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É uma experiência pouco comum: uma entrevista ao líder da maior central sindical do país sem ouvir críticas ao Governo. Arménio Carlos, secretário-geral da CGTP, não chega a elogiar o Executivo socialista e até deixa o aviso de não abdicar da luta na rua. Mas em véspera de a central definir a a estratégia para os próximos quatro anos, o tom é de colaboração e até compreensão, com o sindicalista a repetir o provérbio “Roma e Pavia não se fizeram num dia”. As críticas mantêm-se centradas na governação PSD/CDS e, claro, a União Europeia que “não aproxima, afasta”, diz.
“O Tratado Orçamental e a dívida põem em causa o futuro do país”
É militante do PCP desde 77, como é que vê este apoio do seu partido a um Governo que já disse não considerar de esquerda?
O apoio do PCP ao Governo está associado à necessidade de interromper um projeto anti-laboral e anti-social que estava a ser desenvolvido pelo PSD e o CDS e que, caso se concretizasse, deixaria os portugueses e os trabalhadores numa posição mais difícil nos próximos quatro anos. E também está ligado com a necessidade de priorizar, a partir da nova maioria no Parlamento, soluções que possam interromper esse projeto. A partir daqui procura-se construir uma política que melhore as condições de vida dos portugueses e que também confronte a União Europeia com a necessidade de rever o Tratado Orçamental e a dívida.
Duas matérias que não são prioridade para PS.
Seguindo esse raciocínio também não se verificaria esta nova maioria na Assembleia da República porque há uns anos era impossível haver um entendimento mínimo. O que a vida veio demonstrar é que foi possível.
Então acha que o PS vai acabar por ceder e romper com as metas europeias?
Não se trata de ceder, mas de constatar e tentar resolver. O país é pequeno e não tem força para impor determinadas condições, mas o que verificamos é que há outros grande países da UE que também já começam a questionar de forma mais frontal o Tratado, como a Itália. Isto implica todo um percurso e iniciativa de contactos com outros países que, independentemente da força política que estiver no poder, também se sintam constrangidos e prejudicados por este Tratado Orçamental.
A maioria dos eleitores votou em partidos que não defendiam essas duas matérias. As pessoas reconheceriam legitimidade num rompimento?
Legitimidade há. As pessoas perceberão todas as políticas que vão ao encontro da defesa dos seus direitos ou da melhoria das condições de vida e do desenvolvimento do país. A partir do momento em que se pode alterar ou mesmo romper com o Tratado ou renegociar a dívida, é evidente que o país terá mais condições para dar resposta aos problemas com que se confronta.
E não levantaria problemas junto das instâncias internacionais, colocando Portugal sobre uma forte pressão, como aconteceu com a Grécia?
Tudo isto tem de ser feito em movimento, é um processo que envolve Portugal, mas não só. É uma posição de confronto para a necessidade de se alterar um determinado conjunto de regras que já provaram que não aproximam países, pelo contrário, afastam-nos. Quando estamos a falar do Tratado e da dívida estamos a falar de condicionantes que põem em causa o futuro do país. A começar no investimento público, precisamos de dinamizar o investimento público com retorno. E depois há as outras componentes, na área social. Justifica-se que os trabalhadores da administração pública estejam com salários congelados por tempo indeterminado?
Mas para a Comissão Europeia ainda parece justificar-se.
A Comissão Europeia (CE), o Banco Central Europeu e o próprio FMI deviam fazer a autocrítica das políticas que eles próprios disseram ser determinantes para o futuro do país e que desenvolveram nos últimos quatro anos. Este modelo não está só a pôr em causa os direitos de quem trabalha, como também os direitos das futuras gerações. Está a dar sequência a um processo de empobrecimento geral da população portuguesa.
Esse modelo desaparece no Orçamento do Estado para este ano?
O modelo não tem a ver como o Orçamento, são coisas distintas.
Mas o esboço orçamental teve de ser adaptado às exigências da Comissão.
O Orçamento promove uma inversão do ritmo e rumo da reversão de direitos, salários e pensões. Fica aquém das necessidades do país e das populações, tem muitos constrangimentos, ingerências e chantagens, mas mesmo assim implica um esforço no sentido de ser melhorado na área social. É o Orçamento que precisa de ser aprovado, sob pena de se abrirem as portas para que a direita retorne ao poder.
Portanto, é um mal menor…
É. É um Orçamento que não corresponde ao que desejaríamos, mas que face às chantagens, ingerências e também pressões externas e internas, tem de ser aprovado.
A responsabilidade de o OE não ser o que desejariam está nas razões externas ou o PS também a tem?
Juntamos as peças e construímos o puzzle. Este Orçamento não é um fruto da natureza, é fruto de uma política que vem de trás. O que a CE devia fazer com o FMI era uma autocrítica e iria chegar à conclusão que todos os objetivos que delineou foram no sentido contrário.
“O OE é minimamente aceitável, mas daqui para a frente a exigência vai aumentar”
O que estou a perguntar é se este Governo está isento e responsabilidade no OE que apresenta.
Este Governo recebeu a herança e, neste caso concreto, é negativa.
Portanto, desresponsabiliza o Governo PS.
Não, acabou é por o responsabilizar a dar sequência a um conjunto de promessas que fez para promover a mudança. E, sabendo nós que “Roma e Pavia não se fizeram num dia”, também é fundamental que este sentido de inversão da política de cortes continue. Face aos constrangimentos, ainda é minimamente aceitável, mas daqui para a frente o nível de exigência vai aumentar.
Nas 35 horas foi o PS e não a Europa a colocar reservas, com o ministro das Finanças e o primeiro-ministro a afirmarem que é preciso que não acarrete aumento de custos globais. O PS tem vontade real de reverter as 40 horas?
É claramente uma questão de constrangimentos resultantes das ingerências. O Estado tem de reduzir despesa, mas há despesa boa e má. Ora, investir nos trabalhadores não é despesa, é investimento. Qual é a despesa má? Muito simples: os juros da dívida, as parcerias público privadas. O que se está a verificar neste momento é uma entrada paulatina no setor privado em grandes áreas da administração pública, não para responder às necessidades, mas para procurar retirar dividendos, fazer negócio. Nós investimos e eles levam os lucros.
E a questão das 35 horas?
Independentemente das afirmações dos vários ministros – não nos interessa entrar nesse tipo de questão – para nós a discussão é muito simples: há uma promessa que foi feita e deve ser cumprida. E depois estamos a falar na reposição de um direito que os trabalhadores tinham e que lhes foi retirado e ainda por cima não trouxe rigorosamente benefício nenhum às populações, nem ao funcionamento dos serviços. Existe toda a disponibilidade para discutir e encontrar-se uma solução.
“Reduzir horário de trabalho seria um sinal importante que o Governo não pode deixar de dar”
No modelo que o primeiro-ministro tem falado: entrar a vigor a 1 de julho, mas com uma regulamentação longa que pode atrasar os efeitos?
Ele falou em 1 de julho, mas também disse que podia ser antes. A questão da regulamentação, ou de outras medidas que possam vir a ser implementadas, tem relação direta com a vontade de cumprir promessas. Foi isso que dissemos ao primeiro-ministro. O que importa é decidir, com os sindicatos, as soluções e definir uma data para entrada em vigor. A partir daí compromete todos e obriga todos a acelerar o processo. Quer a organização e preparação da transição, quer a discussão com os trabalhadores e o seu envolvimento neste processo. Isto é possível fazer e, já agora, seria um sinal importante que o Governo dava e que não pode deixar de dar.
Para os partidos que apoiam o Governo?
Para os trabalhadores. Para nós… bom, nós temos uma missão e assumimos como opção. Uma central que emergiu da vontade expressa dos trabalhadores, tem de dar resposta às suas necessidades, mas também das suas famílias. Do ponto de vista político, é muito importante credibilizar a política e a melhor forma de fazê-lo é cumprir as promessas feitas aos trabalhadores. A maior descredibilização nos últimos anos foi um conjunto de promessas feitas pelo anterior primeiro-ministro que, quando chegou ao Governo, fez o contrário do que tinha prometido.
Em 2012, a CGTP abandonou a Concertação Social alegando estar em causa o “maior retrocesso” nos direitos dos trabalhadores, precisamente quando se debatia o aumento da carga horária. Quais as vossas linhas vermelhas hoje?
Continuamos na Concertação. O que manifestámos nessa altura sobre o aumento do horário de trabalho, a redução de salários, pensões e dos direitos dos trabalhadores, é que nos opunhamos e que faríamos tudo para as combater.
Quais os limites agora?
Não definimos. Optámos por reafirmar as nossas propostas, depois vamos ver, no âmbito da negociação, as possibilidades de entendimento. As nossas propostas têm a ver com cinco eixos. O primeiro é promover a economia e o emprego, combatendo a precariedade e a valorizando as carreiras profissionais para evitar a saída massiva de trabalhadores, sobretudo jovens. Há pouco recebi aqui um telefonema de uma trabalhadora com um mestrado que está num contrato de emprego de inserção a receber 419 euros, isto é demolidor do ponto de vista psicológico. Além disso, é preciso dinamizar a contratação coletiva, alterar a lei laboral, apostar em serviços públicos fortes e, por último, melhorar a qualidade e acesso aos serviços sociais do Estado.
Há pouco recebi um telefonema de uma trabalhadora com mestrado, que está num contrato de emprego de inserção a receber 419 euros. Isto é demolidor do ponto de vista psicológico.
Fala em investimento, reforço de serviços, de despesa boa. Mesmo que não existissem metas europeias, o país podia continuar num ciclo de despesa elevada para o que produz, sucessivamente, com défices elevados e dívida galopante?
Passe a comparação isto é como uma pessoa que está ser asfixiada e que precisa de viver e pede para lhe darem oxigénio. Neste caso em concreto em vez de lhe darem oxigénio, vai-se asfixiando ainda mais. O país precisa de condições para poder respirar e não é para gastar de qualquer maneira, é para se reorganizar e responder aos problemas concretos. Isso implica maleabilidade na concretização do Tratado Orçamental. As posições na Europa não são uniformes. Para os países de maior dimensão encontram-se sempre soluções. Porque é que se recusam a encontrar soluções para Portugal?
Devolvo-lhe a pergunta. Porquê?
Por uma razão muito simples, porque esta UE não aproxima, afasta. Se for ver os projetos que estão a ser apresentados até no âmbito dos fundos comunitários, a maioria dos projetos de elevado índice tecnológico está no centro da Europa. E então o Sul? É uma política de concentração que é dirigida por um país e que é depois levada a que outros se sintam submetidos a dar-lhe corpo e a aprovar. Se não se mexe no Tratado e na dívida, em 2017 e 2018 vamos ter o mesmo problema.
A mudança de postura em relação à despesa pública não era necessária?
Nunca pusemos em causa a necessidade de redução da despesa pública, o problema é que a que foi reduzida deixou marcas brutais na vida das pessoas, quando outros passaram a viver ainda melhor do que estavam. Por exemplo: admite-se que o Estado gaste milhões e milhões de euros na contratação e subcontratação de escritórios de advogados, para tratar de assuntos do Estado? Não rentabiliza os meios técnicos do Estado, desperdiça dinheiro e abre uma área de grande promiscuidade entre a intervenção do Estado e os escritórios, que tão depressa estão a trabalhar para ele, como com outros grupos que com ele negoceiam. Temos de tocar nos lóbis instalados.
Acredita que este Governo do PS tem capacidade para fazer essa mudança?
Este Governo do PS vai compreender que, para demonstrar que é diferente, terá que apresentar medidas…
Ou seja, não acredita.
Não, o que lhe estou a dizer é outra coisa. A realidade vai impor que o Governo do PS, para afirmar a mudança que prometeu, tome medidas que nalguns casos irão confrontar os grupos e lóbis instalados. Não há volta a dar.
Custa-lhe dizer que acredita no Governo do PS?
Não, a CGTP relaciona-se com todos os governos sem exceção. Não privilegia a discussão com quem está no Governo, mas a sua intervenção no sentido de melhorar ou alterar as políticas que são contra os trabalhadores. Não temos nada contra nenhum governo, o que queremos, mais do que estar a dizer que o Governo está bem ou mal, é contribuir para as alterações nas políticas que deem resposta ao problemas dos trabalhadores e da população. É a partir daí que avaliamos as posições do Governo, não é ao contrário. Primeiro as políticas e depois o Governo.
“A nossa intervenção não vai baixar”
A contestação social fica em standby com um governo apoiado pela esquerda?
Não, até dou um exemplo: as 35 horas. E a contestação social não se faz apenas contra o Governo.
É quem toma as medidas.
A nossa contestação tem uma relação direta também com o que se está a passar no setor privado, onde não há desculpas para não aumentar salários, não passar trabalhadores com vínculos precários e que estão a ocupar postos de trabalho permanentes há muitos anos.
Não têm razões semelhantes às do Estado?
Não. O Estado supostamente é confrontado com o problema do Tratado e com os constrangimentos que daí resultam. Vamos olhar para os orçamentos anuais das empresas privadas, nomeadamente as grandes empresas, e temos surpresas interessantíssimas.
Está a falar das grandes, mas a maioria são PME…
E também das Pequenas e Médias. Não é o aumento dos salários o inimigo destas empresas. Segundo o inquérito do INE às empresas, a primeira preocupação delas é a falta de procura, mas responder a esta necessidade implica a melhoria dos rendimentos. A nossa intervenção não vai baixar. É verdade que estamos num quadro diferente, porque no anterior tínhamos um Governo que não sabia fazer outra coisa se não cortar direitos, salários e pensões. Temos consciência que a nossa luta deu um contributo para que o Governo tivesse caído.
O novo quadro é desafiante e aliciante.
Agora não têm esse objetivo. Não muda tudo?
O novo quadro é desafiante e aliciante. Em primeiro lugar, nós não vamos de férias. Não vamos. Em segundo lugar, vamos continuar a dizer que, sendo aliciante este processo, isto quer dizer que temos de ser mais incisivos, interventivos e criativos. Não há nenhuma proposta que surja do lado do Governo que não tenha resposta da CGTP, e não é só critica, é alternativa. Agora ainda vamos intensificar mais. Privilegiamos o diálogo e a negociação, sem abdicar de, se houver necessidade de confronto, o fazer.
Isso pode colocar problemas ao PCP, na maioria parlamentar?
É preciso ter em consideração que a CGTP é autónoma e independente.
Mas tem relação umbilical com o PCP.
Claro, mas também com todas as forças de esquerda. Já provámos no passado que sempre que ponham em causa direitos dos trabalhadores, não contem com a CGTP para ser cúmplice. Contem para ter uma posição construtiva. Se radicalizarem posições contra os trabalhadores, serão eles a decidir o que devem fazer. E não serão os dirigentes da CGTP, nem os seus sindicatos, a condicionar a vontade dos trabalhadores. É que não é a mesma coisa termos uma maioria que hoje é composta pelo PS, PCP, BE e PEV e a que tivemos nos últimos quatro anos.
A união da esquerda vai ter obrigatoriamente de se traduzir em determinadas medidas, é isso?
Tem de se traduzir em políticas, daí o desafio aliciante.
Este Governo tem condições para durar quatro anos?
Durará tanto quanto o necessário e com o que resultar da concretização de respostas às necessidades e anseios da população. Vai depender das opções.
Mas há a variável política. As eleições autárquicas em 2017, para o PCP por exemplo, não podem criar nervosismo e pressão por estar a apoiar um governo?
Não estou a dizer que são só vantagens e coisas positivas, mas quanto mais resposta derem com medidas concretas às necessidades e anseios da população, em melhores condições estão para pedir o voto nas autárquicas de 2017. Se porventura isso não for feito, então é que vão ter problemas.
Mas aí a responsabilidade é de todos, ou o PS será sempre mais culpado que o PCP ou o BE?
A responsabilidade é de todos, mas quando chega ao momento da aprovação, cada um assume as suas. Não podem responsabilizar-me por coisas que eu não aprovei, não apoiei e até apresentei alternativas. Havendo um entendimento, compromete todos, mas numa perspetiva positiva de resposta aos problemas dos trabalhadores.
E se correr mal?
Cada um assume as suas responsabilidades. Quem é que nos diz que amanhã o PSD não aprovará propostas desta maioria? No Banif aprovou e o PCP e o BE votaram contra, por exemplo. Estamos numa fase da política em Portugal muitíssimo interessante. Para além dos compromissos, muitos deles vão ter de ser centrados naquilo que se denomina de geometria variável.
“Este governo é mais aberto a discutir, sem dúvida nenhuma”
Há medidas do OE que ainda estão por cumprir, como a alteração dos escalões do IRS. O que não entrou agora têm de entrar quando?
Em relação à política fiscal, a CGTP apresentou há dois anos uma proposta desenvolvida para a sua verdadeira reforma. E nessa proposta somos muito claros, quer sobre a eliminação da sobretaxa, como a da progressividade, aumentando os escalões.
Coisa que o PS também pretende. A minha pergunta é se tem de avançar em 2017?
Na nossa opinião, há compromissos que estão qualificados e calendarizados que se devem cumprir. E há matérias onde entendemos que se deve ir mais longe, caso da nossa proposta fiscal.
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Em 2012, no congresso que consagrou a liderança de Arménio Carlos, houve uma alteração ao regulamento da CGTP que passou a impedir a eleição para o Conselho Nacional de dirigente que nesse mandato entrem na idade da reforma. Uma regra que faz com que este seja o último mandato do atual secretário-geral. Na altura, a mudança implicou que saíssem um terço dos dirigentes históricos da intersindical, incluindo Carvalho da Silva.
É o seu último mandato, o que lhe falta fazer?
É um dos mandatos mais desafiantes. Quase diria que tenho de fazer tudo e mais alguma coisa.
Porquê?
Porque é preciso procurar rentabilizar este novo quadro político a favor dos trabalhadores. Tivemos rombos nos últimos quatro anos, mas houve um resultado: conseguimos travar o projeto político do PSD e CDS.
Nota mais abertura neste Governo, nas reuniões que têm tido?
É mais aberto a discutir, sem dúvida nenhuma. Agora o que entendemos é que a discussão é importante, a concretização é determinante.
Ainda têm de provar?
Têm de provar mais. A provar, já começaram. É positivo que o salário mínimo tenha aumentado, que os feriados sejam repostos, reverter o processo de entrega de operadores de transportes públicos ao setor privado. Temos consciência de que vamos ter imensos obstáculos para ultrapassar, mas há potencialidades que temos de rentabilizar ao máximo.