Encerrando um rico ciclo de comemorações dos 250 anos de Manuel Maria Barbosa du Bocage — iniciado em Setembro de 2015 com a publicação, pela Imprensa Nacional, do álbum ilustrado Bocage, a Imagem e o Verbo de Daniel Pires, 65, seu persistente editor, biógrafo e comentador —, a Câmara Municipal de Setúbal promove um congresso internacional dedicado ao poeta ali nascido e que também assinou com o pseudónimo de “Lemano Sadino”.
No Fórum Municipal Maria Todi, de 12 a 14 próximos, em sessões de entrada livre, diferentes facetas da vida e obra de Bocage serão escrutinadas numa verdadeira maratona de quarenta comunicações que abordam temas como “Bocage e o seu tempo, as artes e a sociedade”, “A poesia de Bocage e estilos poéticos”, “Bocage tradutor/traduzido”, “Bocage e mundo da língua portuguesa” e, tão importante quanto os demais, “O legado de Bocage”.
Paralelamente há um circuito urbano evocativo do poeta, uma exposição — quase inevitável… — de pintura de Manuel João Vieira intitulada “Bocage Malcriado” (na Casa da Cultura, até dia 29, quando será lançado o respectivo álbum, com um longo ensaio de António Cabrita, numa iniciativa da editora Abysmo), e o encerramento das comemorações será feito com uma escala da digressão da Orquestra Metropolitana de Lisboa, que, de quinta-feira dia 15 a domingo 18, tocará no mesmo Fórum uma integral das sinfonias de Ludwig van Beethoven, um contemporâneo do poeta sadino.
O homem das transformações
Se em 1905 celebrou com especial orgulho o centenário da sua morte com a edificação dum obelisco-estátua numa praça central, a cidade chama agora a si a tarefa de redescobrir Bocage para além do mito, depois de em 2005 ter viabilizado o Centro de Estudos Bocageanos que havia sido criado para divulgar-lhe a obra e contribuir para a “reformulação da sua imagem, associada a estereótipos redutores”.
Aliás, o poeta é de tal modo um ícone de Setúbal que o dia do município coincide com o do seu nascimento (15 de Setembro), o liceu da cidade e um velho asilo de inválidos receberam o seu nome, e um painel de azulejo evocativo da sua figura foi instalado no exterior dum centro comercial no já longínquo 1979. No salão nobre dos paços do concelho, Bocage surge como figura ilustre de Setúbal no centro duma pintura de grandes dimensões. Ali nasceu, ali pouco viveu, mas historiadores admitem que foi através do porto local, menos vigiado pela polícia de Pina Manique, que entraram em Portugal livros que terão influenciado Bocage, cuja vida, embora curta — pois faleceu com 40 anos apenas —, coincidiu com grandes rupturas na política e na cultura europeia, por influência directa da Revolução Francesa, em 1789-99.
Essa circunstância, a sua sólida “bagagem” tanto clássica como contemporânea, uma vida extremamente aventurosa, que igualmente incluiu viagens, deserções, cárcere e penúria, e sem dúvida um idêntico temperamento irreverente, aproximaram-no de Luís de Camões — que também foi celebrado, em 1900, com imensa pompa e circunstância.
Com antepassados franceses (a sua tia-avó foi poetisa notável, autora de La Colombiade — dedicado a Cristovão Colombo, 1746 — e de Le Paradis terrestre. Poème imité de Milton (1748); o seu avô normando ficou célebre na defesa do Rio de Janeiro) e familiares portugueses que se distinguiram nas ciências botânicas e na administração pública, Bocage foi retratado de 1799 a 1804 por quatro pintores — Máximo Paulino dos Reis, Domingos e Henrique José da Silva e José de Almeida Furtado.
Um sinal claríssimo do prestígio alcançado enquanto homem de letras especialmente ligado à Casa Literária do Arco do Cego e à própria Impressão Régia, mas também à recém-criada Academia das Belas-Letras (e isso facilitou-lhe créditos nas classes ditas ilustradas), mas da qual depressa se incompatibilizou, discordando do elogio mútuo instituído como regra e outras aberrações afins (ainda hoje persistentes). Acabou por fustigá-la com “poemas letais” que lhe deram toda uma reputação, tanto quanto a participação em tertúlias nos botequins da baixa lisboeta onde se conspirava sob a influência dos delirantes fumos revolucionários soprados de uma Paris a ferro, fogo e terror.
Arqueologia literária
A sátira explosiva e o repentismo corrosivo, que haviam tornado Bocage célebre, acabariam por levar a polícia a sua casa em Agosto de 1797, fazendo da apreensão da “Epístola a Marília”, um poema erótico e anticlerical, o pretexto útil ao encarceramento do poeta durante um ano em celas do Limoeiro e do Palácio da Inquisição (Rossio), e depois ainda a uma temporada de “reeducação” no Hospício das Necessidades.
Anos depois, em 1803, a denúncia da sua filiação maçónica pela filha dum amigo criou-lhe novos problemas com o autocrático Pina Manique. A própria Casa Literária do Arco do Cego havia sido encerrada dois anos antes, devido a irregularidades de gestão, deixando-o ainda mais desprotegido. Mesmo assim, apesar da saúde em cacos e da penúria mais agravada, a fecundidade literária de Bocage teve nestes derradeiros anos de vida um extraordinário impulso, quase sublimar, sendo especialmente referido o tomo das Rimas dedicado à Marquesa de Alorna e condessa de Oyenhausen, também ela perseguida por Manique. A proximidade da morte precoce levou-o a escrever febrilmente, ditando Improvisos reunidos em dois volumes e ainda um livro chamado A Virtude Laureada, que já não pôde ver impresso.
Daniel Pires considerou em 2005, numa apresentação das Fábulas de Bocage que são afinal traduções ou adaptações das de La Fontaine, que a obra do poeta carecia ainda do estabelecimento rigoroso do corpus, e de facto nas notas de rodapé que o incansável estudioso (certa vez e a outro propósito eu disse ser notável que homem tão pequeno fizesse obra tão grande…) escreveu para seis volumes de Bocage na hoje extinta editora portuense Caixotim, de Paulo Samuel, em 2004-5, é possível perceber o esforço realizado para fixar (e por vezes refutar) a autoria, pretéritas publicações e outra genealogia editorial dos versos bocageanos. Um trabalho de arqueologia literária que nunca deixou de ser feito desde então e terá efeito prático numa nova edição da obra completa de Bocage a lançar pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda em data a anunciar, mas que o editor nos garantiu estar próxima.
Só então será possível avaliar o progresso que ela representará sobre essa outra da Caixotim, hoje inacessível em livrarias dada a falência do editor Paulo Samuel — a primeira, de resto, a integrar as Poesias eróticas, burlescas e satíricas na obra completa de Bocage! —, mas foi contextualizada em centena e meia de páginas introdutórias assinadas por Daniel Pires, a qual veio destronar irremediavelmente a edição Bertrand dirigida em 1969-73 por Hernâni Cidade, e a primeira fixada com critérios filológicos modernos.
Embora essa nova edição da Imprensa Nacional vá aparecer já para lá do término destas comemorações, é preciso dizer, ou repetir, que esse é o caminho certo e necessário, pois falta ao cânone literário português esse trabalho — de resto nunca concluído — de progressiva fixação textual melhorada, baseada na consulta de materiais sobreviventes, postos a descoberto directa ou casualmente, e dum mais apurado conhecimento da época e seus protagonistas. Daniel Pires já havia alertado para o facto de a biografia de Bocage se encontrar “eivada de verdades, de meias verdades e de hiatos”, mas no fim do dia o mais importante que pode ser feito por um escritor deste calibre — a pretexto de alguma efeméride ou não — é certamente a fixação da sua obra e a respectiva divulgação em livros de preço acessível.
Redescobrir Bocage
Foi precisamente a ausência desse reconhecimento do trabalho poético de Bocage, das suas sólidas e inesperadas fontes e da sua originalidade impactante, que terá facilitado a sua banalização quase patética, que o reduziu a uma espécie de personalidade caricatural da literatura portuguesa, um autor simplesmente histrónico, iconoclasta, anedótico e pornográfico. Tal ideia, que foi prevalecendo e se instalou, não podia ser mais enganosa. A sua biografia pelo brasileiro Adelto Gonçalves tem precisamente como título Bocage: O Perfil Perdido (Caminho, 2003, 478 pp.).
Por exemplo, numa tese de 2004 apresentada à Universidade do Minho, Florence Jacqueline Nys estudou as “fontes francesas das Cartas de Olinda e Alzira de Bocage”, estabelecendo-lhe parentescos com livros ditos pornográficos como Thèrese philosophe do marquês de Argens ou L’Academie des dames, ou la philosophie dans le boudoir du grand siècle: dialogues érotiques. Bocage também teve grande perspicácia ao publicar algumas das suas traduções em edições bilingues, denotando uma consciência autoral e literária avançada para a época.
O congresso de Setúbal e a nova edição da obra completa de Bocage, revista e melhorada, também em parceria com a autarquia, pode e deve servir a outros municípios como exemplo da forma mais digna de honrar a memória e a obra de um dos seus, em vez da completa indiferença ou de — às costas do seu bom nome e prestígio — se promoverem “festivais literários” que muito pouco têm a ver, afinal, com o escritor em celebração e são, no fundo, iguais a tantos outros e uma enorme despesa inútil. E serve também para provar que a caturrice de alguns consegue por vezes suprir aquilo que o Estado central, lento pelo peso do seu próprio corpo, continuamente se demite de fazer, sob o perpétuo pretexto da falta de meios, quando a razão é quase sempre o seu desperdício ou uso deficiente.
Uma tão poderosa bateria de contribuições como a deste congresso vai certamente alterar o nosso conhecimento sobre a vida e obra de Bocage, permitindo-nos esperar que possa ser relida em melhores condições editoriais e, citando o poeta em diferente contexto (que se adivinha), “E seja isto já; que é curta a idade, | e as horas de prazer voam ligeiras.”
Mais informações sobre o congresso aqui.