Pelas sete horas da manhã do dia 25 de abril de 1974, Marcelo Rebelo de Sousa pegava no telefone para uma “pequena vingança política”. Estava já na redação do Expresso, na rua Duque de Palmela, em Lisboa, para um longo dia de trabalho no jornal, que refez a edição que tinha praticamente fechada (e ainda censurada). Discou o número do presidente da Comissão de Exame Prévio — e muito provavelmente até o tratou pelo nome que sabia que o irritava, “Mário Soares”, ignorando o “Bento” entre os dois nomes — para lhe contar em primeira mão o que se estava a passar nas ruas. Foi assim que começou o dia da Revolução, para Marcelo, o jornalista.
Esta segunda-feira vai vê-lo no topo da Assembleia da República, onde vai discursar pela primeira vez como Presidente da República numa cerimónia comemorativa do 25 de abril. Mas recuemos 42 anos, ao dia que o próprio já descreveu com detalhe nas páginas do Expresso (na edição de 22 de abril de 1977), e entremos nessa redação do Expresso, onde Marcelo estava a enviar repórteres para o terreno, a receber várias figuras que iam passando pelo jornal naquele dia, entre “vinganças políticas” e desculpas de “cólicas quase consecutivas”.
Foi na redação que o então jornalista do semanário passou o dia todo. O dia anterior tinha acabado tarde, saíra do jornal por volta das quatro ou cinco da manhã (já de 25), e no percurso de carro a caminho de Cascais percebeu que alguma coisa se passava nas ruas. Quando soube que estava em curso uma revolução, percebeu que teria mais um dia longo pela frente e foi até casa tomar um banho, antes de regressar à redação, onde entrou pouco passava das seis da manhã, para “um dia histórico” e de “arrasante atividade jornalística”, havia de descrever três anos depois no Expresso.
Uma das primeiras coisas que Marcelo fez foi o tal telefonema para Mário Bento Soares, “a comunicar-lhe a boa nova do movimento militar”. Três anos passados, Marcelo confessaria: “O susto que lhe comecei a pregar não compensaria as sinuosidades que revelou no exercício do seu cargo. Mas deu-me uma satisfação muito peculiar”.
A violação das regras de censura, durante o antigo regime, era uma prática constante do irreverente jornalista Marcelo que chegou mesmo a colocar o jornal numa delicada situação financeira. Foi o próprio que o contou, numa entrevista em 2004 ao JornalismoPortoNet (jornal digital da licenciatura em Ciências da Comunicação da Universidade do Porto): “Eu sou um responsável da primeira experiência de prova de página. Francisco Balsemão tinha ido para Madrid a uma conferência. Foi a primeira ocasião em que me deixou sozinho a liderar o Expresso e eu aproveitei para fazer publicar 28 prosas cortadas pela censura… Logo 28… Eu achei que, para ser, tinha de ser o jornal todo e foi uma edição de luxo porque saiu tudo como se não houvesse censura”.
O resultado foi que o jornal teve como sanção a prova de página, ou seja, tudo (incluindo publicidade, legendas, maquetagem) passaria a estar sujeito a censura, o que atrasava o fecho do jornal todas as semanas e a saída para as bancas. A consequência direta foi a queda nas vendas do jornal. “Se não tivesse vindo o 25 de abril, acho que o Expresso tinha muita dificuldade em sobreviver”.
Os primeiros telefonemas e a distribuição de tarefas
A tal “vingança política” de que fala Marcelo não era a única referência à censura que fez no relato daquele dia. Para o Expresso, conta o atual Presidente da República no mesmo artigo, o 25 de abril “começou cronologicamente pelas 3 horas da manhã”. Foi nessa altura que Jorge Galamba Marques, diretor de publicidade do Expresso “doublé de reportagista” (que recentemente pertenceu à Entidade das Contas dos Partidos), alertou a redação quando, “ao deixar o Stones [uma discoteca da moda]” se deparou “com inusitado movimento bélico”, descreveu Marcelo Rebelo de Sousa.
E Galamba seguiu para “o quente das operações no Terreiro do Paço. Essa sua costela noctívaga valer-lhe-ia a experiência de ter sido um dos dois primeiros repórteres (conjuntamente com Augusto Carvalho, para quem logo telefonou) a chegar ao terreno das operações“. Os dois foram acolhidos “com suspeição pelas forças revolucionárias”, recordou Marcelo com o detalhe do diálogo que lhe fora relatado três anos antes e que permitiu que os dois repórteres entrassem no Ministério do Exército, local considerado estratégico que foi ocupado pelos militares nessa madrugada:
– Quem é o Senhor?
– Sou jornalista
– Mas jornalista de que jornal?
– Jornalista do Expresso
– Então venha que é dos nossos…”
A conclusão ficava para Marcelo: “Foi, descansada, a saudação amiga de quem se habituara a compreender, nas entrelinhas, a nossa luta semanal contra a censura, o nosso papel político desde janeiro de 1973”.
Marcelo era o seu nome por ser quase afilhado de Marcello Caetano (mas não era). Além disso era filho de Baltazar Rebelo de Sousa, então ministro do Ultramar. O jornalista carregava uma pesada herança, que sacudia com provocações que mais tarde contou, na entrevista já citada.”Durante o dia, ia tentando falar com o meu pai, que aliás falara algumas vezes com o dr. Marcello Caetano dizendo: ‘o Marcelo diz que o caso está arrumado’. Mas, nos últimos anos, o dr. Marcello Caetano já estava muito irritado comigo pelas minhas posições, sobretudo ligadas ao Expresso, e dizia: ‘Ah! Isso é o costume dele, ele diz sempre isso, ele é do contra!’, porque acreditava até ao fim que as tais ‘ forças fiéis’ viriam da província para salvar Lisboa“.
As ruas estavam em ebulição. No jornal, o dia foi passado ao telefone, com Marcelo a recordar no artigo do Expresso onde estava cada um dos repórteres do jornal e também o crescente “entusiasmo na redação”, onde foi acompanhando os acontecimentos à distância, à medida que as ocupações iam acontecendo. Descreve a distribuição de trabalho assim: “O Augusto Carvalho corria a cidade. O Jorge Galamba cobria a zona dos ministérios. O Almeida Perucho cobria a RTP. O Fernando Brederode foi para a Emissora.” Outro jornalista manifestava-se pouco entusiasmo em ir ver o que se passava no Rádio Clube Português, para onde foi destacado. “Invocando cólicas quase consecutivas”, só arrancaria para o RCP ao começo da tarde.
O 25 de abril aconteceu numa quinta-feira, dia em que o jornal fecha a sua edição (que sai ao sábado). Apesar do acontecimento histórico, decidiu-se não fazer uma edição especial antecipada. Foi, descreveu Marcelo, “a questão de fundo mais interessante que motivou forte debate no jornal” nesse dia. “Prevaleceu o nosso estilo anglo-saxónico”. O jornal não mudou o dia de saída, apesar da edição daquele sábado, dia 27, ter sido quase exclusivamente dedicada ao 25 de abril. “Lembro-me de, na altura, esta opção ter chocado alguns setores de opinião”.
Um dia com mais de 24 horas
O dia da Revolução descrito na primeira pessoa, por Marcelo, teve bem mais de 24 horas. O jornalista ainda conta a “noitada” para três jornalistas, Helena Vaz da Silva, Jorge Galamba e Fernando Ulrich (hoje presidente do BPI), “destacados para a primeira conferência de imprensa da Junta de Salvação Nacional, tendo de fazer uma longa espera até as 6h da manhã na Pontinha”. “Veriam recompensada” a espera, escreveu, já que viram o texto inicial do Programa do Movimento das Forças Armadas, “com rasuras que, mais de um ano depois, [o major] Vítor Alves admitira terem resultado de uma longa e difícil reunião com a Junta de Salvação Nacional e a Comissão Coordenadora do Movimento de Capitães”.
Galamba já tinha estado, durante a manhã, a relatar os acontecimentos no Largo do Carmo, através de um telefone no edifício em frente do Convento. Marcelo lembra as “frases melodramáticas” que chegavam à redação, onde André Gonçalves Pereira depois as transcrevia. O antigo professor de Marcelo na Faculdade de Direito, advogado, e futuro ministro passou pela redação e acabou por fazer “o seu batismo jornalístico”. “Delas [das frases de Galamba Marques] a mais pungente foi: ‘Se me calar foi porque morri'”.
A redação recebeu várias visitas ao longo do dia, com Marcelo a nomear cada uma no seu artigo, e a demorar-se mais na recordação da passagem de Mota Amaral pela redação e do conselho que o “jovem deputado” de lá levou. Ia a caminho da Assembleia Nacional e aconselharam-no a não ir. Por “inutilidade”, mas “sobretudo por afirmação política”. “E Mota Amaral não foi, com o que se livrou de ficar para a história da política portuguesa com o estigma de, por questão de pontualidade, não ter perdido pitada das experiências camarais em muitos diversos regimes e sistemas de governo”, concluía o seu companheiro de partido no artigo de 1977. Sobre a visita de Jorge Sampaio, Marcelo lembra-o como estando “eufórico”. Passou no Expresso para confirmar notícias, garantiu. O relato que ficou célebre do dia de Sampaio foi que o ex-Presidente da República não saiu de casa, seguindo as recomendações dos militares.
Por lá também passaram Fernando Brito e Cunha (o ex-alferes que naquele dia teve uma importante intervenção na rendição do major Pato Anselmo, na Ribeira das Naus) e o advogado Vasco Vieira de Almeida (que seria ministro dos governos pós Revolução) e o empresário Manuel Bulhosa, que estiveram reunidos discretamente com Francisco Pinto Balsemão “a aventar cenários para o futuro”, nas palavras de Marcelo, que os ia vendo entrar na redação.
Um corrupio invulgar, num dia louco em acontecimentos e novidades esmagadoras. A história estava a fazer-se e a edição na reta final do fecho. A quase a totalidade do que já estava feito até àquela quinta-feira (numa edição que ainda tinha estado sujeita à censura), foi refeito. O dia foi “da euforia à serenidade, do triunfo da democracia à preparação do número que sairia a 27 de abril de 1974”, descreveu o jornalista Marcelo. O de hoje será bem menos emocionante e agitado – mesmo para o enérgico Presidente Rebelo de Sousa.
Apontamentos de humor da Revolução
Na mesma página em que Marcelo Rebelo de Sousa fez este relato impressivo do dia da Revolução, constam ainda alguns indiscretos do 25 de abril de 74. Um deles foi a longa espera de uma equipa encarregue de raptar, à porta de casa, o 2º comandante do regimento de Lanceiros. Saiu furado o plano, por causa das senhas que chegariam pela rádio. À hora certa, a rádio nada transmitia. “Foi tudo descoberto, a PIDE ocupou aquilo”. Afinal, a receção da rádio estava prejudicada por o carro estar estacionado debaixo de um cabo de alta tensão. Quando o mudaram de lugar, ouviram a segunda senha, 0 “Grândola Vila Morena”. Se esse plano corria certo, o rapto nem por isso. O comandante não saiu de casa, por isso voltaram ao quartel da Pontinha. A equipa de raptores, no entanto, teve de voltar. Quando lá chegou, o comandante já tinha saído.
O então major Costa Neves (entretanto promovido a general) foi descrito neste artigo com o título “8 histórias (muito) cómicas do 25 de abril de 1974”, como “um daqueles a quem mais histórias aconteceram” naquele dia. Liderou a equipa que ocupou o Rádio Clube Português, mas antes de lá chegar teve de se fardar “dentro do carro, no Parque Eduardo VII, onde circulavam vários homossexuais”. Depois, seguiu para o RCP e quando lá chegou mandou prender um polícia que lhe respondeu: “Preso, eu, como? Tenho de me apresentar ao serviço! O meu major tenha paciência que não estou para ser castigado”. Durante o dia, na rua, já tinha sido cumprimentado de forma efusiva por uma pessoa que achou ser um familiar seu. Só depois de se despedir é que Costa Neves se apercebeu de que era o presidente do conselho de administração da RTP, Ramiro Valadão, até aí uma das altas figuras do marcelismo…
Houve também um PIDE reformado que não acreditava no que lhe contavam e que decidiu ir à Rua António Maria Cardoso, onde as instalações da polícia política já tinham sido ocupadas pelas forças da Marinha. O comandante Costa Correia, que liderava aqueles militares, provocou-o: “O que é que o senhor quer? Solidarizar-se com os seus camaradas?” Não era isso, era bem mais simples: “Não, de maneira nenhuma, eu só vim ver o que se passava”. A PIDE já se tinha rendido, mas houve um resistente que acabou detido na manhã do dia seguinte.
As histórias contadas nas mesmas páginas da edição do Expresso onde Marcelo recorda a Revolução, não estão assinadas. E são apenas uma seleção de muitas outras das “muitas mais” que os jornalistas ouviram e presenciaram três anos antes e que não contaram na edição. Porquê? “Algumas que nos foi impossível, ou por serem demasiado inverosímeis para que nos acreditassem, e outras ainda para não ferirmos suscetibilidades”.