João de Almeida Dias, em Paris
“Nunca é cedo demais para fazer uma piada”, adverte Stefan, um professor de música de 27 anos. Está sentado a um canto do sofá cinzento da sala do apartamento de Lucile, produtora de cinema documental e a anfitriã deste ajuntamento de amigos, na primeira noite de sexta-feira de Paris após os atentados de 13 de novembro.
As piadas que não obedecem a timings são, entenda-se, sobre os atentados de Paris.
Um exemplo é dado pela namorada de Stefan, uma estudante de medicina que se chama Manon. Chega-se para a frente, no jeito de quem começa a contar uma anedota, e ri antes de tempo, antecipando a piada. Neste caso, é sobre Hasna Aitboulahcen, a mulher de 26 anos que foi abatida pela polícia francesa, num apartamento no subúrbio de Saint-Denis. Inicialmente julgava-se que esta se teria feito explodir com um colete-bomba, mas entretanto fonte policial afirmou à AFP que foi um outro terrorista, entre os que se escondiam naquela casa, que provocou a explosão. Descrever o que por lá se passou como “macabro” é um eufemismo: várias testemunhas falam de uma explosão tal que uma parede-mestra da casa se desviou e a cabeça da mulher acabou por sair pela janela e aterrou em pleno passeio. Ainda assim, Manon ri-se.
“Diz-se que um homem quando se faz explodir vai para o paraíso e tem lá 72 virgens só para ele. Mas eu tenho a certeza que ela quando se fez explodir não queria virgens nenhuns para ela. Ela queria era homens experientes, bons de cama!”
Stefan faz, imediatamente, outra piada sobre a mesma situação. Em francês, a expressão se faire sauter tem dois significados. O primeiro, mais literal, quer dizer saltar. O segundo, ter sexo. “Quando se soube que ela se tinha explodido, as pessoas começaram a dizer que partes do corpo dela tinham saltado por todo o lado. E eu disse: ‘Ela saltou [teve sexo]? Bom para ela! Espero que tenha gostado!'”
“Aquele ataque foi dirigido a todos nós”
São 23h00 de uma noite de sexta-feira. Uma noite qualquer, como a de 13 novembro começou por ser — até que vários terroristas com ligações ao autoproclamado Estado Islâmico espalharam o terror no Stade de France, na sala de espetáculos Bataclan e numa série de esplanadas do 10º e 11º arrondissements de Paris. Há uma semana, cada um destes jovens estava em choque com o que se passava, enquanto confirmava se toda a sua família e amigos estavam em segurança.
Agora, uma semana depois, estão sentados na casa de Lucile, entre o 9º e o 10º arrondissements. Alguns sentam-se no sofá cinzento, outros em pufes. Estão todos reunidos em redor de uma mesa de centro branca, manchada por muitos copos e garrafas — e mais manchas terá no final desta noite, a julgar pelas dezenas de garrafas de vinho, rum, e cerveja que ali estão pousadas de forma desordeira, entre filtros de cigarros, mortalhas e tabaco de enrolar. Uma gata preta, Átila, passeia-se pela sala à medida que vai recebendo festas de todos. Não há ninguém nesta sala com menos de 20 anos e ninguém acima dos 30 — como muitas das pessoas que morreram há uma semana.
Há uma semana não estavam nos sítios sob ataque, mas podia ter sido esse o caso. “Eu já devo ter ido ao Carillon mais de 30 vezes, é normalíssimo ir lá, portanto foi por acaso que não se deu o pior para mim e para amigos meus”, diz Flávio, que nasceu em Guimarães e que rumou com os pais para França quando tinha oito meses. “E eu poucos dias antes dos ataques fui ao Petite Cambodge buscar um bo bun“, conta Stefan, que conhecia de cara dez dos 130 mortos de 13 de novembro. Outro amigo de Stefan, que estava numa das ruas dos atentados, teve sorte ao conseguir esconder-se dos terroristas — esteve durante duas horas fechado numa sala refrigerada de um restaurante, encafuado entre vegetais, carne e outros produtos, ao lado de uma dezena de pessoas.
“Aquele ataque foi dirigido a todos nós, a esta geração boémia e liberal em todos os sentidos, desde a maneira como encaramos a sociedade até à política. Foi dirigido a estas pessoas que bebem, fumam, saem até às tantas, fazem o sexo que lhes apetece”, conclui Flávio. “Este modo de vida vai contra tudo o que aqueles terroristas defendem.” São os bobos: bourgeois-bohème. O Libération chamou-lhes a “Geração Bataclan”. Uma geração que viu a morte de frente.
“Antes de tudo os amigos de bordo”
O computador de Lucile, encarrega-se de encher a sala de música, que passa de forma aleatória. Ainda assim, a anfitriã sente a necessidade de passar a mesma canção pela terceira vez esta noite. De novo, surge a voz de Georges Brassen, cantor da segunda metade do século XX francês, a cantar “Les copains d’abord“. Uma música bem conhecida dos franceses, composta há precisamente 50 anos, em 1965.
A letra conta a história de um grupo de amigos a bordo de um barco que está à deriva, a “navegar contra as ondas mas sem afundar”, uma expressão que, em latim, é o lema que aparece no brasão de Paris: fluctuat nec mergitur. “Les copains d’abord” é, na verdade, um jogo de palavras. Embora signifique algo como “antes de tudo os amigos”, também soa como “les copains de borde“. Isto é, “os amigos de bordo”.
Há poucas músicas mais simbólicas para os últimos tempos de Paris e por isso cantam-na em uníssono como se fosse a primeira vez esta noite. Muitos fecham os olhos enquanto o fazem. Lucile pega no copo e faz dele microfone:
“Ao menor ‘golpe de Trafalgar’ [nota: situação traumática ou adversa]
Foi a amizade que ficou de guarda
Foi ela que lhes mostrou o norte,
Lhes mostrou o norte!
E quando eles estiveram desesperados
Quando os seus braços faziam um S.O.S.
Pareciam semáforos,
Antes de tudo os amigos de bordo”
Brassens não chegou hoje à vida destes jovens — Lucile tem até um poster do cantor falecido em 1981, antes de ela sequer ter nascido, numa parede da sala —, mas agora parece estar mais presente do que em qualquer outra altura. Ironicamente, é também este cantor que dá o nome ao liceu de um dos terroristas do Bataclan. Ismaël Omar Mostefaï, filho de mãe portuguesa, estudou no Lyceé Georges-Brassens, em Courcouronnes, nos arredores de Paris.
“Qual de vocês gosta mais da Frente Nacional?”
Já passa da meia-noite quando decidem jogar um jogo. Chama-se Rings of Fire e serve de desculpa para beber. Uma garrafa de vinho é posta no meio da mesa, com um baralho de cartas espalhado num círculo, em seu redor. Cada carta é um jogo que coloca todos à prova. Quem ganha, não tem de beber. Quem perde, terá de fazê-lo.
Ao início do jogo, Etiénne, um jovem advogado, tira a carta número 10 — terá de ficar costas com costas com a pessoa ao seu lado esquerdo, neste caso Comu. A regra indica que se tem de fazer uma pergunta (qual de vocês os dois é o mais provável de…) e cada um deles responde, indicando, sem que o outro saiba a sua resposta. Quem está de fora, terá de acertar o que cada um pensa.
É a Lucile que cabe a tarefa de fazer a pergunta. “Qual de vocês os dois é o mais provável de…”, começa por dizer, retendo-se por alguns segundos. “Qual é o mais provável de… Ah, já sei. Qual é o mais provável de gostar da Frente Nacional?” A menção do partido de extrema-direita, liderado por Marine Le Pen, traz alguns risos de desdém a esta sala. Pouco acima do poster de Brassen, estão cartazes antigos do Partido Socialista. Se houvesse eleições nesta sala fumarenta e desarrumada de um quarto andar do 9º arrondissement, Marine Le Pen nunca teria o êxito que as sondagens mais recentes lhe preveem, com 29% dos votos e um segundo lugar, bastante para disputar a segunda volta com o ex-Presidente Nicolas Sarkozy.
Quando é dada a ordem de o jogo avançar, Étienne aponta para Comu e Comu aponta para Étienne. Nenhum quer ficar como “mais provável de gostar da Frente Nacional”. Bebem, mesmo assim. Ao canto do sofá, Átila, a gata, dorme enroscada no próprio corpo como se nada se passasse.
Mais à frente, sai a carta 5, em que uma pessoa é obrigada a imitar algo ou alguém de forma silenciosa. Aos outros, cabes-lhe adivinhar do que, ou de quem, se trata.
Lucile recebe a ordem e parte para a sua representação. Abre a boca num grito surdo, enquanto um punho cerrado esmurra a outra mão, num claro sinal de violência. Enquanto salta, desgrenha os cabelos de propósito, agita-se muito, faz olhos de fúria. Chega a passar o polegar ao longo do pescoço, num gesto ameaçador.
“Um terrorista!”, diz Flávio.
Não.
“Um gorila!”, aventa Comu.
Também não.
“Marine Le Pen!”, tenta Étienne.
Acertou.
O jogo prossegue mas a conversa é tomada de assalto pela Frente Nacional. “Ouviram a entrevista daquela estúpida ontem à France Inter?”, pergunta Lucile. A “estúpida” é Marine Le Pen, que abandonou o estúdio daquela estação de rádio depois de ter sido confrontada por um jornalista que questionou as suas afirmações.
Marine Le Pen aproveitou a entrevista, para criticar a ministra da Justiça, Christiane Taubira, acusando-a de ter dito que “é preciso compreender os jovens que vão para a Síria”. Uma disputa entre o jornalista, que demonstrou que Taubira tinha dito algo ligeiramente diferente (“é preciso compreender porque é que os jovens vão para a Síria”), levou Le Pen a sair da entrevista em direto depois de se queixar do tom “inquisitório” do entrevistador.
“Ela só disse aquilo por oportunismo e racismo, mais nada, tenta sempre tirar proveito de tudo. Mas agora foi apanhada na mentira”, diz Lucile. Taubira nasceu na Guiana francesa — um território na América do Sul que pertence a França — e é negra.
Por fim, quando as garrafas já estão mais vazias do que cheias, terminam as cartas. Acabo o jogo. Para além da música que continua a sair do computador, a sala é tomada pelo silêncio. Até que a conversa se vira para os atentados e tudo o que se seguiu.
“É a primeira vez que meter uma bandeira na varanda não é fascista”
“Aquilo que se passa é incrível, não é normal. É como se vivêssemos um filme”, Lucile começa por dizer. “Ainda ontem estive com uma amiga que vive a dez metros do Carillon. Dez metros. Todos os dias ela sente-se mal, está muito assustada. E está sempre a perguntar a mesma coisa que, bem vistas as coisas, ninguém sabe. Afinal, quando é que isto vai acabar?”
Não há resposta possível a essa pergunta. Mas, por outro lado, houve uma resposta que Lucile acha que tem sido dada de forma comum, por toda a gente. “Pela primeira vez, todas as pessoas têm prazer em serem francesas, têm muito orgulho. É a primeira vez que eu vejo bandeiras nas varandas e nas janelas e fico contente por isso”, diz, explicando-se com um copo de vinho tinto na mão. “É a primeira vez que meter uma bandeira na varanda não é fascista, uma coisa típica da Frente Nacional. Agora é uma maneira de dizer aos outros que somos fortes, mesmo perante esta merda toda.”
Comu, sentado do lado direito de Lucile, discorda. “Não entendo porque é que fazem isso, nem entendo porque é que metem as bandeiras na fotografia do Facebook. Porque é que fazem isso? Para dizerem que são franceses? Já toda a gente sabe que são franceses”, diz, enquanto Lucile se retorce em desacordo. “Além do mais, a bandeira é um símbolo de um país que é colonialista, que é imperialista. Eu não me identifico com isso, não faz parte de mim. Sim, sou francês pela cultura, mas não sou francês pela nação nem pela política.”
Etienne discorda. “Ouve, sermos franceses agora já não quer dizer que a gente aceita a colonização, isso são coisas do passado, não fazem parte da nossa vida”, diz a Comu. Lucille reforça: “Ser francês não é uma coisa estanque. Não é dizer algo como ‘se és francês então gostas disto, disto e disto’. As coisas não são assim, ser francês é ter a liberdade de gostar daquilo que tu quiseres!”.
“Mas é essa maneira de ver o mundo que eu detesto e que agora está a crescer. Eu não sou francês, sou internacionalista, eu vivo no mundo, sou um cidadão do mundo”, devolve-lhes Comu, em clara desvantagem na sala.
Os ânimos elevam-se. Já mal se ouve a música do computador e Lucile parece estar à beira de um colapso nervoso. São quase 03h00 e fala alto, esbracejando, demasiado exaltada para pensar nos vizinhos a uma hora destas. Torna a virar-se para Comu: “Aquilo que é mais bonito destes atentados é a maneira como uniu os franceses. Quando cantamos a Marselhesa, mesmo aquela parte em que se fala do ‘sangue impuro’ a ‘banhar os nossos solos’, não é o Estado que estamos a abraçar. São as pessoas ao nosso lado, é a nossa cultura, é a nossa maneira de viver. Foda-se, isto é das melhores coisas que pode haver. E a bandeira é o símbolo de tudo isto, a bandeira é o que nós quisermos fazer dela!”.
Lucile fala tão alto que até Átila, a gata, acorda e foge do sofá. Mas, por fim, a anfitriã acalma-se e volta a beber um pouco de vinho tinto do seu copo. Depois, levanta-se e vai até ao outro lado da sala. Pega numa guitarra, presa na parede, e volta para o seu lugar e arranja algum espaço na mesa de centro da sala para lá pousar o computador. Com a guitarra pela frente, vai ao Google e pesquisa a letra e os acordes de uma música em particular.
Quando começa a tocar os primeiros acordes de “Les copains d’abord“, daquele homem que surge num poster mesmo nas suas costas, Comu e Étienne ainda discutem a essência da identidade francesa. Mas acabam por se calar quando se apercebem da música que, pela quarta vez, e agora ao vivo, toca naquela sala. Volta-se a cantar aquele barco que, como Paris, “navega contra as ondas sem se afundar”.
“É fluctuat nec mergitur
E isto não é mera literatura
Pouco importa o que dizem os arautos da desgraça
Os arautos da desgraça!
O seu capitão e os seus marinheiros,
Nós não somos filhos da mãe,
Todos os amigos podem vir à vontade,
Antes de tudo os amigos de bordo
(…)
Já apanhei muitos barcos na minha vida
Mas o único que nunca sucumbiu a golpes,
Que nunca mudou direção
Navega com toda a calma,
Sobre o grande mar dos patos,
Ele chama-se ‘Antes de tudo os amigos de bordo’,
Antes de tudo os amigos de bordo”
No final da cantoria — desafinada, é certo — todos batem palmas. Lucile, ainda debruçada sobre a guitarra, limpa uma lágrima.
https://www.youtube.com/watch?v=rslShTbqNbo