bombeiros voluntários), em detrimento da prevenção.

Após os incêndios de 1991 e 1995, um outro relatório técnico (Stauber), realça a necessidade de uma estrutura profissional que se dedique à prevenção e ao combate. A Lei de Bases da Política Florestal (Lei n.º 33/96), aprovada por unanimidade e em ainda em vigor, prevê no artigo 10.º, n.º 2, alínea e) uma organização com essas características. Mas, ao mesmo tempo, o Governo decide desmantelar os seus Serviços Florestais centenários! Apesar da redução de importância económica e da expressão territorial da agricultura e do aumento da relevância da floresta e das suas funções ambientais, degradou-se o nível do serviço público (outrora operacional e eficaz), e a máquina burocrática focou-se na aprovação de planos e estratégias virtuais e na distribuição dos dinheiros que chegavam de Bruxelas.

Com o desordenamento da edificação no território, a expansão peri-urbana, o fim da agricultura de subsistência que defendia as aldeias dos fogos, a ausência de gestão activa dos espaços florestais e a desorganização silvopastoril, os incêndios foram ficando cada vez maiores, o que exigiu que o sistema se especializasse nas tarefas de defesa das populações, sem nunca conseguir internalizar e formalizar as competências e standards internacionais de combate aos incêndios florestais.

Em 2003, o sistema colapsa e é lançada uma Reforma Estrutural do Sector Florestal, que procura reunir o compromisso dos agentes, reforçando o papel da prevenção que fica inscrito no novo diploma que define o sistema (DL 156/2004). Em 2005, no âmbito dos estudos técnicos entretanto encomendados pelo Estado à universidade, a proposta técnica do Plano propõe a criação de uma organização unificada que execute a prevenção e também combata incêndios (na linha do que constava da dita Reforma Estrutural).

Outros estudos recomendaram a profissionalização do sistema que deveria proteger a floresta, nomeadamente, relatórios norte-americanos (2003 e 2004), o estudo de 2005 da COTEC (de iniciativa presidencial) e um relatório de peritos chilenos no mesmo ano. Mais uma vez e pressionado para obter respostas no curto prazo, após o desastroso Verão de 2005, o Governo redistribuiu as responsabilidades por três instituições (ICNF, GNR e ANPC) e reforçou a dimensão da proteção civil, conferindo aos municípios mais poderes, nomeadamente a aplicação de coimas a quem não limpar em torno das habitações (o que se viria a revelar inútil, já que os autarcas mostraram uma eficácia quase nula).

Com gestão ou sem gestão, com montado de sobro ou carvalhal, com eucalipto, pinho ou áreas protegidas, tudo arde, à medida que a proteção civil vai relegando para a 4.ª prioridade a defesa dos espaços florestais.

Apesar do reforço substancial de meios operacionais e orçamento, do qual resultou a melhoria na eficácia do ataque inicial, de 2010 a 2016 são recorrentes os grandes incêndios. Com gestão ou sem gestão, com montado de sobro ou carvalhal, com eucalipto, pinho ou áreas protegidas, tudo arde, à medida que a proteção civil vai relegando para a 4.ª prioridade a defesa dos espaços florestais. Nestes incêndios, e sem a presença do entretanto extinto Grupo de Analistas e Utilizadores de Fogo, mais uma vez se evidenciam as faltas de conhecimento técnico e capacidade organizacional para grandes ocorrências.

O nosso atraso em adoptar as melhores práticas ressalta quando comparamos o decréscimo de área ardida (medida pela incidência do fogo – área ardida total/área florestal) que países também expostos ao êxodo rural, à falta de gestão florestal e ao agravamento meteorológico conseguiram como Espanha, França, Grécia e Itália. Depois das propostas de 1954, 1965, 1981, 1996 e 2005 que recomendam um dispositivo integrado de prevenção e combate de raiz florestal, o que impede o Estado de assegurar a proteção do maior recurso estratégico nacional? Para mais um recurso que suporta 2% do PIB, mais de 10% das exportações, distribui riqueza por milhares de proprietários e operadores silvo-industriais e que contribui para exportar, em valor, o suficiente para pagar os bens alimentares que anualmente importamos? Como no filme de Truffaut (baseado no romance de Ray Bradbury), estamos alienados e ninguém se importa que o conhecimento impresso nos livros seja queimado a 451º Fahrenheit, a temperatura a que arde o papel? É esta a sociedade do conhecimento?

A floresta e os seus proprietários florestais não são desculpa ou a causa. São vítimas de abandono e de políticas públicas

Paulo Cunha/LUSA

As soluções possíveis aparentam estar bloqueadas no status quo de um sistema de proteção civil baseado no voluntariado e na fragmentação operacional e administrativa do poder local. A opinião pública, largamente não esclarecida, é levada a acreditar, erradamente, que um problema complexo se resolve com soluções simples, isto é, se houver menos ignições, se houver melhor detecção e mais meios aéreos e, ultimamente, se houver menos eucaliptos!!

Apesar de ineficaz e ineficiente, o sistema – que em 2017 volta a colapsar – “evoluiu na continuidade” com acréscimos marginais decrescentes, renovando e consumindo cada vez mais recursos públicos e com piores resultados. Em Pedrógão o sistema de proteção civil (nacional e municipal) não soube sensibilizar a população, não assegurou que as faixas em torno das habitações e estradas estivessem limpas e, por fim, não foi capaz de ler o contexto onde se estava a desenvolver o fogo (porque não tem essas competências técnicas). Em resumo: não soube reagir adequadamente.

A floresta e os seus proprietários florestais não são desculpa ou a causa. São vítimas de abandono e de políticas públicas que, com a justificação da “defesa da floresta”, apenas servem para financiar outros setores e interesses instalados.

Como no filme de Truffaut (baseado no romance de Ray Bradbury), estamos alienados e ninguém se importa que o conhecimento impresso nos livros seja queimado a 451º Fahrenheit, a temperatura a que arde o papel? É esta a sociedade do conhecimento?

Para o futuro, e realçando as alterações climáticas e a necessidade de proteger as pessoas e a floresta, há que reconhecer os erros e transformar o sistema. Só evoluir não basta, como os mais de 4 milhões de hectares queimados desde 1980 assim o demonstram! À proteção civil o que é da proteção civil. À floresta o que é da defesa da floresta. Dada a natureza do problema (abandono de todo o espaço rural) é necessário ter capacidade para coordenar e executar políticas públicas de longo prazo (na agricultura, energia, ordenamento, floresta e ambiente) que contribuam para reduzir o risco de incêndio, garantir a efetiva execução de programas de redução da carga combustível em escala e em locais críticos e ter um sistema de combate que saiba aproveitar as oportunidades criadas, sendo eficaz na manobra dos meios mobilizados para os grandes incêndios florestais.

A complexidade das causas do problema só pode ser abordada (seja na prevenção, seja no combate) através do uso intensivo do conhecimento científico e técnico que existe nas universidades e é operacionalizado pela engenharia portuguesa, para cada região, mas isso exige o comprometimento do poder político com programas de longo prazo, enfrentar os interesses e a consequente atribuição de meios e responsabilidades. Estarão os partidos representados na Assembleia da República disponíveis para isso?

Esperemos que desta vez haja lideranças que, partindo do conhecimento técnico e científico, saibam ler o tempo e os verdadeiros desafios do país e consigam superar as resistências e os interesses do curto prazo, que desde há décadas impedem a defesa das florestas e a salvaguarda das pessoas e lançam para uma inexorável degradação mais de 2/3 do nosso território. Esperemos que a discussão das grandes opções do Plano e do correspondente orçamento de Estado, dê já um sinal de mudança e compromisso com a transformação que urge iniciar.

Tiago Oliveira é doutor em Engenharia e João Pinho é mestre em Planeamento Regional e Urbano

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