Estamos a assistir a um “revivalismo da esquerda”, através de uma “combinação das políticas identitárias com as preocupações económicas”, mas também a um “ressurgimento da extrema-direita”. Essa foi uma das conclusões sobre o presente trazidas por David Priestland, professor de História Moderna na Universidade de Oxford, na aula inaugural do doutoramento em História da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova deste ano letivo.
O historiador e autor da obra “A Bandeira Vermelha — História do Comunismo”, publicada pela Editora Texto, e do mais recente “Merchant, Soldier, Sage: A New History of Power” (sem edição em português) veio a Lisboa para dar uma conferência intitulada “Visions of October”, a propósito do centenário da Revolução de Outubro, que se assinala no dia 7 do próximo mês (a diferença de dias prende-se com o atraso do calendário juliano, que vigorava na Rússia em 1917, para o nosso gregoriano). Durante mais de uma hora, Priestland ilustrou as várias lentes pelas quais o mundo tem olhado para o comunismo: a visão económica, a agrária, a anti-imperialista, culminando na derrota da “velha esquerda” no Maio de 68 — um episódio que “se à primeira vista parecia ser um revivalismo de 1917, acabaria antes por marcar o seu declínio”, diz.
Antes da aula, onde teve direito a casa cheia, o historiador falou com o Observador. Aterrado apenas algumas horas antes, vindo da China, sentou-se para falar sobre a Revolução de Outubro, mas a conversa teimou em resvalar para a discussão sobre os dois sistemas que o fascinam: “As duas ideologias globais mais influentes dos séculos XX e XXI: o comunismo e o liberalismo de mercado”.
Qual é o propósito de se assinalarem os 100 anos da Revolução de Outubro? O que é que a Revolução de Outubro tem para ser tão importante?
É claro que a Revolução de Outubro não é tão importante para a política de hoje em dia como era há 50 ou 70 anos, mas é um dos eventos mais importantes da História mundial do século XX. Marca o início de um período específico da História, quando uma visão particular do socialismo se tornou muito poderosa. É um daqueles acontecimentos, como a Revolução Francesa ou a Primeira Guerra Mundial, que mudaram o mundo. E ainda tem uma herança. O partido comunista é uma parte muito relevante na política chinesa, por exemplo, e a China é uma das maiores potências do mundo. Por isso creio que precisamos de compreender o que foi a Revolução de Outubro, não só para a História, mas para a política contemporânea. O comunismo teve um papel muito relevante na História de alguns países, como Portugal, por exemplo.
Diz no seu livro “A Bandeira Vermelha” que o comunismo nos ensina uma lição sobre a importância de compreender os perigos das desigualdades, porque podem tornar as utopias mais fascinantes. Diria que isso está a acontecer hoje em dia? Os que estão a tirar dividendos políticos dessas desigualdades não são comunistas, estão antes à direita, como Trump, Le Pen ou Farage…
Um dos grandes objetivos do livro era mostrar que há muitos tipos de comunismo e isso é algo que muitas vezes se negligencia. Houve momentos na história do comunismo, como o período estalinista ou de Pol Pot no Camboja, que personificaram formas muito radicais de comunismo. E, pode dizer-se, promoveram ideias utópicas que se tentavam alcançar através da violência. No entanto, muita da história do comunismo está relacionada com um outro tipo de política diferente e o livro fala muito sobre a tensão entre as políticas revolucionárias e as políticas tecnocráticas.
Não tenho a certeza de que a extrema-direita atual esteja relacionada com utopias. A sua política passa muitas vezes por manter o medo de que algumas hierarquias estão a ser minadas — de etnia, raça ou cultura –, de que os grupos privilegiados estão a ser ameaçados. E é isso que tem levado à política atual.
Mas não estamos a assistir a um fenómeno de eleitores de classe trabalhadora, que votavam até em partidos comunistas por exemplo, e que agora apoiam este tipo de forças políticas?
Sim, mas eu não diria que estes partidos têm a mesma inspiração do comunismo. O que me parece que se passa com a extrema-direita é que grupos de topo, muito pró-mercado, como Trump ou os tipos do Brexit, estão a fazer uma aliança com outro tipo de pessoas em questões não-económicas. Há muita gente chateada com a desigualdade, sem dúvida. Estão chateados com o facto de a economia não os estar a ajudar e estão a ser encorajados a culpar os estrangeiros ou os migrantes por isso. Creio que estamos a assistir neste momento a uma crise da ordem mundial, da ordem mundial liberal. Já vimos isso antes, com a crise dos anos 20/30, por exemplo…
Essa comparação faz sentido?
Sim, penso que sim. Não é uma comparação direta, mas no final dos anos 20 havia um compromisso entre algumas elites para alimentar uma economia global sem ter qualquer preocupação com as desigualdades que estava a provocar. E penso que isso criou muita raiva. Com a crise financeira, houve uma espécie de quebra de confiança nesse sistema, até entre as elites. De certa forma, isso criou uma espécie de vácuo ideológico, uma falta de resposta convincente para o futuro, que levou a uma série de radicalismos. Nos anos 30 surgiram à esquerda e à direita, hoje em dia surgem sobretudo à direita. Mas o que vemos é polarização, sem dúvida.
Diz que estamos a enfrentar uma nova ordem mundial. Durante a Guerra Fria — o período em que os regimes comunistas mais vingaram –, o mundo estava organizado em dois blocos claros. Hoje em dia temos muitos líderes com relações diferentes entre si… Podemos comparar o século XX com a atualidade?
São períodos muito diferentes, sem dúvida. Os paralelos mais óbvios são com o período entre guerras, que foi o período de maior disrupção ideológica, relacionado com a crise dos mercados globais. Nesse sentido, há um paralelo entre 1929 e 2008. Mas a Guerra Fria é um período diferente, porque as questões também são diferentes — hoje não há o tema da descolonização, por exemplo.
É claro que [no século XX] havia conflitos entre esquerda e direita, mas no que toca aos mercados a polarização era menor do que hoje. Isto parece estranho de se dizer, porque havia economias planificadas e economias não-planificadas, mas a verdade é que havia um consenso de que era necessário gerir os mercados. Isso mudou tudo nos anos 70 e 80, quando os Estados perderam poder para os mercados. Independentemente do que se pense sobre isso, é certo que isso criou instabilidade. O Ocidente esteve estável nos anos 80 e 90, mas houve muita instabilidade noutras partes do mundo, como na Rússia e na Ásia.
As crises financeiras criam choques no sistema, com os quais é muito difícil lidar. Foi o que aconteceu em 2008 e não creio que seja por acaso haver esta crise nos EUA e no Reino Unido e depois haver uma subida da extrema-direita nestes países. Sei que soa um pouco a determinismo histórico, mas creio que uma coisa ajuda a explicar a outra.
O fim da União Soviética foi determinante para o caos que se seguiu no leste da Europa?
O fim da União Soviética representou muita coisa para a região. Representou o fim do Império (porque o bloco soviético era uma espécie de Império) e isso criou muita instabilidade. Acho que, a longo prazo, o bloco soviético não era sustentável — o bloco, atenção, porque a União Soviética creio que poderia ter conseguido sobreviver mais tempo. O efeito desestabilizador foi o triunfalismo dos mercados: como o comunismo foi derrotado, uma forma extrema de liberalismo tornou-se popular nos anos 90, uma forma que dizia que nos podíamos livrar das balizas aos mercados, de que o dinheiro podia circular livremente… E as pessoas ficaram muito confiantes nisso, porque sentiam que qualquer tipo de intervenção estatal era um problema. Se o comunismo — esta forma extrema de intervenção estatal — era mau, então qualquer forma de intervenção estatal era má. Isto não é necessariamente assim e não é um passo lógico. Penso que esta foi uma das consequências negativas do fim do comunismo, mas é óbvio que também houve muitas consequências positivas para as pessoas que viviam nessas regiões.
Os resultados da crise de 2008 são até agora diferentes dos da 1929. Surgirão consequências semelhantes?
Não acredito nisso. As pessoas aprenderam a lição nos anos 30. A gestão da crise nos anos 30 limitou-se a ser o que chamamos de austeridade em toda a linha. As políticas keynesianas ainda não tinham surgido e a solução era apenas cortar, cortar, cortar. A Alemanha, por exemplo, que tinha uma grande dívida, acabou por ter desemprego em massa. E, por enquanto, na atualidade ainda não vimos este desemprego em massa igual aos dos anos 20 e 30, porque alguns governos aprenderam a lição. Não quer dizer que [a resposta] tenha sido um sucesso, contudo. As soluções adotadas não têm sido a longo prazo. O Quantitative Easing pareceu resultar durante uns tempos, mas alimentou desigualdades, levou a uma subida de preços e criou empregos, mas com salários muito baixos. Vamos ter outra crise daqui a alguns anos.
Andamos apenas a arrastar-nos até lá?
Sim e acho que isso acontece porque os governos não sabem exatamente qual é a solução para isto, pelo menos no Reino Unido e nos Estados Unidos. Na Europa as coisas parecem estar um bocadinho melhores, mas será esta uma solução a longo prazo? Não é claro. Ao mesmo tempo, temos a ascensão das novas potências industriais, como a China e a Índia. Como é que é possível manter economias sustentáveis que permitam aumentar os padrões de vida dos mais jovens? Parece-me que não há respostas claras para isso. Acho que as pessoas cada vez mais pensam “as coisas não me estão a correr bem e não acredito no que estas elites me estão a dizer”. Então procuram outras soluções e muitas vezes essas soluções estão mais à direita. Em suma, eu diria que a situação é algo preocupante, mas não é igual à dos anos 20. Havia muitos conflitos territoriais nos anos 30 que já não existem. Por isso acho que não vai ser igual, não sou assim tão pessimista [risos].
Falava há pouco sobre a China. A China é um dos poucos países no mundo que se afirma como comunista, mas perdeu muitas das suas características. Outros países comunistas, como Cuba, estão a sofrer transformações. O que é ser um país comunista, hoje em dia?
Essa é uma boa questão. A China abriu os braços ao mercado e aos negócios e integrou-se muito facilmente na economia global, portanto nesse sentido não é comunista. No entanto, é gerida por um partido comunista que se baseia nos antigos princípios de um partido leninista que ainda controla grande parte da economia. É uma espécie de economia dual, em parte controlada pelo Estado, em parte pelo mercado. Eu diria que eles se denominam comunistas reformistas e têm tentado combinar o comunismo com o confucionismo, o que é uma variação interessante, um híbrido que se relaciona de alguma forma com a cultura tradicional. Atualmente há muito poucos sistemas comunistas no antigo sentido marxista-leninista de economias planificadas. O mundo comunista mudou extraordinariamente, adaptou-se aos mercados globais.
E a Coreia do Norte, conhecemos o suficiente sobre ela para saber se ainda preserva esse tipo de modelo?
Eles também têm introduzido reformas de mercado. Mas, de certa forma, a antiga cultura está mais preservada. O comunismo coreano é um produto da Guerra da Coreia e da Guerra da Independência contra os japoneses. É uma forma específica de comunismo, muito militarizada, e penso que sobreviveu muito em parte graças à guerra e ao conflito e tensões continuadas com os Estados Unidos.
Sei que este é um exercício de futurologia, mas o que acha que vai acontecer na Coreia do Norte nos próximos anos?
Não sou um especialista na Coreia. Tudo o que posso dizer é que há divisões entre os especialistas. Há quem diga que o regime não conseguirá sobreviver muito mais tempo devido aos seus problemas económicos, embora os tenha aliviado com algumas reformas de mercado. Ao mesmo tempo, continua a seguir esta estratégia militar do nuclear, que está a alienar muitos dos seus vizinhos. Acho que depende tudo muito das sanções, se os chineses as irão aplicar ou não… Mas atualmente é uma situação muito perigosa, porque Donald Trump alterou a anterior política dos EUA que era a de serem muito cuidadosos e não aumentarem as tensões.
Vem cá para falar da Revolução de Outubro. O país mais afetado por ela foi a Rússia. No entanto, parece que o Governo não está propriamente interessado em assinalar a data ou discuti-la… Quanto do sistema soviético crê que passou para o regime atual e quanto foi renegado?
No que diz respeito à Revolução de Outubro, o Governo russo não está interessado de todo em celebrá-la. Não vão sequer assinalar a data.
Porquê?
Porque não são um Governo revolucionário. São hostis a revoluções e não gostam delas, basta ver a Revolução Laranja [série de protestos na Ucrânia em 2004], por exemplo. Putin considera-se um conservador e penso que essa é mesmo a melhor forma de o ver.
Mas ele não adotou algumas táticas da Rússia soviética? A imagem de líder paternalista, a nostalgia pelo passado soviético…
Há um elemento de encanto pelo passado, sobretudo pelo período da Guerra e da “ordem” do passado. E de certa forma isso entende-se. Putin chegou ao poder no rescaldo da crise financeira russa e penso que às vezes esquecemo-nos de que os anos 90 foram um período muito caótico para os russos, de completa roda-livre, saque da economia e empobrecimento para a maior parte das pessoas. De certa forma, Putin chegou ao poder prometendo restaurar a estabilidade e tem usado aspetos do passado soviético para se legitimar. Sim, há elementos paternalistas, mas eles remontam a um período até anterior ao soviético, e também existem noutros países. Há elementos de continuidade soviética, como seria de esperar. E é compreensível que ele queira enfatizar esses elementos, mas não os aspetos revolucionários. É o que quase todos os regimes fazem: escolhem o que resulta para si e abdicam do que os prejudica.
Falando sobre o rescaldo do fim da URSS: hoje em dia ainda assistimos a reflexos disso, seja na Ucrânia ou na Hungria, com os debates sobre a proibição dos partidos comunistas ou a remoção de estátuas dos líderes soviéticos…
É interessante que fale na questão das estátuas. Tivemos um grande debate em Oxford por causa da estátua de Cecil Rhodes, o imperialista britânico em África. E recentemente na América houve a grande discussão sobre Charlottesville e as estátuas da Confederação. As heranças dos impérios são sempre assuntos muito complicados de discutir e não sei qual é a solução para estes problemas. Uma boa solução foi a que foi adotada no Reino Unido com uma estátua de Churchill [na Praça do Parlamento, em Londres], por causa do seu papel muito controverso relativamente à Índia — em vez de a deitar abaixo, colocou-se outra estátua de Gandhi ao lado. É um tipo de solução. Outra pode ser colocar placas explicativas, como foi proposto em Bristol, onde há muitas estátuas de esclavagistas. Muita gente opõe-se à remoção de estátuas, porque consideram que é um apagar da História. Eu penso que cada caso é um caso. Mas as estátuas são objetos políticos, há que reconhecer isso.
No seu livro também escreve sobre Portugal e as tensões a seguir à revolução. Diz que o Verão Quente foi “a última revolução de inspiração comunista que falhou”. Porquê?
É interessante que, se pensarmos nas revoluções comunistas na Europa, elas ocorreram quase todas no período a seguir à Segunda Guerra Mundial. Houve revoluções de inspiração comunista na Alemanha, na Hungria, na Rússia… E só na Rússia é que uma foi bem sucedida. As revoluções comunistas tinham tendência a serem bem sucedidas em sítios onde havia sistemas económica e culturalmente estratificados — e esse era claramente o caso da Rússia, onde havia uma elite muito diferente do resto do povo. Muitas vezes havia questões relacionadas com reformas agrárias, onde os camponeses se opunham ao sistema de propriedade da terra, e é muito difícil encontrar soluções liberais ou consensuais nestas matérias. Estas condições não existiam em grande parte da Europa Central e não voltou a haver outro período de revoluções comunistas na Europa, apenas alguma influência dos comunistas na Guerra Civil Espanhola. A situação em Portugal nos anos 70 foi completamente diferente…
Mas também tinha questões relacionadas com a propriedade da terra.
Sim, tinha. Só que simplesmente não havia apoiantes suficientes de uma solução radical nas matérias de reforma agrária para permitir aos comunistas ganharem eleições. Essa é a questão. É preciso haver uma série de condições, como as que existiam na Rússia de 1917 ou em partes da Ásia nos anos 40 e 50, e que em Portugal claramente não existiam nessa altura.
Hoje em dia também não há muitos locais onde essas condições ainda existam. É por essa razão que recentemente tem optado por se dedicar mais ao estudo do liberalismo económico do que do comunismo?
É verdade, já não há muitos locais assim. Mas onde há, encontramos movimentos comunistas muito militantes, como o movimento naxalita na Índia, por exemplo. Mais uma vez, é um movimento que está ligado a trabalhadores agrários que se revoltam contra questões de propriedade da terra. São uma espécie de guerrilha marxista, diria. E é nessas condições onde se encontra o comunismo realmente radical. O meu foco agora é em matérias mais contemporâneas, relacionadas com o mundo pós-comunista e como as reformas de mercado causam impacto nos diferentes tipos de sociedade.
Esse é o desafio do presente?
Não me arrisco a fazer comparações entre o comunismo e o neo-liberalismo [risos]. O que acho interessante é como muitos regimes comunistas adotaram ideias de mercado liberais. O regime angolano, por exemplo, abriu imenso os braços ao mercado. Um antigo comunista, o sul-africano Thabo Mbeki, chegou a dizer “sou um thatcherista”… O comunismo como o entendíamos antigamente, como uma mobilização radical contra o mercado, já não existe. E, contudo, estamos a assistir a um renascimento da esquerda — que talvez se inspire nalguns elementos do passado comunista.