Um dos argumentos mais invocados pelos adversários de práticas sexuais e geometrias familiares que se desviem dos padrões vigentes na sociedade ocidental – nomeadamente as relações homossexuais, a adopção por casais homossexuais – é de que aqueles não são naturais, no sentido de que não se observam no mundo natural.
É um argumento extraordinário a dois níveis: por um lado, porque quem a ele recorre com mais frequência e assertividade no espaço mediático são pessoas com formações que não contemplam as ciências da vida, como sejam juristas, economistas, arquitectos e representantes de credos religiosos. Por outro, porque presume que “o que é natural é bom” e a sociedade humana deve replicar as práticas do reino animal.
O conhecimento do reino animal de muitos defensores dos “valores da família” parece, nalguns casos, ter sido moldado pelos antropomorfizados e depurados pseudo-documentários e ficções com que as produções Walt Disney vêm colonizando o imaginário mundial há décadas e que contribuíram decisivamente para a implantação de uma visão simplista, sentimental e edulcorada da natureza.
Não só se transpõem para o mundo animal valores, atitudes e comportamentos típicos das sociedades humanas ocidentais, como a sociedade humana que a tomada como referência é uma criação particularmente puritana e enviesada – veja-se como no universo do Pato Donald e do Rato Mickey a obsessão por remover qualquer sugestão de cariz sexual vai ao ponto de suprimir as relações pai-filho e criar um mundo feito de tios e sobrinhos.
A verdadeira vida sexual dos animais anda muito longe de Bambi, revelando uma natureza “cruel e amoral”, ou melhor, completamente alheia aos sistemas de valores da sociedade humana.
Leões: um modelo de nobreza para os humanos?
Tome-se o caso dos leões, que suscitaram recentemente uma onda de comoção global com a morte, em Junho passado, de Cecil, o macho de 13 anos que era a atracção do Parque Natural de Hwange, no Zimbabwe, por um dentista norte-americano que terá pago 50.000 dólares por tal “privilégio”.
Entre o tom dominante de indignação contra esta morte gratuita, alguns media fizeram também soar uma nota dissonante, que concerne o destino que, muito provavelmente, aguarda as 12 crias geradas por Cecil.
As relações familiares entre leões são bem diferentes do que é retratado em O Rei Leão: os leões vivem em grupos que, tipicamente são constituídos por um ou dois machos e meia dúzia de leoas e as respectivas crias, mas podem, nalguns casos, atingir um total de 20 ou 30 membros. Quando o macho dominante morre ou é derrotado e posto em fuga por outro macho, o novo senhor do harém, seja ele o n.º2 da hierarquia ou um leão “de fora”, tem por hábito matar todas as crias do seu predecessor. Isto não só elimina os genes da concorrência como leva as leoas que estavam a amamentar as crias a tornarem-se sexualmente receptivas e prontas a gerar descendência para o novo macho dominante.
Não é previsível que os que querem submeter a sexualidade humana às “leis naturais” aprovem esta prática, tal como é pouco provável que vejam com bons olhos a frequência com que os leões têm sexo: no período de cio, leões e leoas podem copular várias dezenas de vezes por dia, pertencendo o recorde a um macho que teve 157 cópulas com duas fêmeas em apenas 55 horas.
Os que estão ao lado de João Morgado, deputado do CDS cujo renome decorre de, em 1982, num debate sobre a legalização da interrupção voluntária da gravidez, ter defendido que o único fito do acto sexual é a procriação, o que lhe valeu ser imortalizado num poema escarninho de Natália Correia , ficarão desconsolados com tão manifesta demonstração de luxúria, para mais no Rei dos Animais, de quem seria de esperar um comportamento exemplar.
Porém, o frenesim copulatório leonino não será explicado pela diversão ou pela luxúria: visa apenas a procriação, já que as fêmeas têm alguma dificuldade em engravidar e a ovulação é estimulada pela cópula. Há indícios de que noutros felinos, grandes e pequenos, as fêmeas enfrentam dificuldades análogas em engravidar, embora não se compreendam as vantagens adaptativas destas idiossincrasias – o assunto é ainda nebuloso, já que, por razões compreensíveis, não é fácil aos investigadores imiscuírem-se na intimidade de leões, tigres e leopardos.
Convém esclarecer que, como na maioria dos felinos, gato doméstico incluído, o pénis do leão está revestido por numerosos espinhos que, ao que se supõe, têm a dupla função de desalojar o sémen de outros machos da vagina das fêmeas e estimular a ovulação – e explicam as reacções particularmente acrimoniosas de leoas e gatas quando montadas pelos machos.
Marinho Pinto e os pintos das aves marinhas
Deixemos os leões dormir o seu sono – são compreensíveis as 18-20 horas diárias que consagram a esta actividade, dado ao carácter extenuante dos seus deveres conjugais – e examinemos o argumento de Marinho Pinto, conhecido opositor da adopção por casais homossexuais: “família natural é com um pai e com uma mãe”.
Ora, em várias espécies de aves marinhas que vivem em colónias tem sido registada a ocorrência de casais de fêmeas que repartem as tarefas de construção e defesa do ninho e incubação dos ovos (que, está claro, foram fertilizados por machos que fazem parte de casais heterossexuais) e até podem exibir comportamentos típicos de macho em relação à sua parceira – nos albatrozes-de-Laysan observou-se que se um macho tenta seduzir uma das fêmeas, a outra reage de forma possessiva e agressiva, como se fosse o macho do casal.
A constituição de casais de fêmeas é mais frequente quando o rácio machos/fêmeas da colónia é inferior a 1 e tem sido observado, além de albatrozes, em gaivotas, andorinhas-do-mar, pardelas e petréis. Uma vez que nos albatrozes prevalecem as relações monogâmicas, uma vez formado um casal homossexual, este mantém-se de ano para ano, mesmo que a disponibilidade de machos aumente nos anos seguintes.
A probabilidade de sobrevivência das crias dos casais homossexuais de aves marinhas costuma ser um pouco inferior à dos casais heterossexuais, mas atendendo a que, nestas espécies, um progenitor isolado não tem qualquer hipótese de criar descendência (se se ausentar do ninho em busca de alimento, ao regressar já não terá ovos ou pintos), o recurso ao emparelhamento homossexual é compensador.
Já é mais raro que um casal de machos assuma a responsabilidade de criar descendentes, já que não dão à luz nem põem ovos. A dupla de pinguins Roy e Silo, do Central Park Zoo de Nova Iorque, tornou-se famosa em 2004, quando os tratadores, ao observarem que os dois machos se comportavam como um casal, lhes confiou um ovo de um casal heterossexual. Roy e Silo desempenharam as funções maternais/paternais a contento e o seu rebento adoptivo cresceu e tornou-se num adulto, e o mesmo ocorreu mais recentemente num zoo em Kent, no Reino Unido.
Com mais ou menos eco mediático, a constituição de casais de pinguins machos em cativeiro tem sido reportada com frequência – e Roy e Silo nem sequer foram os primeiros. Num zoo em Harbin, na China, foi observado um casal de machos que, não dispondo de ovo, tentou por várias vezes roubar um aos outros casais (substituindo-os por pedras com que julgavam ludibriar os verdadeiros progenitores), e num zoo alemão tentou reconduzir-se um casal de machos a uma “orientação sexual” mais ortodoxa, mas nenhum deles quis saber das fêmeas com que os tratadores os tentaram seduzir.
Os comportamentos em cativeiro não podem ser considerados típicos, mas no seu habitat natural também tem sido observada a constituição de casais homossexuais entre pinguins, geralmente quando o rácio macho/fêmea da colónia está desequilibrado – mas aqui os emparelhamentos homossexuais não conduzem à criação de pintos e acabam por desfazer-se quando os seus membros arranjam par de outro sexo.
A Gay Parade do reino animal tem representantes de pelo menos 500 espécies
As relações homossexuais no reino animal não se confinam às aves marinhas. Basta passar da água salgada para a doce (ou para a capoeira): no pato-real (Anas platyrhyncos), espécie em que o comportamento sexual dos machos é particularmente belicoso e abrutalhado (são usuais as “violações em grupo” de uma fêmea por vários machos), estima-se que 10-19% dos casais que se formam em cada época reprodutiva sejam formados por indivíduos do mesmo sexo.
O comportamento homossexual tem sido observado em várias espécies de golfinhos, que, em abono da verdade, parecem fazer pouca discriminação em relação aos seus parceiros sexuais, não desprezando tartarugas e tubarões. No golfinho-do-Amazonas (ou boto-cor-de-rosa) têm sido vistos, inclusive, machos a inserir o pénis no orifício respiratório de outros machos (haverá quem ache tal prática repugnante num animal tão “querido” e “fofo”, mas também haverá quem lamente que só algumas espécies privilegiadas possam experimentar os prazeres do sexo nasal).
[Golfinhos machos “brincam” no SeaWorld]
No nosso parente mais próximo, o chimpanzé-pigmeu ou bonobo (Pan paniscus), o sexo desempenha um importante papel social: 75% da sua actividade sexual não tem a ver com reprodução, funcionando como forma de dissipar tensões, resolver conflitos e cimentar relações sociais. A eficácia desta estratégia é ainda mais notória por contraste com a agressividade reinante nos grupos de chimpanzés-comuns (Pan troglodytes), que, sendo promíscuos, não usam o sexo como “lubrificante social”.
A actividade sexual entre os bonobos é frequente e não olha a sexo nem a idades – podem ver-se (as palavras são de Jesse Bering em Perversões) ”bonobos adultos machos a acariciarem ‘naturalmente’ machos ainda imaturos e bonobos adultos fêmeas a abocanhar ‘naturalmente’ os órgãos genitais de fêmeas ainda jovens” e a “fricção genito-genital” entre fêmeas ocorre, nalguns bandos, com uma periodicidade média de duas horas.
Marlene Zuk, em Sex On Six Legs, realça que “nos animais sociais, o sexo não é apenas reprodução – é comunicação, faz parte do interminável labor de lidar com outros membros da mesma espécie”.
[“Fricção genito-genital” entre bonobos fêmea]
Até num animal que pode ser visto como símbolo de virilidade, o carneiro-selvagem norte-americano ou bighorn (Ovis canadensis), se registam comportamentos homossexuais de natureza duradoura entre machos, o que levou um biólogo que investigava estes animais (citado por Marlene Zuk, em Sex On Six Legs) a emitir este pungente lamento: “Ainda me arrepio quando me recordo de ver D. montar S. repetidamente […] Admitir que estes machos tinham estabelecido um relacionamento homossexual estava para lá do que eu era capaz de aceitar emocionalmente. Pensar nestes magníficos animais como ‘maricas’ – oh, meu Deus”.
Talvez servisse de consolo a este angustiado defensor dos valores familiares tradicionais saber que o que se passa entre os machos de carneiro-selvagem é, como no caso das aves marinhas acima mencionadas, uma “homossexualidade situacional”: os machos disputam as fêmeas através de combates de extrema dureza, de que resulta o vencedor ficar com todo o harém por sua conta. Os derrotados, ao verem-se privados de acesso às fêmeas, acabam por contentar-se em montar outros losers. Mas se os machos dominantes forem, por qualquer razão, afastados, os outros carneiros abandonarão os seus parceiros machos e disputarão as fêmeas disponíveis.
Simon Le Vay, que estuda a componente genética da orientação sexual (citado por Zuk em Sex On Six Legs), sintetiza assim o debate em torno da questão de os animais estabelecerem ou não relações homossexuais, realçando que este ocorre quase sempre no contexto de tentativas para estigmatizar a homossexualidade: “As respostas enquadram-se genericamente em três tipos: ‘Os animais não o fazem, logo é contra natura’, ‘Os animais fazem-no, logo é um comportamento bestial’, ‘Alguns animais fazem-no, mas isso são animais imundos’”.
Sodoma & Gomorra
Se sairmos do âmbito da homossexualidade para o da sexualidade em geral, a natureza oferece uma tal vastidão de “práticas” que a tentativa de definir o que é “natural” soçobra de imediato.
Quando, em 1991, a RTP exibiu O Império dos Sentidos, de Nagisa Oshima, entre a onda de indignação que varreu o país destacou-se a reacção do arcebispo de Braga, D. Eurico Nogueira, que afirmou ter aprendido mais sobre sexo em meia hora de filme do que em 67 anos de vida. É difícil imaginar qual seria a reacção de Sua Eminência se lesse as primeiras 10 páginas de Dr. Tatiana’s Sex Advice to All Creation, da bióloga Olivia Judson.
Por trás do tom jocoso da prosa e do título e da apresentação formal do livro, que parodiam os consultórios sentimentais das “revistas de coração”, há propósitos sérios nesta colecção de “ensinamentos” que ultrapassa o que o ser humano comum, seja ou não arcebispo, poderá aprender em 670 anos de vida e que pode mesmo abalar a crença num Deus de longas barbas brancas, autor de uma Criação serena, harmoniosa e disciplinada, que espelha na perfeição a justiça, bondade e sabedoria divinas.
O blurb na contracapa promete “revelar a altura adequada para mudar de sexo, como dar à luz sendo virgem, seduzir as suas irmãs ou devorar o seu parceiro” e o desfile de “perversões sexuais” nele coligido faz com que Sodoma e Gomorra pareçam o mais casto convento de religiosas.
https://www.youtube.com/watch?v=KYp_Xi4AtAQ
[Tudo indica que os machos de louva-a-deus decapitados têm melhor desempenho sexual do que os que mantêm a cabeça durante o coito. Não se recomenda o visionamento a almas sensíveis]
Se o trágico destino dos machos louva-a-deus (Mantis religiosa) nas mandíbulas das fêmeas durante e depois do coito, é bem conhecido, poucos terão ouvido falar da Sapha amicorum, uma lesma-do-mar que ocorre no Mar Vermelho, que é hermafrodita e cujos órgãos genitais masculinos ficam dentro da boca (é todo um novo conceito de sexo oral).
Ou do argonauta (em termos simples, um polvo metido numa concha), cujo macho é uma criatura insignificante em duração de vida e tamanho (mede 2 cm, enquanto a fêmea mede 10 e produz uma concha que pode chegar aos 30) e cuja existência tem por único fito inserir na fêmea o seu pénis, que é incorporado nos tecidos daquela, onde passa a ter uma “vida independente” (por assim dizer) – os primeiros naturalistas a estudar os argonautas confundiram os pénis no corpo das fêmeas de argonauta com um parasita.
Em várias espécies de peixes de grande profundidade é o próprio macho, de dimensões minúsculas, que é integrado no corpo da fêmea, convertendo-se num mero apêndice. É uma bizarria fácil de explicar: as águas onde estes peixes vivem têm densidades populacionais tão rarefeitas que a probabilidade de encontrar alguém da mesma espécie e do sexo oposto é muito baixa – quando aparece um parceiro, mais vale tomar medidas para que não se escape.
Algumas fêmeas podem ter mais do que um macho-apêndice, não vá algum deles deixar-se amolecer pela rotina doméstica e a Sport TV ou o Facebook levá-lo a negligenciar o cumprimento dos deveres conjugais. Algumas espécies dão provas de um apurado sentido de economia de recursos: as fêmeas e machos “solteiros” possuem apenas gónadas incipientes e assim ficarão se nunca encontrarem parceiro – só quando se “fundem” é que os órgãos sexuais de macho e fêmea se desenvolvem. Nalgumas espécies, os machos possuem mandíbulas e tracto digestivo rudimentares e não-funcionais, pelo que, ou encontram rapidamente uma fêmea a quem parasitar, ou morrerão de fome.
No coleóptero Coccotrypes dactyliperda, que passa parte do seu ciclo de vida no caroço da tâmara, o habitual é que o sexo se dê entre irmãos e irmãs, mal saem dos ovos. Mas se uma fêmea não encontra um irmão que a fecunde, quando encontra um caroço de tâmara escava nela uma câmara onde põe quatro ou cinco ovos não-fertilizados, de onde nascem machos.
A mãe acasala com o primeiro filho a eclodir, devora-o a ele e aos irmãos (nada se desperdiça), amplia a câmara e põe algumas dezenas de ovos fertilizados, de onde nascem só fêmeas, e mais um ou dois ovos não-fertilizados, de onde nascem os machos necessários para que as suas filhas não tenham de passar pelo embaraço de terem de ser mães virgens como ela.
A natureza pode ser ainda mais refinada e encantadora: a vespa Scleroderma immigrans injecta nas larvas de coleópteros um veneno que a deixa paralisada mas viva durante vários dias, de forma a fornecer alimento fresco às larvas que eclodirão dos ovos que nela deposita. Até aqui tudo normal, pois é uma estratégia comum nas vespas, o que é menos comum (e, para muitos, mais reprovável) é que a mãe-vespa não só acasale com um destes filhos como com um dos netos nascidos das suas filhas.
Tudo isto parece profundamente repugnante, mas, como lembra Olivia Judson, parafraseando um conhecido ditado inglês, “a repugnância está no estômago de quem observa” (“revulsion is in the belly of the beholder”). O equívoco é aplicarem-se irreflectidamente os sistemas de valores da moderna sociedade ocidental a um mundo que lhes é completamente alheio.
O animal com a vida sexual mais bizarra
Na verdade, quando comparada com os padrões vigentes entre a maioria dos nossos primos símios e as 4300 espécies de mamífero, a sexualidade humana é que é aberrante – aliás, Jared Diamond inicia Why Is Sex Fun? observando a sexualidade humana do ponto de vista (francamente enojado) de um cão.
Diamond já abordara o assunto num livro anterior, The Third Chimpanzee, onde lista a invulgar conjugação de características do sexo entre Homo sapiens: parcerias sexuais de longo prazo, partilha de deveres parentais, proximidade com outras parcerias sexuais, natureza privada do acto sexual, ovulação oculta (ou seja, os machos não fazem ideia de quando as fêmeas estão a ovular e as próprias fêmeas apenas têm disso uma nebulosa noção), prolongada receptividade sexual das fêmeas, sexo recreativo e menopausa feminina.
Algumas espécies podem exibir um ou outro destes comportamentos invulgares – já acima se mencionaram as importantes funções sociais desempenhadas pelo sexo entre os bonobos – mas nenhuma outra espécie acumula a lista de “bizarrias” sexuais do Homo sapiens, “bizarrias” para as quais Jared Diamond, em Why Is Sex Fun?, e Marlene Zuk, em Paleofantasy, fornecem convincentes explicações do ponto de vista da biologia evolutiva.
Mas há que ter o cuidado de não confundir explicações com justificações ou em procurar na teoria evolutiva argumentos para aprovar ou condenar este ou aquele comportamento sexual. Em Why Is the Penis Shaped Like That?, Jesse Bering argumenta que a teoria de Darwin “não prescreve nenhum comportamento, sexual ou de outra natureza, como sendo ‘correcto’. A ‘correcção’ é irrelevante. O que conta é o que funciona ou não, em termos adaptativos […] É estranho que busquemos orientação moral para a sexualidade humana no resto do reino animal, numa falácia lógica que entende o ‘natural’ como ‘aceitável’, como se o facto de os bonobos, os sapos do deserto e as emas manterem ocasionalmente relações homossexuais tivesse implicações morais nos direitos dos gays na sociedade humana”.
Perversões
Why Is the Penis Shaped Like That? não foi publicado em Portugal, mas acaba de sair, pela Temas & Debates, o terceiro livro de Jesse Bering, Perversões: Os Comportamentos Sexuais Desviantes (Perv: The Sexual Deviant in All of Us).
Os dois livros sobrepõem-se em boa parte, não só nos temas como nos exemplos e estudos científicos a que recorrem, mas Perversões tem um propósito mais evidente: mostrar que o conceito de perversão “é inteiramente um fantasma proveniente da moralizadora mente humana” e que a forma como a sociedade encara o “sexo desviante” é dominada por reacções emocionais e em particular pelo “factor de repugnância”.
Ora, se, como afirma Judson, “a repugnância está no estômago de quem observa”, mais importante do que avaliar se um dado comportamento sexual é ou não repugnante ou contra natura, é perceber se é inofensivo. Como escreve Bering, a moralidade não é um valor absoluto e imutável, “é um modo de ver e está em evolução constante”.
Quando percebemos que “há pouco de universal no que se refere à sexualidade humana […] a ilusão de que há um certo’ e um ‘errado’ objectivos no vasto domínio das relações libidinosas da nossa espécie fica para sempre posta em causa”. Em alternativa à moral sexual tradicional, Bering propõe “um novo sistema de valores […] construído com o tijolo e cimento dos factos científicos estabelecidos”, tendo por fundação “a verdade incontroversa de que as orientações sexuais nunca são escolhidas pelo próprio”.
Atendendo a que o primeiro livro de Bering, The Belief Instinct (editado em Portugal no ano passado pela Temas & Debates como O Instinto de Acreditar: A Psicologia das Almas, o Destino e o Sentido da Vida) se empenhava em desconstruir os mecanismos psicológicos que predispõem os seres humanos a acreditar em deuses, fenómenos sobrenaturais e na vida após a morte, dir-se-ia que o autor encarnará para os sectores mais conservadores a figura de Anti-Cristo: depois de lançar o seu veneno contra “Deus” e a “Família”, só lhe falta escrever um livro que questione o sacrossanto conceito de “Pátria”.
Tal como em O Instinto de Acreditar, Bering retoma a denúncia daquilo a que chama “a falácia naturalista”, ou seja, “o erro conceptual de argumentar que aquilo que é natural também é inerentemente bom, correcto ou próprio”. Mas Bering faz notar que a falácia naturalista tem um amplo uso: “os que recorrem a exemplos de ligações entre elementos do mesmo sexo noutras espécies para justificar a aceitação de gays e lésbicas são tão culpados pela falácia naturalista como os conservadores religiosos que encontram algum tipo de ‘evidência’ de que estes comportamentos são moralmente errados por não serem ‘naturais’”.
Bering é assumidamente homossexual e a homossexualidade é, inevitavelmente, uma das “perversões” abordadas no livro, mas há lugar para muitas mais. As primeiras a serem abordadas são aquelas em que o desvio à normalidade é mais subjectivo: a ninfomania e a satiríase.
Basta considerar que até meados do século XIX a excitação sexual nas mulheres era considerada uma doença ou perturbação a requerer tratamento (que podia passar por banhos de água gelada, lavagem da vagina com bórax ou ácido carbólico, internamento num manicómio ou ablação do clítoris) e ainda hoje há sociedades pelo mundo fora que a reprimem implacavelmente. Em contraste, no homem, a busca obsessiva de actividade sexual tende a ser tolerada e até vista como sinal de virilidade, vigor e “espírito empreendedor” – a satiríase está longe de ter associado um estigma social comparável ao da ninfomania.
Quanto a parafilias, Bering examina um leque que vai mais longe do que a imaginação mais destravada possa conceber: além do “tradicional” fetichismo por pés e sapatos
e as fixações em anões, amputados ou obesos, mas também desvios tão invulgares como a climacofilia, em que a excitação sexual é obtida a cair por escadas (é de supor que o mais seguro sexo em elevadores não seja considerado pelos climacófilos como um substituto aceitável), e a hoje praticamente extinta agalmatofilia ou fixação erótica em estátuas (é verdade que a maioria das estátuas que hoje adornam cidades e rotundas não são particularmente sensuais).
Há espaço para a zoofilia, que poderá ser mais comum do que se pensa (até 1% da população, segundo alguns estudos), tendo Bering o cuidado de distinguir entre a zoofilia genuína e a “zoofilia situacional”, ou seja, a que pode acontecer a um rapaz com as hormonas em efervescência que tem a pouca sorte de crescer numa quinta isolada, perto de cabras e galinhas e muito longe de raparigas.
O sadismo e o masoquismo são também analisados, desde as formas mais inócuas, como as cócegas (um desvio erótico que tem a designação científica de “titilagnia”), até o caso extremo do “canibal de Rotenburg”, Armin Meiwes, que colocou no website The Cannibal Cafe um anúncio em busca de um “homem bem constituído de 18 a 30 anos disposto a ser morto e comido” e encontrou um voluntário (Bernd-Jügen Brandes) – ambos conseguiram o que pretendiam e melhor será não entrar em pormenores.
Bering avança também pelo terreno hoje perigosamente escorregadio da orientação erótica etária, tendo o cuidado de precisar que o termo “pedofilia” é usado na linguagem corrente de forma incorrecta, pois deveria apenas designar o sexo entre adultos e crianças impúberes, sendo o sexo com adolescentes designado formalmente por hebefilia (12-14 anos) ou efebofilia (a partir dos 15 anos).
Convém recordar que, em tempos não muito distantes, a maioridade (para efeitos sexuais) esteve fixada em anos bem mais tenros, que deixam arrepiados até os que nos nossos dias têm um entendimento mais libertário da sexualidade: 10-12 anos em Inglaterra até 1875, elevada nessa data para 13 anos e, em 1885, para 16; até 1880, 10-12 anos na maioria dos EUA e apenas 7 (!) no Delaware, sendo elevada para 16-18 em todos os estados por volta de 1920.
Um dos contributos mais importantes e produtivos do livro está na concepção do perfil de comportamento sexual de cada indivíduo como uma slot machine com quatro “janelas” – orientação sexual (heterossexual, homossexual, etc.), alvo erótico (pessoas, ovelhas, sapatos, etc.), comportamento erótico (“normal”, voyeurismo, frotteurismo, etc.) e orientação erótica etária (“normal”, pedofilia, gerontofilia, etc.) – em que uma lotaria onde intervêm a genética, o ambiente familiar e o acaso, determina que “figura” calha em cada janela.
Na maioria dos casos, as figuras imobilizam-se nas janelas por volta dos 10 anos – “as hormonas que vão vivificar a sexualidade de uma criança e torná-la (potencialmente) mais perigosa ainda se encontram à distância de alguns anos mas, haja o que houver, as rodas da slot machine já pararam”.
Claro que o facto de, segundo Bering, ninguém escolher conscientemente o seu perfil sexual, não quer dizer que todos os comportamentos sejam igualmente legítimos e que os seus autores sejam inimputáveis – importa examinar os “desvios” caso a caso, tendo sobretudo a preocupação de avaliar se existe dano para os envolvidos, em vez de recorrer a estereótipos e preconceitos. Diz Bering que a “a nossa moralidade sexual assentou no terreno pouco firme dos mitos e dos costumes, que já não consegue sustê-la perante o dilúvio de factos que vai caindo. Não há a menor dúvida de que nos encontramos numa encruzilhada moral”.
Uma brejeirice instrutiva e reveladora
Perversões é um livro desequilibrado, com falta de foco e excesso de comentários de tom brejeiro (tal como Why Is the Penis Shaped Like That?) e avança ideias muito discutíveis, mas o “dilúvio de factos” que fornece e os argumentos que o autor deles retira proporcionam uma leitura instrutiva e reveladora, capaz de abalar preconceitos solidamente enraizados.
É inevitável que muitas pessoas não aceitem os argumentos e posições de Bering e continuem a considerar reprováveis as relações homossexuais ou a adopção por casais homossexuais ou até a masturbação. Não poderão é continuar a invocar que a sua perspectiva da sexualidade humana é a “correcta” porque corresponde ao que se passa na natureza: por um lado, porque não há um comportamento sexual padronizado na natureza, por outro, porque o homem não vive na natureza, vive na sociedade.
Como outros aspectos do nosso comportamento, a sexualidade humana é uma construção sócio-cultural, erguida sobre um conjunto de determinantes biológicas que, como se viu acima, se afastam dos padrões mais usuais na natureza. Ao contrário do que pensam os que aderem à teoria do “bom selvagem”, muito do que a civilização tem de positivo são, em boa medida, conquistas feitas contra o que seria “natural”.
O que os nossos instintos primevos nos ditam “naturalmente” é que sejamos racistas e xenófobos, que prevaleça a lei do mais forte, que os machos adultos tentem ter sexo com todas as fêmeas em idade reprodutiva, mesmo que estejam acasaladas com outros machos ou que tenham acabado de chegar à puberdade, e que os machos violem as fêmeas quando estas se mostram pouco cooperantes ou que maltratem os filhos que não são do seu sangue.
Foi o uso da razão que nos permitiu discernir nos instintos “naturais” quais são os que nos levam a fazer coisas “boas”, “más” e “neutras” (do ponto de vista dos efeitos sobre os envolvidos e a sociedade) e criar leis, instituições, estruturas e práticas que favorecem os primeiros, reprimem os segundos e permitem a quem se entrega aos terceiros ser deixado em paz, ao mesmo tempo que protegem os mais fracos e inexperientes, algo com que a natureza está longe de preocupar-se.
Outras leituras: Tudo o que sempre quis saber sobre sexo mas tinha receio de perguntar…
…e também muitas coisas que não queria saber e que gostaria de poder esquecer depois de as ter descoberto, estão contidas nos livros citados ao longo do texto acima, sobre os quais se deixam agora breves notas.
No que toca à evolução da sexualidade humana, sobretudo quando vista em confronto com a dos restantes primatas, recomendam-se dois excelentes livros de Jared Diamond: The Third Chimpanzee (editado recentemente em Portugal pela Temas & Debates como O Terceiro Chimpanzé), que aborda vários outros aspectos peculiares da biologia, do comportamento e da história do Homo sapiens,
e Why Is Sex Fun?: The evolution of human sexuality (editado em Portugal pela Rocco como Porque Gostamos de Sexo?: A evolução da sexualidade humana, mas presentemente esgotado), que aprofunda e desenvolve aspectos da sexualidade humana apresentados no livro anterior.
Dr. Tatiana’s Sex Advice to All Creation: The definitive guide to the evolutionary biology of sex de Olivia Judson, é um panorama das “bizarras” práticas sexuais e estratégias reprodutivas de manatins, escaravelhos, iguanas, ouriços-do-mar, elefantes e sanguessugas. É um livro fascinante e divertido, ainda que o estômago possa, perante algumas descrições, dar sinais de revolta.
Marlene Zuk partilha com Judson o tom ligeiro e bem-humorado, sem comprometer o rigor da informação e do debate. Em Sex On Six Legs faz uma panorâmica análoga à do livro de Judson, mas centrando-se nos insectos, uma classe que proporciona sempre abundância de cenas “X-rated”.
Em Paleofantasy: What evolution really tells us about sex, diet and how we live, Zuk muda o foco das seis para as duas pernas e em particular para as falsas ideias que têm vindo a proliferar nos últimos anos sobre “a verdadeira natureza” do Homo sapiens – há quem creia que como a nossa espécie passou a maior parte dos seus 200.000 anos de existência como tribos de caçadores-recolectores, a dieta, o exercício, o cuidado dos filhos e a organização familiar deverão decalcar as práticas do Paleolítico e que este “regresso às origens” permitirá evitar muitas maleitas e inadequações que atormentam o homem na sociedade moderna. Zuk desmonta essas teorias com ironia e argumentação convincente. A parte sobre “sexo paleolítico” concorda, no essencial com Why Is Sex Fun? de Diamond.
Why Is the Penis Shaped Like That? And other reflections on being human, de Jesse Bering, parece, nalguns trechos, um ensaio para Perversões, tal é a coincidência dos temas abordados e dos argumentos esgrimidos. Organiza-se como uma colecção de artigos que tentam dar resposta (nem sempre conseguem), do ponto de vista da biologia evolutiva, a questões candentes sobre a nossa anatomia (“porque haverá algo tão precioso como os testículos de estar numa posição tão vulnerável?” ou “porque têm os humanos mais pêlo onde os macacos têm menos?”) e sobre a nossa fisiologia (“afinal, para que serve o orgasmo nas mulheres?”).
Em Sex in History, Reay Tannahill mostra como o comportamento sexual humano, a que muitos defensores dos “valores familiares tradicionais” aludem como se fosse universal e imutável, conheceu as mais diversas expressões em diferentes culturas e diferentes tempos.