Até há bem pouco tempo, o que se sabia acerca do Paganismo moderno (ou neo-paganismo) em Portugal resumia-se a suposições. Quem são os pagãos portugueses, o que entendem por Paganismo ou por comunidade pagã eram algumas das questões para as quais não havia resposta. Até que Mariana Vital e Mário Pinto decidiram fazer alguma coisa para mudar isso: em 2017, os dois investigadores da Universidade Lusófona decidiram levar a cabo o primeiro inquérito sobre Paganismo moderno em solo português, procurando “reunir as características do que o indivíduo reconhecendo-se pagão e residente em Portugal, perceciona relativamente ao conceito de Paganismo, Comunidade Pagã e Associativismo”. As informações que conseguiram reunir a partir das respostas de 139 inquiridos permitiu-lhes saber, em traços gerais, quais as principais características daqueles que se dizem pagãos e se identificam com os valores do pagãos. O inquérito, pioneiro em Portugal, pretende também ser uma porta de entrada do Paganismo numa Academia dominada pelo estudo de outros fenómenos religiosos.
Foi Mário que “desafiou” Mariana. “Ainda tenho a SMS!”, disse, virando-se para a investigadora, sentada ao seu lado num restaurante chinês no Campo Grande, onde fica a Lusófona. Enquanto ela se ria, Mário explicou que foi “no início” do ano passado, quando estava a ler alguns trabalhos — nomeadamente um estudo canadiano e uma investigação feita pela académica Melissa Harrington, da Universidade de Cumbria — “que tinham sido feitos com base em estudos feitos sobre as populações pagãs locais” que se lembrou que talvez não fosse má ideia fazer algo do género em Portugal. Até porque “nós, por cá, não sabemos nada [sobre os pagãos portugueses]” — “sabemos zero, mas especulamos muito”. Farto de ouvir dizer “os pagãos são isto, os pagãos são aquilo”, Mário decidiu fazer alguma coisa: “Então se não se sabe nada, vamos procurar saber!”
Licenciado em Engenharia pelo Instituto Superior Técnico, a área de formação de Mário Pinto não está ligada às Ciências Sociais. Apesar de trabalhar há já vários anos com grupos de denominação pagã e de até já ter sido responsável por um estudo sobre o Paganismo em Portugal, no já longínquo ano de 1994, Mário não é um homem da Academia. E é aqui que “entra a parte da Mariana”. Licenciada em Ciências da Educação pelo Instituto de Educação da Universidade de Lisboa, é atualmente aluna do Mestrado de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona, área em que trabalha “sensivelmente desde 2013 ou 2014”. Coordenadora do Diálogo Interreligioso Europa da Pagan Federation International (PFI) e do Círculo Comunitário da mesma associação, trabalha com grupos associados ao Paganismo há cerca de oito anos e desde que entrou para a Lusófona que a ideia é a mesma: “Estou aqui para trabalhar o diálogo interreligioso, para fazer a paz no mundo e trazer o Paganismo para a Academia”, garante sem papas na língua, acrescentando que sempre foi “muito transparente nestas coisas”. E é por isso que sempre procurou desfiar os seus “pares” nesse sentido.
“O facto de o Paganismo não ter quase voz na Academia, significa inevitavelmente que não há investigadores a mexer no tema”, explicou Mariana Vital. Além disso, “a comunidade não se abre a isso”. “Trabalho nesta área há três, quatro aninhos e as comunidades geralmente trabalham em parceria. Quando entrei, já com o vínculo da PFI, facilitei um bocadinho isso porque posicionei a associação e pu-la, de repente, a receber emails, a ser convidada para aparecer em momentos de diálogo religioso, da harmonia interreligiosa, e por aí em diante.” Por essa razão, quando Mário a “desafiou”, Mariana Vital não pensou duas vezes: ”Vamos lá criar o Grupo de Estudos do Paganismo em Portugal!”, disse sem hesitar. “Já tinha uma vontade muito grande de fazer uma coisa mais séria. Já tinha pensado em palestras, em ciclos de conferências, mas com esta ideia do Mário consegui juntar o núcleo duro a esta minha vontade. Pegou brilhantemente.”
A formação de Mariana e a sua integração num centro de estudos académico permitiu dar ao estudo a “base consistente” necessária para avançarem. “Disse logo que não ia fazer uma coisa destas em nome próprio”, admitiu Mário Pinto. “Qualquer pessoa que olhasse para o inquérito ia perguntar: ‘Mas quem é este gajo?! Tenho mais o que fazer!’.” “E para quê? Para que é que o Mário quer saber a opinião das pessoas sobre o Paganismo?”, questionou Mariana, explicando que “não é o Mário” que quer saber, “é a Academia”. “E isto tinha também de ser muito claro. Aliás, o texto introdutório do inquérito não foi feito por mim, nem pelo Mário. Foi feito pelo Paulo Mendes Pinto.” Coordenador da Área de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona, Paulo Mendes Pinto é “muito mais conhecido” do que Mariana Vital ou Mário Pinto e, “numa rápida pesquisa, consegue-se perceber quem é que ele é e o que é que anda a fazer”. Essa foi, desde o início, uma das principais preocupações dos dois investigadores: utilizar “o máximo de referências” possíveis para poderem “assegurar às pessoas” que o inquérito “era efetivamente um estudo, que ia ter continuidade e que era feito por uma entidade séria”. Não era apenas um quiz que andava a circular nas redes sociais.
“Isto foi tudo construído partindo do princípio de que precisávamos de nos vincular a uma entidade que pudesse dar resposta a esta necessidade e que deixasse bem claro às pessoas e às associações que iam participar que não se tratava de um projeto de ensino, de formação ou pedagógico daquilo que é ser-se pagão, mas de um exercício de análise daquilo que se diz pagão”, frisou Mariana Vital, garantindo que não é a ela, a Mário ou a outro investigador qualquer que cabe “avaliar quem é pagão e quem não é”. “Cabe-nos avaliar e analisar as respostas de quem se diz pagão. Mais nada.” Enquanto exercício académico, o inquérito teve apenas como objetivo reunir a opinião de quem se diz pagão sobre o Paganismo em Portugal. E essa é, para Mário e Mariana, a “riqueza” do projeto e também a sua “salvaguarda”. “Seria muito fácil agarrar na definição de Paganismo, pôr um a, um bê e um cê nas variantes e perguntar ‘para si, o que é que é ser-se pagão?’”, mas não foi isso que os dois investigadores fizeram. “Tivemos este trabalho de 40 perguntas.”
O livro é a natureza
O inquérito “Percepção do Paganismo em Portugal” foi realizado através da plataforma de questionários do Google entre 1 de maio e 10 de junho de 2017. Ao todo, responderam às perguntas colocadas 139 pessoas, que tiveram acesso ao questionário através de organizações e instituições que se identificam com a cultura e o culto do Paganismo. A partir das suas respostas, Mariana Vital e Mário Pinto conseguiram traçar um primeiro perfil de quem se diz pagão em Portugal. “O estudo de 2017 diz que os três princípios que caracterizam o que é ser-se pagão em Portugal são: haver divindades masculinas e femininas, a natureza ser sagrada e haver uma missão de sustentabilidade da natureza, e ser-se politeísta”, valores que não surgem “necessariamente em simultâneo”, explicou a investigadora da Área de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona, acrescentando que é esta a resposta que agora costuma dar sempre que alguém lhe pede uma definição de um conjunto de crenças tão variado que se torna difícil de definir. Mas essa é, em boa verdade, a grande beleza do Paganismo: pode ser aquilo que cada um entender que é e não tem necessariamente entendido como um fenómeno estritamente religioso.
No inquérito de Mariana e Mário, mais de metade dos inquiridos admitiu que, para si, o Paganismo é “uma filosofia de vida”. Apenas 36,7% definiu Paganismo como “um termo genérico para várias religiões”. Pode parecer contraditório, mas não tem de o ser. E Mariana Vital e Mário Pinto fazem questão de se afastar de qualquer juízo de valores: “Se [essas pessoas] se dizem pagãs, não temos autoridade nenhuma para dizer o contrário”. “Se perguntarmos a esta gente toda aqui quem é que é cristão, a maioria põe o dedo no ar. Mas quais é que são realmente praticantes?”, exemplificou Mário Pinto. “São porque são. Para eles, aqueles valores fazem sentido. Existe muita gente dentro do Paganismo que entende que os valores pagãos fazem sentido para as suas vidas”, frisou. “Até há pagãos que não aceitam divindades”, acrescentou Mariana. “Só aceitam a natureza como sagrada. Isso é panteísmo. Acho que a questão aqui é se uma pessoa acredita e sente. O que interessa é que faça sentido. Não temos autoridade nenhuma — nem temos pretensão disso — para dizer que é mais ou menos válido chamar pagã a uma pessoa quando ela se considera pagã. Ela alinha-se no sistema dos valores e princípios pagãos e vive-os à sua maneira.”
Em termos de referências, os dois investigadores puderam concluir que o que caracteriza um pagão em Portugal é sobretudo “a sua visão pessoal”, isto é, “a sua relação pessoal com aquilo que é a experiência do Paganismo”. As “experiências pessoais” foram, aliás, uma das respostas mais dadas à pergunta relacionada com a procura de informação — 63% dos inquiridos classificou-as como “muito útil”. Contudo, na procura por conhecimento, são os livros que desempenham o papel principal. Mais de 80% dos inquiridos admitiu que as obras escritas foram importantes no seu caminho de descoberta da religião pagã. E isso reflete-se noutros aspetos da sua vida espiritual — quando questionados sobre a procura de informação, 75,6% classificou a “literatura especializa” como “muito útil”. Esta foi a taxa mais alta de resposta a esta pergunta. Para Mariana, estes dados mostram claramente que é dada uma grande importância ao “conhecimento que se manifesta em livros, em cultura literária e em especialistas”. “O que é muito interessante”, acrescentou a investigadora. “Há claramente uma noção de seriedade quando se fala de livros”, que servem para validar a experiência pessoal e com terceiros. Outra ideia transversal é a do culto, veneração e respeito pela natureza. “Não há noção de Paganismo sem natureza”, afirmou Mariana. “É uma das camisolas que o Paganismo veste e que mais depressa aparece — a noção de sacralização da Terra.”
Esta veneração da natureza acaba por ser uma porta de entrada para muitos. “Se encararmos a natureza como mãe, é muito fácil fazer o salto para deusa”, exemplificou a investigadora da Universidade Lusófona. Porém, isto não significa que todos os pagãos sejam panteístas. “Adoro aquela frase, que foi alguém do norte que disse: ‘Se tens uma dúvida, pergunta a uma árvore’”, disse Mariana. “A ideia é a de que o livro é a natureza. O livro é a criação. Se tiveres um problema na tua vida — humana, individual, micro —, vai à procura no macro. É isto o princípio. Significa que está tudo não só aberto a uma interpretação, como também que está tudo ligado. Há uma certa dinâmica, mas também dificulta se andarmos à procura de uma descrição fechada, de uma matiz específica, porque vemos que há várias. Isto é uma característica do Paganismo: vai-se manifestar em várias cores, que vão encontrar formas de se encaixarem umas nas outras.”
Esta fluidez de conceitos parece ser uma das características que mais apela àqueles que se descrevem como pagãos. “Há uma palavra que os pagãos usam muito e que é claramente importante: liberdade”, afirmou Mariana Vital. “A sensação de liberdade de crença, que também está muito ligada a esta questão da natureza, do corpo humano enquanto expoente máximo de relação com o mundo. A liberdade é muito cara aos pagãos e prova disso é a quantidade de pessoas que disse que, se tentarmos definir Paganismo, estamos a matar o espírito do Paganismo.”
A estes pagãos, Mário chama-lhes, em jeito de brincadeira, “pagãos anarquistas”, porque acreditam que “qualquer tentativa de definir o que quer que seja é um atentado à sua liberdade individual”. Mas tal como existem vários tipos de correntes dentro do Paganismo moderno, também existem vários tipos de pagãos, como mostra o inquérito “Percepção do Paganismo em Portugal”. “O que temos aqui vai de uma ponta à outra” do espectro e inclui também aqueles que preferem um Paganismo mais estruturado, um culto com uma determinada regularidade, como frisou Mário, explicando que estes são aqueles que seguem “uma determinada linha, uma determinada tradição, com determinados deuses, para os quais existem determinados atos de culto e rituais associados”, não considerando como pagãos aqueles que não o fazem.
Uma comunidade de anónimos
De acordo com o inquérito “Percepção do Paganismo em Portugal”, a maioria dos pagãos em Portugal são mulheres, entre os 20 e os 40 anos, com habilitações académicas acima da média e uma tendência demarcada para os cursos na área das Ciências Sociais (50%), sobretudo relacionados com História. O Culto da Deusa (todas as religiões pagãs reconhecem a existência de uma divindade feminina, com origem no culto ancestral da deusa-mãe), as Tradições Celtas e o Wicca — três dos muitos caminhos que existem dentro do Paganismo modernos —, que remonta aos anos 40 quando as formas sobreviventes de adoração pré-cristã foram descobertas pelo britânico Gerald Gardner, como explica o site da PFI Portugal, são as vertentes mais praticadas em Portugal. “A primeira leva do Wicca surgiu há umas décadas e depois deu origem a uma segunda que começou a prestar mais atenção às tradições do passado, há mitologia, os diferentes cultos, sejam celtas ou nórdicos. E agora, ao que me parece, é o que está a crescer a toda a força — as pessoas começam a ir mais para aí. O que vão buscar é sobretudo a mitologia, as lendas, os costumes populares”, explicou Mário Pinto.
Existe ainda uma percentagem significativa de inquiridos que admitiu conhecer e interessar-se pelos Cultos Nórdicos, que seguem a mitologia nórdica e os seus muitos deuses e deusas. Pode parecer estranho tendo em conta a realidade portuguesa, mas os dois investigadores acreditam que faz todo o sentido porque trata-se de um conjunto de tradições que “vai bater em sítios muito comuns, pelo menos na vertente tribal”, explicou Mariana Vital. Para Mário Pinto uma das “conclusões engraçadas” do estudo é a de que “muitas das [vertentes mais] referidas são também aquelas em que a prática pode ser o que nós quisermos”. “Há um enorme grupo que se sente à vontade com tradições que pode ser eles próprios a definir — como é que a quer praticar.” E depois surgem “o grupo definido de tradições estabelecidas”, como o Wicca ou o Druidismo.
A maioria dos 139 inquiridos por Mariana Vital e Mário Pito reside em Portugal continental, sobretudo na área da Grande Lisboa (48,2%), e uma pequena percentagem é da ilha da Madeira (0,7%). Não houve nenhum açoriano a responder ao questionário, apesar de os dois fundadores do Grupo de Estudos do Paganismo em Portugal — associado ao Centro de Investigação em Cosmovisões e Mundivivências Espirituais e Religiosas da Área de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona — terem tido conhecimento da existência de, pelo menos, um grupo a trabalhar no arquipélago. É, aliás, muito provável que os números relativos à distribuição geográfica não sejam representativos da realidade portuguesa. “Tivemos muita dificuldade em conseguir estes 139 e do norte não tivemos quase ninguém”, afirmou Mariana. “Tendo em conta aquilo que sabemos de grupos de Paganismo lá em cima, isto significa que não conseguimos aceder a eles. Não conseguimos chegar aos aquários em que eles estavam.”
Essa lacuna em termos de distribuição geográfica não passou despercebida aos que assistiram à apresentação dos primeiros resultados do inquérito na Casa do Fauno, em Sintra, em novembro passado. “Houve pessoas que nos cobraram falhas no inquérito. ‘Porque é que não têm quase ninguém do norte? Porque é que não têm ninguém nos Açores?’. Explicámos da melhor forma que pudemos que tem a ver como a divulgação do inquérito, com os nossos recursos.” A maioria das associações, o principal meio de contacto com os inquiridos, está sediada na zona de Lisboa e, tanto quanto se sabe, não há nenhuma que esteja sediada no Porto ou que trabalhe noutras zonas do norte do país. Além disso, Mariana Vital e Mário Pinto acreditam que existem alguns grupos de denominação pagã que “querem continuar fechados”.
“Não querem que os encontrem nem querem encontrar outros”, frisou Mário, para quem a distribuição geográfica espelhada pelo inquérito “não bate certo com as notícias” que às vezes surgem de iniciativas em outras localidades. “Houve nichos a que não se chegou. Provavelmente encontram-se, comunicam e estão metidos em canais que nós não conhecemos. Basta terem um ou dois grupos do Facebook fechados, estarem nesses e não estarem noutros”, referiu ainda Mário. E isso torna tudo muito mais complicado.
O facto de muitos pagãos preferirem associar-se a grupos online e manter um contacto apenas virtual com pessoas com interesses semelhantes aos seus é aparentemente contraditório porque “uma das grandes motivações e atrações que muita gente encontra no Paganismo tem justamente a ver com esse aspeto tribal, de um clã, uma comunidade especial”. “E depois há essa contradição mas, hoje em dia, as comunidades não tem de ser propriamente físicas”, explicou Mário Pinto. Até porque a Internet potencia a troca de impressões entre pessoas fisicamente distantes mas que partilham um ponto em comum. “Se calhar falam todos os dias com alguém que está na Noruega porque têm Odin [o “pai” dos deuses nórdicos] como ponto comum”, exemplificou Mariana Vital, que coordena juntamente com dois norte-americanos e um escocês um grupo de reconstrucionismo (abordagem ao Paganismo que procura estabelecer antigas religiões nos tempos modernos) sumério no Facebook. “É curioso ver como o fenómeno da Internet potencializa esta diversidade”, apontou. “Não precisamos de nos limitar a encontrar uns livrozinhos sobre a Suméria e a adaptá-los ao nosso culto pessoal. Podemos, inclusivamente, participar numa comunidade, expor dúvidas, aprender, e estar incluído ali num nichozinho que nos diz diretamente respeito e onde a língua franca é o inglês.”
Esta realidade também surge espelhada nas respostas recolhidas por Mariana Vital e Mário Pinto entre maio e junho do ano passado. Quando questionados sobre os fatores que consideram importantes na descoberta do Paganismo, uma percentagem elevada dos inquiridos (57,6%) referiu a Internet (apesar de a maioria ter referido os livros como principal fonte de conhecimento). Relativamente ao contacto com outros pagãos, 42 pessoas admitiram falar online com outros pagãos que residem fora da sua região e 52 com pagãos que vivem noutros países. Contudo, apenas 15 disse falar online com outros pagãos do seu distrito ou região. Sobre a participação em fóruns ou grupos pagãos na Internet, 111 admitiu participar.
Mário Pinto admite que ficou muito surpreendido com tanto “isolamento”. “Uma coisa é uma pessoa gostar de fazer as coisas por si, outra é não ter qualquer contacto com ninguém. O que por um lado é meio estranho, porque aí pergunto-me: como é que o inquérito lhes foi parar às mãos? Calculo que essas sejam pessoas para quem ‘contacto’ significa ‘contacto pessoal’ e que não o incluem no facto de estarem inscritos num determinado grupo do Facebook porque, de facto, isso não é contacto pessoal. Curiosamente, no meio disto tudo, a maioria diz que acha que, sim senhor, há uma comunidade pagã em Portugal.” Uma comunidade feita de indivíduos com uma presença pública e “de uma grande parte anónima, mas que se considera incluída na comunidade pagã”.
Apesar das dificuldades que tiveram em chegar a certos nichos, Mariana e Mário acreditam que o inquérito que realizaram tem validade porque “dá para tirar uma série de padrões” que creem ser “transversais” a todo o país. “Se tivéssemos uma maior representatividade geográfica, aqueles dados, muito provavelmente, só iam aumentar em termos de quantidade e não em variante. Os padrões estão lá”, referiu Mariana Vital. “Evidentemente que, se a amostragem fosse maior, daria para ver maiores variações em termos geográficos, em termos de idade. Daria para ver melhor os detalhes mas, de um modo geral, estou muito satisfeito”, disse por sua vez Mário Pinto, que acredita que questionário terá sido respondido por cerca de 5% da população pagã portuguesa. O que leva à derradeira pergunta: quantos pagãos existem em Portugal? “Pelas contas que fiz muito por alto, e que valem o que valem, diria que não há menos do que mil e não mais do que dois mil”, disse o investigador. “É bastante para o país que temos, com as limitações em termos de língua, de capacidade económica, de movimentações, tradições, etc., etc. Se formos por aí, não está nada mal.”
Outra coisa que os dois investigadores perceberam a dicotomia existente “entre as pessoas que ligam o Paganismo ao associativismo e as pessoas que pensam no Paganismo enquanto relação pessoal, relação interpessoal com um grupo fechadinho e que não esperam uma representação oficial, uma voz pública”. Para estas pessoas, as associações não têm qualquer tipo de interesse — “não veem necessidade nenhuma, não é importante para eles”. Estas duas realidades surgem mais uma vez evidenciadas no inquérito de Mariana e Mário: mais de 70% dos inquiridos referiu nunca ter estado filiado numa associação pagã portuguesa.
No que diz respeito àqueles que não querem associar-se, Mário Pinto considera que o problema não está apenas na alta de interesse: “Acho que se nota que há um certo défice do lado das associações em dar a conhecer não só a sua existência, mas também a sua razão de ser e o que fazem”, afirmou. Para o membro do Grupo de Estudos do Paganismo, há falta de “promoção delas próprias” e de “divulgação”. Mas será que isso significa que não existe interesse da parte dos próprios organismos? “Em princípio terão [interesse]”, considerou. “Uma associação vive, entre outras coisas, do número de associados. Uma associação de dez pessoas não pode fazer muitas coisas, a não ser organizar de vez em quando um piquenique. Uma associação de 100, 200 ou 300 pessoas já tem outra capacidade para fazer coisas e para ser ouvida. Mas não chega a muitos. Nota-se que há um grande desconhecimento em relação às associações que existem e ao seu papel.”
Quando questionados pelos motivos que os levaram a afastarem-se deste tipo de organismos, perto de 40% dos inquiridos admitiu não sentir necessidade de ser filiado. Há até quem tenha orgulho nisso e faça questão de dizer que não tem qualquer tipo de interesse e que não se identifica com a abordagem. E depois há “outras que vão até um bocadinho mais longe e dizem: ‘Não me sinto bem em ser avaliada por pessoas que estão em associações, portanto, não me associo”. Para Mário, ficou claro que de “entre os que não são filiados, a tendência é crítica”. “Nos associados, é precisamente o contrário. Uma maioria, mas não uma maioria extrema, diz que [as associações] são boas. Depois, há um grupo mais pequeno que diz que são razoáveis e um ainda mais pequeno que diz que não é bom. Ou seja: chega-se à conclusão que, para a maioria das pessoas que está em associações, o trabalho é razoável ou bom, embora haja uma fração crítica de 10%.”
Um trabalho para continuar
Tal como Mário, Mariana também admite ter ficado “satisfeita” com os resultados do inquérito: “Acho que foi muito revelador. E como tu dissestes — e muito bem —, Mário, isto é coisa para nos dar trabalho durante 30 anos, se quisermos”. A próxima etapa passa por pegar nas cerca de 60 pessoas que se mostraram interessadas em continuar a participar no estudo e “desenvolver um novo exercício de reflexão, com novas perguntas”. O formato será diferente, mas Mariana e Mário ainda não decidiram exatamente qual será. “A ideia é recolhermos mais informação” partindo “da análise que fizemos com este trabalho, ver quais são os pontos mais interessantes de serem analisados mais a fundo e continuarmos a investigar e a procurar respostas com este grupo”.
Contudo, os dois investigadores admitem a possibilidade de virem a alargar o número de pessoas envolvidas, apesar de haver certas vantagens em manter o mesmo conjunto de indivíduos sobre os quais já têm alguma informação. “No meio disto aparece sempre o interesse de falar com a, bê ou cê, desde que haja boas razões para isto”, salientou Mário Pinto. “[Mas o importante é] ver daqui o que é que temos de esclarecer melhor e perceber quem é que tem mais interesse em falar, quem é que está disposto a isso.”
Além disso, os dois investigadores pretendem brevemente apresentar as suas “reflexões e análises” de “uma forma ou de outra”, como por exemplo, através de uma comunicação científica. Mas a ideia principal, como referiu Mariana Vital, é “avançar com este Grupo de Estudos do Paganismo”. “Outras pessoas que fomos conhecendo por causa do estudo já se mostraram interessadas em fazer parte dele de um ponto de vista académico e integrar o grupo.” O objetivo final de tudo isto é o mesmo que motivou o arranque do primeiro inquérito sobre Paganismo em Portugal: “Perceber que, quando se fala de Paganismo em Portugal, não precisamos de nos basear só naquilo que ouvimos ou naquilo que conhecemos — há um conjunto de conhecimentos ao qual as pessoas podem aceder e ficar mais elucidadas relativamente àquilo que se faz por cá”. E isso é, para Mariana e Mário, o que mais importa.