Os Jogos Olímpicos de 2016, realizados no Rio de Janeiro, estão aí e originam reflexões diversas de cronistas e escritores brasileiros. Alguns têm escrito sobre o assunto nas páginas dos jornais onde estendem o seu talento.
O escritor Sérgio Rodrigues, que começou a sua atividade profissional como jornalista desportivo e foi vencedor do Prémio Portugal Telecom de Literatura com o romance O Drible, já escreveu sobre o tema e conta ao Observador o seu entusiasmo em ter os Jogos Olímpicos na sua cidade mas ao mesmo tempo revela a compreensão para com o “mau humor” de quem diz que “foi um erro grave lançar a candidatura olímpica do Rio naquele momento, na embriaguez dos anos Lula”. Anos em que, nas suas palavras, “o Brasil não havia começado a arrumar a casa”. No campeonato económico, político, social, urbanístico, ambiental. “Era previsível que sobreviessem problemas em série, ainda que ninguém pudesse imaginar àquela altura uma crise nacional (e internacional, porque não?) tão gigantesca”.
Entre os escribas entrevistados, o tom dominante dos depoimentos tem a marca dos sentimentos divididos. É o “por um lado e por outro”. O escritor, jornalista e cronista Humberto Werneck revela nestes termos o seu desejo para o acontecimento: “Se o Brasil fracassar nesta Olimpíada, que seja apenas nas disputas desportivas”. Werneck, tal como Rodrigues, é colunista no Estadão e, além disso, autor de livros como O Pai dos Burros e A Vida de Jayme Ovalle. Usa, para se referir ao tema, uma formulação cronística, dando a volta ao lugar-comum. Teme “que subam ao pódio, aos olhos do mundo, as misérias de toda ordem que cada vez mais nos infelicitam, numa comprovação adicional do que tenho repetido: que há males que vêm para mal”. Werneck deixa ainda cair do bolso uma pergunta: “Será que só com uma vexatória exposição começará o meu país a tomar jeito?”.
Ruy Castro, jornalista e escritor, autor de, entre outros livros, a biografia de Nelson Rodrigues, O Anjo Pornográfico, e Chega de Saudade, sobre a Bossa Nova, quando questionado sobre o seu humor acerca do evento, saca da pistola do otimismo: “Apesar dos espíritos de porco e dos profetas da derrota, vamos ter uma grande Olimpíada. E no cenário mais bonito que os Jogos já viram desde a Grécia”.
Já António Prata, cronista da Folha de São Paulo, que em setembro lançará em território português o livro Meio Intelectual, Meio de Esquerda (Tinta da China), escreveu umas ideias mais matizadas. Está dividido “entre a alegria que as Olimpíadas sempre trazem e o desperdício de dinheiro num país tão injusto, ainda mais neste momento crítico”.
Prata faz no entanto um parêntesis na sua exposição, próprio do seu temperamento indagador: “E qual momento não é crítico no Brasil?”. Guarda a esperança de que os Jogos Olímpicos tragam algum alento a um país que tanto dele precisa. “O clima no Brasil é muito ruim, muito pessimista. Ouvir na estreia da selecção feminina a torcida gritar ‘Brasil! Brasil’, feliz, foi uma lufada de ar fresco”.
O Rio sabe superar-se
A autora de A Casa das Rosas (Quetzal, 2015), prémio Livro do Ano da revista Time Out, Andréa Zamorano, brasileira há muito tempo a viver em Lisboa, começa por puxar o brilho a quem nasceu no Rio: “Ser carioca não é apenas um gentílico para quem nasce na cidade maravilhosa, é um estado de espírito. E os cariocas adoram ser cariocas. Têm orgulho na sua cidade, nas suas belezas naturais, na capacidade criativa da sua gente”. Andréa sublinha no entanto as zonas negras do processo que conduziu aos Jogos Olímpicos no Rio. Começa por classificar as vilas olímpicas como “apartamentos de ricos” e dá um exemplo do que entende ser uma das injustiças decorrentes da empreitada. “Admiro-me que o Comité Olímpico Internacional e as delegações estrangeiras não achem um despautério a construção de condomínios inteiros que não são pagos pelo referido comité, nem serão doados para a caridade depois do evento, numa cidade rodeada de favelas por todos os lados para um evento de quinze dias”.
Andréa defende que é do mencionado modo de ser carioca que virá a energia decisiva para o bom funcionamento destes Jogos. E faz um comentário: “Não será graças à gestão do prefeito do Rio de Janeiro, sobre quem recaem suspeitas de contratos superfacturados pelas empreiteiras que financiam o seu partido”. As Olimpíadas de 2016 serão bem-sucedidas “porque os cariocas amam a sua cidade ainda que ela seja caótica, facciosa, racista e perigosa”. Porque são “engenhosos”. E porque têm vasta experiência em eventos de grande dimensão. “Faz muitos anos que inventaram o ‘Carnaval Carioca’, onde só este ano participaram um milhão de turistas numa festa de quatro dias” (na Olímpiadas são esperados 360.000). Os seus compatriotas sabem e gostam de receber, lembra. “E o Rio sempre soube se superar, tanto para o mal quanto para o bem”.
Julián Fuks, finalista do Prémio São Paulo de Literatura, ao lado de autores como Mia Couto e Bia Bracher, começa a sua resposta por revelar, como outros, a sua ambivalência perante as Olímpadas no seu país. É, para ele, “evidente que este não seria o melhor momento para recebê-los”. Fuks categoriza o governo que se autoencarrega de promovê-los como “ilegítimo” e salienta o facto de o evento se valer de uma grande dose de violência: “Desaloja de suas casas milhares de pessoas, estimula a especulação imobiliária, desvia fundos que estariam mais bem investidos em outros quereres, na preservação de tantos direitos ameaçados, sugeriria alguém de bom senso”.
Ainda assim, não vê utilidade em torcer pelo fracasso do acontecimento. “Não parece haver sentido em desejar que a tristeza tome conta da festa. Não, os jogos não podem ser isso, têm que ser algo mais premente”. Mesmo considerando as reticências, o escritor quer fugir de um pessimismo estéril ou que alimente o cinismo e o retrocesso. “Me vejo a ansiar pela festa, por seus momentos marcantes, pela dança dos corpos a insinuar o valor da vida, do convívio, da resistência a devolver algo que por vezes julgamos perdido: algum sentido, alguma essência”. Refira-se que Resistência é justamente o título do seu romance, editado em Portugal pela Companhia das Letras.
Pornolímpicos
Reinaldo Moraes, autor do canónico e hilariante Pornopopeia, a analisar o momento e as suas dificuldades de circunstância, apresenta as suas dúvidas perante os princípios fundadores deste tipo de competições. Faz perguntas como esta: “A quanto esforço brutal pode um jogador de futebol ou de basquetebol submeter o seu corpo antes de tendões, músculos, ligamentos, artérias e ossos rebentarem na quadra diante da plateia ululante a exigir todo o sangue, suor e lágrimas que eles puderem dar?”.
Para Moraes, desportos competitivos de alta performance são demasiadas vezes formas de tortura e “superexploração física” a que jovens, muitas vezes pobres, se expõem na busca por “fama e grana”, emulados por “treinadores ditatoriais e mercadólogos” que pretendem associar os feitos dos atletas à imagem de “empresas vencedoras ou de países fortes”.
Termina a sua reflexão, contando uma história que é um breve e divertido tratado de filosofia existencialista. Há algum tempo atrás, tinha como hábito nadar na piscina do clube Pinheiros, em São Paulo, três vezes por semana. Era uma forma de compensar o sedentarismo de quem passa horas numa cadeira, diante do computador. Deixava ao critério do seu corpo decidir a que velocidade cumpriria os 1.500 metros que percorria na piscina “em cada sessão natatória”. Se estava com preguiça, nadava “feito um urso velho e gordo”. Se caía na água cheio de energia, “metia braços e pernas com gosto na água”. Nadava aqueles 1.500 metros em 30 ou 40 minutos, a depender do dia, “e me sentia muito bem, obrigado”.
Um dia passou ao seu lado um “torpedo humano” que, durante o tempo em que Moraes demorava a percorrer 25 metros, “devorava uns 150 metros”. A certa altura, estacionaram, ele e o torpedo, na borda da piscina. Ficou então a saber que estava perante um craque chamado Gustavo Borges, vencedor de quatro medalhas olímpicas. “Ele tinha muita pressa dentro de água, aquele lá. E para chegar onde? Ali mesmo, ora, onde estávamos agora, eu sem medalhas, ele todo condecorado, tendo passado mais da metade de sua vida adulta em treinos esfalfantes numa piscina”. O autor do livro de crónicas “O Cheirinho do Amor”, editado o ano passado por estas bandas, pensou, com orgulho, que não trocaria sua performance de nadador ocasional pelo ritmo das braçadas do seu companheiro de piscina. “Eu curtia em boa paz e sossego cada minuto da minha natação. Ele corria contra o relógio, quase sem tempo de respirar”. Para quê? É o que nunca lhe perguntou. “Por não ter, talvez, nenhum interesse na resposta”.
Nuno Costa Santos, 41 anos, escreveu livros como “Trabalhos e Paixões de Fernando Assis Pacheco” ou o romance “Céu Nublado com Boas Abertas”. É autor de, entre outros trabalhos audiovisuais, “Ruy Belo, Era Uma Vez” e de várias peças de teatro.