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Traduzo (Murakami), logo existo

A propósito da publicação em português dos dois primeiros romances do autor, Maria João Lourenço escreve: "Quando me chega mais um livrinho do meu japonês, apoderam-se de mim sensações estranhas".

Já traduzia livros antes de traduzir Haruki Murakami. Sou jornalista (nº 1441: é o que diz o cartãozinho), melhor dizendo, somos todos jornalistas nesta casa, mas quando, por estes dias, me perguntam qual é a minha profissão respondo apenas: tradutora. Traduzi para a Casa das Letras todos os romances e livros de contos de Haruki Murakami − sem esquecer uma espécie de autobiografia (Auto-Retrato do Escritor Enquanto Corredor de Fundo) –, menos um: Norwegian Wood, que estou agora a terminar. Faço, portanto, o pleno, não é o que dizem? Até comecei a traduzir, por minha alta recreação (à socapa, não digam nada à minha editora, chiu…), os fantásticos contos que dão forma ao livro Homens sem Mulheres, ainda por verter na língua inglesa. Li a edição brasileira, tenho várias traduções em línguas que domino e conto com algumas narrativas publicadas entretanto na Vanity Fair e na New Yorker.

murakami canção do vento

“Ouve a Canção do Vento” / “Flíper, 1973”; de Haruki Murakami; Edição: Casa das Letras

Adoro traduzir, não sei se já deu para perceber. Invejo os (bons) tradutores portugueses de Don DeLillo, Joyce Carol Oates, Ian McEwan , Virginia Woolf, Stephen King, Salinger, Lemaitre, Hollinghurst, Cormac McCarthy (sem esquecer Carver traduzido por Tordo, fogo!), e aprendi muitíssimo do que sei com Fernanda Pinto Rodrigues. Posto de outro modo, dava tudo para traduzir os autores da minha eleição, mas a verdade é que, quando me chega às mãos mais um livrinho do meu japonês, se apoderam de mim sensações estranhas. Aconteceu logo, ao traduzir o primeiro romance, Sputnik, Meu Amor:

«Cruzei as mãos atrás da cabeça e fiquei a olhar para Sumire enquanto ela saboreava gulosamente o seu bolo. Através das colunas colocadas no tecto do café, chegava até nós um velho samba na voz de Astrud Gilberto. “Aruanda”, cantava ela. Com os olhos fechados, o ruído das chávenas e dos pratos lembrava o rumor do mar ao longe. Perguntei a mim mesmo qual seria a sensação de estar em Aruanda?»

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Já cozinhei ao som de Rossini (sou fraca cozinheira, mas safo-me com massas italianas), “La Gazza Ladra”, claro. Lembram-se de Crónica do Carneiro Selvagem, espero. O meu livro preferido (e o do Murakami, segundo julgo saber). Raramente bebo cerveja, mas, a páginas tantas, dá-me uma sede tal que vejo distintamente uma garrafa de Bud à frente dos meus olhos.

Uma das grandes vantagens de Murakami, além do poder das histórias e da qualidade da prosa, consiste no desejo que desperta nos leitores, levando-os a querer ser escritores. Há escritores que gostamos de ler preguiçosamente, pura e simplesmente. Outros, despertam o escritor que há em nós.

As cenas de comida fazem-me apetite, as descrições de certos sentimentos e de certas paisagens transportam-me no tempo e no espaço. Mergulhei no fundo do poço na Crónica do Pássaro de Corda. O primeiro romance, li-o em inglês (The Wind-Up Bird Chronicle): lembro-me como se fosse hoje de ter ficado prisioneira daquele mundo, a um tempo sombrio e sedutor.

«Era um poço profundo. Deu-me a impressão de ter demorado uma eternidade até embater no solo. Na realidade, não demorou mais de poucos segundos (e a isso não se pode chamar “muito tempo”), mas lembro-me perfeitamente de uma série de coisas me terem passado pelo espírito enquanto me sentia cair nas trevas.»

Diz ele, que descreve nas suas obras um universo tão pessoal e extraordinariamente universal, que «o ser humano é um poço de mistérios». Eu, claustrofóbica me confesso, sofri mais a traduzir aquelas descrições profundamente do que a matar Johnnie Walker (nem gosto de uísque, confesso). Ajudei a liquidar a maquiavélica figura e o seu mito, nas páginas de Kafka à Beira-Mar.

«É certo que um coração ainda a palpitar pode ser uma delícia, mas vê bem a quantidade de sangue que isto faz. “Não; será antes esta mão que tingirá os mares infinitos, tornando vermelho o que era verde.” Um verso de Macbeth. Isto não é assim tão mau como em Macbeth, mas não imaginas o dinheiro que gasto em lavandaria. Afinal de contas, este não é um traje qualquer. Devia usar uma touca cirúrgica e luvas, mas não me dá jeito. Ora aí tens outra regra.

Tenho uma irmã, filha do João Lourenço, com a qual convivo mais em adulta. Tanto eu como Murakami não nos vangloriamos propriamente de uma mocidade fácil. Ninguém escreve como o autor de A Rapariga que Inventou Um Sonho sobre a solidão dos filhos únicos, acreditem. Confirmei isso no segundo romance da sua lavra, Flíper, 1973.

«Para mim, também aqueles foram dias de solidão. Todas as vezes que voltava para casa e me despia, parecia que os ossos ameaçavam romper-me a pele. Como se uma energia misteriosa dentro de mim os empurrasse na direção errada, dando-me a sensação de penetrar num mundo desconhecido.»

Pode um escritor inspirar uma tradutora? A resposta à pergunta de retórica é “sim”, sem sombra de dúvida. Haruki Murakami tem-se revelado poético e entusiasmante, a todos os títulos. Peguei recentemente nos seus dois primeiros romances, traduzidos pela primeira vez para todas as línguas (Ouve a Canção do Vento e Flíper, 1973, acabados de sair numa belíssima edição da Casa das Letras), como quem agarra num objeto antigo, porventura de culto, do qual gostamos demais, não resistindo à tentação de acariciar de todas as vezes que passamos por ele, no cantinho do escritório “muito cá de casa”, como dizia o Bénard da Costa.

Adoro traduzir, não sei se já deu para perceber. Invejo os (bons) tradutores portugueses de Don DeLillo, Joyce Carol Oates, Ian McEwan , Virginia Woolf, Stephen King, Salinger, Lemaitre, Hollinghurst, Cormac McCarthy (sem esquecer Carver traduzido por Tordo, fogo!), e aprendi muitíssimo do que sei com Fernanda Pinto Rodrigues.

Uma das grandes vantagens de Murakami, além do poder das histórias e da qualidade da prosa, consiste no desejo que desperta nos leitores, levando-os a querer ser escritores. Há escritores que gostamos de ler preguiçosamente, pura e simplesmente. Outros, despertam o escritor que há em nós. Ando a ler M Train e a adorar cada capítulo do livro bem traduzido por Helder Moura Pereira para a Quetzal. Tal como aconteceu a Patti Smith, também persigo os gatos e as paisagens descritas por Murakami, e ando com frases dele à volta na cabeça. O romance eleito de Patti? Crónica do Pássaro de Corda, escusado será procurar. “Acabei de o ler e senti imediatamente necessidade de o voltar a ler”, diz ela.

Lost in translation? Nunca. Gosto do filme realizado pela Sofia Coppola, muito murakaniano, de resto, mas sei, por dever de ofício, que Haruki Murakami está bem traduzido nas mil e uma línguas universais, e que tem tocado os leitores portugueses. Muito boa gente não delira com a sua prosa. Os que gostam, gostam muito. O escritor japonês toca uma corda sensível no coração dos seus leitores e obriga as meninges a laborar em pleno.

Bom, regressando à vaca fria. Traduzo Murakami, logo existo. Com a ajuda da Sofia Graça Moura, nos primeiros tempos, e do fiel Rui Augusto, nos últimos tempos, dei por mim a crescer como tradutora enquanto tradutora de Haruki Murakami. Gostamos dos mesmos livros e de filmes de culto, tivemos ambos um atribulado percurso universitário. Não tenho gatos. Nem quero gatitos cá em casa, estás a ouvir Ágata? O próprio Haruki (Háruki, ora acentuem lá a sílaba) já não é dono de nenhum bichano, que eu saiba. Ouvimos as mesmas músicas (vem-me à memória uma canção batida…), graças aos velhos discos de jazz que herdei do meu pai e que a Ana Paula me ofereceu. E só ainda não comecei a caminhar todos os dias, como o escritor da maratona. «Aminã», como dizia o meu filho quando era pequeno, pode ser?

Maria João Lourenço é tradutora

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