Provavelmente a CADA – Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos deve dizer pouco à maior parte dos leitores. Mas, sem este órgão público, os jornalistas não conseguiriam quebrar os diversos segredos com que que muitas vezes o governo, as autarquias e as empresas públicas querem classificar documentação que é pública. E o que tem isso a ver com Diogo Lacerda Machado, o amigo de António Costa que apareceu a renegociar a privatização da TAP depois de há anos ter estado envolvido num dos negócios mais polémicos da companhia aérea, que começou a negociar com os “lesados do BES” antes mesmo das últimas eleições legislativas e que acompanhou as recentes conversações no BPI? Muito. Pode dizer-se que aquele que é agora conhecido por ser o melhor amigo do primeiro-ministro também foi um dos melhores amigos dos jornalistas durante os sete anos (2005 e 2012) em que esteve na CADA, sendo o relator ou ajudando a aprovar inúmeros pareceres que permitiram a muitos repórteres conhecerem documentação que é pública por natureza.

Não deixa por isso de ser irónico que o advogado esteja envolvido numa luta política entre o governo e a oposição a propósito da confidencialidade dos serviços que presta ao Estado e dos interesses cruzados que o negócio da TAP contém. Tal como o seu pensamento sobre a matéria está nos antípodas do do seu amigo António Costa – conhecido na Câmara de Lisboa por recusar responder a requerimentos de jornalistas para consultar documentação pública, mas que na noite desta terça-feira começou a libertar informação sobre o acordo feito com Diogo Lacerda Machado.

A exposição pública a que tem sido sujeito nos últimos dias, não só com os ataques do deputado Luís Ramos, do PSD, à falta de transparência da sua contratação, como também com as críticas que os partidos da maioria (PCP e Bloco de Esquerda) igualmente teceram à forma como António Costa conduziu o processo, não deve agradar Diogo Lacerda Machado.

A discrição, juntamente com a sobriedade e (enorme) paciência com que conduz qualquer processo de negociação, são a sua imagem de marca — que não se compadece com o facto de a sua fotografia aparecer nas primeiras páginas de jornais e em noticiários na televisão. Lacerda Machado é daquelas pessoas que não gostam de aparecer e que não se põem em bicos de pés para ganhar protagonismo — ao qual é avesso e que sempre deixou para António Costa.

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Foi precisamente essa discrição que Diogo Lacerda Machado impôs à Associação dos Lesados do Papel Comercial do BES quando começou a trabalhar em setembro no dossiê “lesados do BES”. Estávamos em plena pré-campanha eleitoral e António Costa tinha-se comprometido 24 horas antes com o líder daquela associação em encontrar canais de comunicação com os reguladores para resolver um problema que marcou a pré-campanha do PSD. Na sua primeira reunião com o advogado da associação (Luís Miguel Henrique), nas instalações da Geocapital, na Quinta Patiño, Lacerda Machado solicitou total confidencialidade sobre as negociações que viriam a dar lugar ao memorando de entendimento que foi assinado em março entre os “lesados”, o Banco de Portugal e a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários. Foi a sua primeira mediação bem conseguida. Outras se seguiriam, como a renegociação da privatização da TAP e o acordo entre o CaixaBank e Isabel dos Santos no BPI.

A amizade de uma vida

António Costa e Diogo Lacerda Machado são os melhores amigos desde o tempo da Faculdade de Direito. Lacerda Machado casou-se primeiro do que Costa (aos 22 anos, com Teresa Alvarenga, depois de ter sido pai aos 17) e foi padrinho de casamento do primeiro-ministro com Fernanda Tadeu. Foi com Diogo e Teresa que António Costa e a sua mulher celebraram o casamento – num copo-de-água numa hamburgueria na baixa de Lisboa, antes de António e Fernanda partirem para a lua-de-mel em Veneza.

Diogo e António procuraram juntos a sua primeira casa de adultos junto do empreiteiro favorito da juventude lisboeta dos anos 80: a empresa municipal EPUL. Procuraram primeiro no Restelo, mas tiveram de seguir para uma zona mais acessível — Carnide. Candidataram-se ao sorteio e enquanto o casal Costa/Tadeu ganhou o seu T0 logo na primeira ronda, o casal Machado/Alvarenga teve de aguardar mais um pouco na lista de espera antes de duas desistências lhe abrirem as portas da nova casa.

Cada T0 da EPUL em Carnide custava 3600 contos, mas tiveram um desconto de 170 contos por via do Cartão Jovem, que dava os seus primeiros passos depois da entrada de Portugal para a então Comunidade Económica Europeia (hoje, União Europeia).

Enquanto o seu amigo António começou a estagiar no escritório de advogados Jardim, Sampaio, Caldas e Associados (onde estava o seu tio Jorge Santos), Diogo, que queria ser advogado desde os sete anos, começou por ser monitor de Direito Processual Civil na Faculdade de Direito de Lisboa (entre novembro e dezembro de 1985), tendo sido manager trainee na empresa alimentar FIMA-LEVER-IGLO entre janeiro e junho de 1986 e consultor jurídico do Fundo de Turismo e da Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa entre junho de 1986 e agosto de 1988.

Foi António Costa quem ajudou Diogo Lacerda Machado a ter a sua primeira etapa política. Estávamos em 1988 e Magalhães e Silva (advogado do escritório de Jorge Sampaio e de Castro Caldas e hoje membro do Conselho Superior do Ministério Público por indicação do PS) estava de partida para Macau, onde seria secretário-adjunto para a Administração e Justiça de Macau. Magalhães e Silva precisava de assessores e, instado a indicar nomes de colegas de faculdade, Costa lembrou-se de três: Diogo Lacerda Machado, Eduardo Cabrita (hoje ministro-adjunto de António Costa e companheiro de partido de longa data) e Pedro Siza Vieira (sócio do escritório Linklaters). Escolhas premonitórias, portanto.

Jorge Coelho, que chegou a Macau no mesmo período, recorda este grupo de três assessores como muito unido, profissional e trabalhador — e com algum jeito para o futebol. Num dos vários campos sintéticos do território sob administração portuguesa, o manager Coelho costumava reunir um grupo de 13 portugueses para um jogo semanal de futebol, juntamente com outras figuras conhecidas como, entre outros, Francisco Murteira Nabo.

Lacerda Machado regressou a Lisboa em 1990 — ao contrário de muitos dos militantes do PS que preferiram ficar até existirem condições para derrotar o cavaquismo que reinava em Portugal. Mas acabou por ser a sua passagem por aquele território que marcaria a sua carreira profissional. Dois anos após o regresso, tornou-se diretor da Interfina, SGPS, subindo à administração de diversas sociedades participadas entre 1992 e 1995. E foi na Interfina, que hoje se chama Geocapital, que Lacerda Machado se voltou a cruzar com Macau através do principal empresário macaense, Stanley Ho.

A entrada no governo

A proximidade com António Costa manteve-se ao longo de toda a década de 90. Foi com Costa como secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares (e mais tarde ministro) que Lacerda Machado chegou a vogal do Conselho Superior da Magistratura eleito pela Assembleia da República e indicado pelo PS — onde esteve durante dois anos, entre outubro de 1997 e outubro 1999.

Foi neste ano que Lacerda Machado entrou para o segundo governo de António Guterres. Após a célebre eleição de 1999, em que por um deputado o PS não conseguiu a maioria absoluta, o ministro António Costa convidou o seu melhor amigo para secretário de Estado da Justiça. Foram dois anos em que continuou a ser discreto. Foram lançadas as primeiras sementes do Cartão de Cidadão e da informatização dos registos, que seria executada pelo primeiro governo de José Sócrates por outro ‘costista’, João Tiago Silveira.

Quando saiu do governo, Lacerda Machado mergulhou definitivamente no mundo dos negócios. Chamado novamente por Stanley Ho para a Geocapital, Lacerda Machado chegou a membro do Conselho Geral e de Supervisão da EDP (julho de 2006) e à administração de várias sociedades participadas pelo empresário macaense, como o Moza Banco (Moçambique) e o Banco da África Ocidental (Guiné-Bissau), tendo chegado a ser candidato ao Conselho Geral e de Supervisão do BCP.

Esteve envolvido igualmente no negócio que está sob investigação judicial do Ministério Público e da Polícia Judiciária: a compra da empresa brasileira VEM – Varig, Engenharia e Manutenção.

Fernando Pinto, o gestor brasileiro que revolucionou a TAP, queria comprar a Varig e encontrou na Geocapital um parceiro financeiro fundamental — mas duro negociador. Lacerda Machado, que foi administrador da VEM entre fevereiro de 2006 e março de 2007, participou nas negociações, que tinham as seguintes condições:

  • A compra da VEM e da Varig Log (transportadora de carga) custou à TAP cerca de 62 milhões de dólares (54,3 milhões de euros).
  • A compra foi financiada pela Geocapital (21 milhões de euros) e pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Económico e Social (42 milhões de euros)
  • Caso a compra da Varig falhasse, como veio a acontecer, a TAP era obrigada a adquirir a parte da Geocapital no negócio com o acréscimo de um prémio de 20% para a empresa de Stanley Ho. E assim foram pagos mais 4,2 milhões de dólares (3,7 milhões de euros) à Geocapital, que estão a ser investigados pela PJ.

O maior problema no inquérito, onde se investigam suspeitas de gestão danosa e de corrupção, são os prejuízos de mais de 500 milhões de euros que a VEM já provocou à TAP. Pelo meio, há despesas de mais de um milhão de euros a escritórios de advogados que estão por explicar.

A TAP regressou à sua vida quando o seu amigo António Costa lhe pediu que, depois de ter começado a ajudar no dossiê dos “lesados do BES”, entrasse nas negociações para o Estado voltar a ter 50% do capital social da TAP.

Lacerda Machado não conseguiu os 51% que António Costa queria, mas acabou por conseguir aumentar a influência do Estado nos destinos estratégicos da companhia — num negócio que está muito longe de terminar.

Foi precisamente com esta participação no negócio da TAP que o papel do conselheiro especial do primeiro-ministro começou a ser atacado por “falta de transparência” pelo PSD.

Depois de os próprios partidos da maioria (PCP e Bloco de Esquerda) terem criticado a “sobranceria” com que António Costa explicou a participação do seu “melhor amigo” como representante do Estado sem contrato, o primeiro-ministro acabou por recuar na noite desta terça-feira, julgando “atendível a crítica de que a forma dessa colaboração” e a ausência de um contrato “podia significar a desconsideração do valor do trabalho”. E assim se ficou a saber Diogo Lacerda Machado vai prestar serviços de “consultadoria estratégica e jurídica, na modalidade de avença, em assuntos de elevada complexidade e especialização, que inclui designadamente:

  • Emissão de pareceres jurídicos;
  • Assessoria no âmbito de processos negociais, incluindo mediação e conciliação;
  • Elaboração de relatórios, acordos, memorando e demais pelo gabinete do primeiro-ministro no âmbito das prestações objeto do contrato a celebrar.”

Tudo a troco de uma remuneração mensal bruta de 2.000 euros, acrescido de IVA à taxa legal em vigor, e até 31 de dezembro de 2016.

Eis um ato de transparência que Diogo Lacerda Machado, como conselheiro da CADA, não deixaria de elogiar.