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“O Vasco é uma pessoa que toda a gente conhece: antes gordo que magro, mais baixo que alto – e simpático.” (Manoel de Oliveira)
A revista Imagem, no verão de 1933, foi acompanhar no plateau a rodagem do filme “A Canção de Lisboa”. Vasco Santana tinha apenas 35 anos. Havia-se consagrado no teatro, das revistas no Éden e no Avenida às operetas do teatro São Luiz, mas só em “A Canção de Lisboa” se estreava como protagonista no cinema (antes, em 1929 e a convite do realizador António Lopes Ribeiro, teve uma participação secundária e fugaz no filme alemão “A Menina Endiabrada” – Lopes Ribeiro diria dele nesse filme: “Era um palerma, de monóculo, que se atirava à Dina Gralla, como é habitual ver-se no Chiado!”). Foi o primeiro e único filme realizado por Cottinelli Telmo, arquiteto-chefe da Exposição do Mundo Português. Mas foi sobretudo o primeiro filme inteiramente rodado e sonorizado em Portugal.
Manoel de Oliveira era sensivelmente uma década mais novo do que Vasco. Foi o então ator portuense a escrever na Imagem o que vira e vivera nos bastidores de “A Canção de Lisboa”. E fê-lo na primeiríssima pessoa. Oliveira viu em Vasco Santana sobretudo um bon vivant, rodeado de mulheres — ali, no plateau, como na vida. “Grande conquistador (e castigador), passa todo o tempo dos intervalos das filmagens falando pelo telefone com as inúmeras namoradas que não se cansam de o aturar todos os dias – horas esquecidas. Que lhes dirá ele para as enfeitiçar desta maneira?”, questionava-se Manoel de Oliveira.
E tinha a resposta: “Conhecedor de todos os segredos da sedução, ele sabe matreiramente caçá-las vivas. Em primeiro lugar, prepara-lhes o cerco, sem que elas mesmo deem por isso. A seguir, já senhor da situação, castiga-as com olhares violentos ou provoca-lhes ciúmes. A cada olhar fascinante, cai, redonda, uma nova vítima. Assim, meio adormecidas num balancear de amor violento, são lançados no arquivo, devidamente catalogadas. Aí ficam, presas pelas fortes correntes ao seu sedutor, esperando desejosas o momento de lhe pertencerem.”
Mas não era Vasco o sedutor. Ou somente ele o sedutor. Era também o seduzido. “No estúdio, à hora de almoço, lá está sempre o Vasco rodeado de meninas, que lhe fazem mil perguntas e o cercam de carinhos e cuidados infindos, que nos enchem a todos de inveja. Enchem-lhe o copo de vinho e levam-lho à boca; tiram-lhe as espinhas do peixe, cortam-lhe o bife aos bocadinhos, acendem-lhe o cigarro, fazem-lhe festas, eu sei lá!… E ele, o Vasco, indulgente e bom, trincando o seu pão torrado, comodamente sentado na sua chaise, agradece magnânimo e grande, lançando-lhes docemente alguns olhares meigos de reconhecimento pela vassalagem que as suas donas lhe prestam”, recordava, em 1933, Manoel de Oliveira naquela revista.
O teatro era um negócio de família. Mas Vasco preferia as Belas-Artes à representação — e as mulheres a ambas
Ele sempre foi galanteador. E bom comedor, e bom bebedor e fumador — e tudo o que fosse excessivo. E gostava de touradas, também. Vasco António Rodrigues Sant’Ana nasceu a 28 de janeiro de 1898, no n.º 185 da Rua Direita, em Benfica. O pai era Henrique Santana, ensaiador e cenógrafo-maior do teatro em Portugal. O tio, Luís Galhardo, era provavelmente o mais importante empresário do meio à época, dono dos teatros Éden e Avenida, fundando o Parque Mayer na década de 1920. Mas Vasco Santana não queria nada com o teatro.
A sua primeira paixão (e talvez de toda a vida; Ruy de Carvalho disse de Vasco numa entrevista que “desenhar casas era o seu hobby”) foi o desenho e chegou a cursar Belas-Artes. Boémio, talvez demasiado boémio para o pai Henrique, que temeu perdê-lo para a má-vida, ficou-se pelo 3.º ano do curso, exatamente quando se ia inscrever na especialidade: arquitetura. É curioso que também o pai desistira de medicina; o “Vasquinho da Anatomia” seria médico por ele em “A Canção de Lisboa”. E porque é que Vasco deixou o curso a meio? A resposta: por um rabo-de-saias, porquê mais?
O pai queria que ele fosse médico ou advogado. Do mal, o menos: arquiteto. Mas Vasco foi inscrever-se na Escola de Arte de Representar, o atual Conservatório ou Escola Superior de Teatro e Cinema. Estávamos em 1917 e Vasco dizia-se um “coió”, que é como quem diz um namoradeiro inveterado. Em entrevista a Igrejas Caeiro, para a Emissora Nacional, e questionado sobre se a razão de ter estudado representação foi a representação em si ou a representação de uma mulher, Vasco não hesitou, gracejando: “Por tudo. Mais pelo teatro. A família pode não gostar que eu diga a verdade!”
Chegaria ao teatro nesse mesmo ano. Por acaso. Ou destino. Ia Vasco a caminho das touradas no Campo Pequeno, subia a Avenida da Liberdade de elétrico, quando lhe é dito que o ator Artur Rodrigues, compère da peça “O Beijo”, em exibição no teatro Avenida, adoecera subitamente e a matiné daquele domingo seria cancelada se Vasco não tomasse para si a personagem principal: o Palavreado. Vasco, de tanto que assistira à peça, na plateia ou nos bastidores, em ensaios ou em cena, sabia-a de cor. Não aceitou logo, mas aceitou. E a crítica adorou-o. Lia-se no Jornal dos Teatros: “O novo ator Vasco Santana é um rapaz muito estudioso e inteligente. Dizem-nos que o seu trabalho foi uma verdadeira revelação para o público.” Ou melhor, quase toda a crítica o adorou. É que também no Jornal dos Teatro se escreveu dele, devastadoramente: “O novo compère de ‘O Beijo’ não tirava os olhos do chão. Se calhar perdeu um tostão.”
Artur Rodrigues não registou melhoras e o papel seria de Vasco dali em diante. E assinale-se o “dali”: 25 de agosto de 1917. A estreia profissional aconteceria no final do ano, no teatro Éden, também do seu tio Luís Galhardo, na peça “Ás de Oiros”. Até final da década participaria num sem-número de êxitos mais. Mas Vasco Santana sentia-se demasiado próximo do tio e do próprio pai. Queria emancipar-se.
Aos 22 anos, no verão de 1920, foi em tournée ao Brasil – era comum as companhias, mais a mais as de Galhardo, fazerem-no, no Brasil ou em África, não para um só espetáculo, mas para vários e durante meses a fio. Mais do que emancipar-se, voltou do Brasil casado com Arminda Martins, também ela nascida e criada nos meandros do teatro. Era filha do maquinista teatral Henrique Martins. O filho de ambos, o primeiro de Vasco, seria Henrique, como os avós, e nasceria no ano seguinte.
Trocou Arminda por Aldina e o teatro de revista pelas operetas do São Luiz. Mas a felicidade não durou
No regresso do Brasil, Vasco Santana não voltaria a trabalhar com o tio, pelo menos durante aquela década. Foi convidado para integrar a companhia de operetas de Armando de Vasconcelos, no teatro São Luiz, dando uso, por fim, à voz afinada que tinha. O Jornal dos Teatros dizia dele, na volta do Brasil: “Vasco Santana reapareceu. Tem o gesto brusco, a voz forte, uma graça sua, com alma e movimentos.” Ia substituir o ator Henrique Alves como galã cómico.
Entrou para a companhia de Armando de Vasconcelos quando tinha apenas quatro anos de teatro e 23 de idade. Quando de lá saiu, era quarentão. Um ano volvido da troca, era referido desta forma no Diário de Notícias: “Poucos atores têm conseguido, em tão curta carreira, popularidade que equivalha à de Vasco Santana. É que pouca vezes também se tem revelado tão decididamente uma vocação artística e uma admirável veia cómica como no seu caso.”
Vasco Santana era uma estrela. Sobretudo em Lisboa e entre o público de teatro. Voltaria ao Brasil em 1925, novamente em tournée, mas com Armando de Vasconcelos e não com o tio Luís Galhardo. O curioso dessa ida não é tanto o que dele se dizia no Brasil – e dizia-se, no jornal Globo, por exemplo, que “Vasco Santana sabe rir. E este é o seu maior segredo do sucesso. O seu riso natural e franco, provoca o riso nos outros. E é sobretudo por isso que eu e o público comigo achamos tanta graça ao Vasco.” O curioso desta ida foi a volta, vários meses e 23 peças (o número impressiona: não são representações; são peças) depois. É que Vasco Santana, casado com Arminda Martins e pai de Henrique, voltaria do Brasil casado com Aldina de Sousa, também ela atriz na companhia de Armando de Vasconcelos. Foi uma escândalo à época, em Portugal e no Brasil. Um folhetim. Mas Vasco separar-se-ia mesmo de Arminda e no ano em que a Primeira República caiu, nasceu José Manuel, o seu segundo filho.
O estado de graça de Vasco duraria pouco. Em 1928, a 28 de maio, lia-se na revista ABC uma crítica a um ator aburguesado no seu sucesso: “A plateia do São Luís, se ele não abusar do físico, se não repetir constantemente as estridentes gargalhadas e os dolorosos ‘ai! ais!’, não lhe acha a graça do costume. Mas, seja como for, a verdade é que, ainda o Vasco está nos bastidores, já a plateia ri, pressentindo a sua entrada.” Pior: em 1930, durante o êxito “O Meu Menino”, com adaptação do próprio Vasco – que dizia escrever mal, mas também que não tinha outra hipótese senão escrever; e fê-lo do teatro de revista, o dito teatro mais popular, à adaptação de espetáculos mais dramáticos como este “O Meu Menino”, de Franz Arnold e Ernst Bach –, Aldina morreu de uma septicemia fulminante. Vasco Santana confessaria anos mais tarde que este foi o maior desgosto da sua vida a par da morte do pai, Henrique, duas décadas depois.
Nunca mais seria o mesmo. Foi casado terceira vez, com Mirita Casimiro, também atriz — e assumidamente rival de Beatriz Costa, esta mais hollywoodesca no penteado e nos gestos e Mirita mais portuguesa na tez morena e no temperamento. Tinham 18 anos de diferença, Mirita e Vasco, e personalidades igualmente diferentes. Tanto ou tão pouco que foi breve e de faca e alguidar o seu amor.
O anos dourados do cinema português e a consagração ao lado de “Bea” e António Silva
Mas com a tragédia veio também a sua maior e definitiva consagração: o cinema. Cottinelli Telmo convidou-o pessoalmente para ser “o Vasco” em “A Canção de Lisboa”, partilhando o protagonismo com Beatriz Costa (Vasco tratava-a carinhosamente por Bea) e António Silva. A “Canção de Lisboa” custou 870 contos, perto de 400 mil euros nos dias de hoje, o que era uma fortuna à época. E o filme tinha, entre vários nomes de vulto da cultura portuguesa, o pintor Carlos Botelho como assistente de realização e o escritor José Gomes Ferreira como assistente de montagem. Raúl Ferrão e Raúl Portela compuseram as canções. O filme, tal como “A Severa”, “As Pupilas do Senhor Reitor” ou “Aldeia da Roupa Branca”, teve mais de 100 mil espectadores na década de 1930. Mas nem tudo correu bem. A crítica dizia do filme de Cottinelli Telmo que era um decalque de outro, realizado por René Clair e estreado pouco antes, “Quatorze Juillet”.
Seja como for, o filme foi um sucesso. E é impossível falar deste sucesso e dos seguintes sem falar de Vasco, Beatriz Costa e António Silva, seus pares no cinema, no teatro e na vida. Ao contrario do que se pensa ainda hoje, Vasco Santana e António Silva só contracenaram no cinema em “A Canção de Lisboa”, de 1933, e em “O Pátio das Cantigas”, de 1942. No teatro foram bem mais as contracenas: “Desculpa, Ó Caetano”, “Arraial”, “Ribatejo”, “A Estrela d’Ouro” ou “Uma Visita Que Não Bateu à Porta”. Todas elas peças de sucesso e casa cheia.
Beatriz Costa foi a outra contracena mais célebre de Vasco. Mas também ela actuou pouco com ele em cinema. Foi Alice e ele Vasco em “A Canção de Lisboa” e nada mais. Mas recordava de Vasco Santana, nas suas memórias escritas na década de 1960: “Ele foi em teatro o meu tipo inesquecível. Com os seus conselhos, livrou-me de muito abutre. Eu era rebelde, mas ouvia-o porque sempre me respeitou quando outros faziam o contrário. Aquela cara risonha de menino era a de um homem bom, de quem eu não tinha medo. Quando me chamava a atenção: ‘Ó Bea, não faças isso…’, ‘Ó Bea, não digas isso!’, ele sempre tinha razão. Uma razão que me livrou de muitas cabeçadas. O Vasquinho foi o homem mais importante da minha carreira.” Em 1958, com a morte do ator, Beatriz Costa chegou mesmo a anunciar que nunca mais subiria aos palcos. Mas subiu.
Voltemos ao cinema. Vasco Santana faria mais dois filmes de sucesso. Não os únicos — entrou em “O Costa d’África”, “Fado, História d’uma Cantadeira” ou “Camões” –, mas os de maior sucesso. Quais? O “Pai Tirano” em 1941 e “O Pátio das Cantigas” no ano seguinte. Um e outro foram realizados por António Lopes Ribeiro. O irmão, Francisco Lopes Ribeiro, o Ribeirinho, foi a contra-cena de Vasco. O “Pátio das Cantigas” custou 1200 contos, aproximadamente 600 mil euros no câmbio atual, e foi um dos filmes mais caros do seu tempo. Mas foi também um sucesso de bilheteira. João Bénard da Costa escreveria sobre o filme, no livro História do Cinema, que nele “tudo parece articulado, oleado, preciso como um mecanismo de relojoaria”. Mas houve quem não achasse o mesmo e logo na noite da estreia gatafunhasse nas paredes do Éden: “Ó Evaristo, já viste pior do que isto?”
Agora, 73 anos depois, Leonel Vieira propôs-se reinventar três filmes: não só “O Pátio das Cantigas”, de 1942, mas também “A Canção de Lisboa” e “O Pai Tirano”. Depois das telas de cinema, o primeiro dos três estreia este Natal, dia 25 às 21h15, na RTP1. Será exibido em formato de mini-série, dividido em três episódios.
No cinema, foi um sucesso de bilheteira, tal como o filme original. Apenas 24 dias foram suficientes para que, desde a estreia e até 22 de agosto, “O Pátio das Cantigas” de Leonel Vieira se tornasse no filme português mais visto de sempre. Nesse período, chegou aos 392 mil espectadores, destronando “O Crime do Padre Amaro”, de 2005, que chegara aos 380 mil. Mas não se ficou por aí. Ao todo, 606 mil pessoas foram vê-lo ao cinema, fazendo de “O Pátio das Cantigas” o 17.º filme mais visto de sempre em Portugal. A receita de bilheteira vai em 3,1 milhões de euros.
António Ferro achava o cinema de Vasco “execrável”. Salazar não. Só que os “cabrões” da censura (Beatriz Costa dixit) cortaram-lhe as vazas
O cinema fê-lo chegar ao grande público — a todo o público e não só ao público de teatro em Lisboa. Mas Vasco Santana detestava cinema. É o próprio filho, José Manuel Santana, quem conta a história: “O meu pai fez cinema, mas não gostava. Preferia o teatro. A falta de púbico ali, na hora das filmagens, afligia-o. Além disso, o cinema obrigava-o a levantar-se cedo e ele detestava levantar-se cedo. Tinha mau acordar. Quando fez ‘A Canção de Lisboa’ foi-lhe muito difícil ir para as gravações às cinco e meia da manhã. Dizia que lhe fazia confusão representar aos soluços, aos bochechos. Tinha como condição para aceitar fazer um filme que o deixassem passar pelas brasas no intervalo das filmagens.”
Vozes há que diziam (e continuam a dizer) que o Estado Novo apostava nas comédias, sobretudo nas do Vasco “bonacheirão, preguiçoso, boémio e irresponsável”, como que fazendo ver à população que aquela seria “a antítese” do próprio António de Oliveira Salazar — e do português comum, trabalhador e chefe de família. Ou que o cinema de Vasco alienava a população dos males do fascismo. Nada de mais enganador. É pelo menos isso que João Bénard da Costa defende em Histórias do Cinema, recordando que António Ferro, secretário nacional da Informação, tinha “execração” por este tipo de cinema. E que os filmes só tiveram sucesso porque “os produtores verificaram a extrema aceitabilidade dele por um público que não acorria a outras incursões.” E acrescentou: “Disse-se mais tarde que o sucesso desses filmes, sobretudo na província, se devia ao analfabetismo — à época, ainda rondava os 60% da população.”
António Ferro diria num discurso, em 1947: “Este género de argumentos no cinema não nos convencem. O mau-gosto das nossas plateias, que não é, muitas vezes, de raiz mas alimentado por soluções fáceis, é educável se houver mais alguma coisa na cabeça dos produtores e exibidores do que a preocupação do seu interesse imediato ou dos seus lucros apenas materiais.”
O discurso de Ferro foi feito no derradeiro ano como secretário nacional da Informação, antes de passar à categoria de ministro Plenipotenciário em Berna e depois em Roma. Salazar manter-se-ia como presidente do Conselho até 1968. E tinha uma opinião diferente da de António Ferro, menos estadista e mais modernista e voltado às artes. Certo dia, Salazar cruzou-se com Vasco Santana na rua, mandou o chauffer parar o carro, desceu a janela e disse-lhe: “Bom dia, senhor Zequinha!” Eram os anos áureos da rádio. Até Salazar seguia o folhetim da vida de Zequinha e Lelé, interpretada por Vasco e por Irene Velez, na Emissora Nacional. Se nos anos 20 Vasco Santana era popular no teatro e nos anos 30 um ídolo no cinema, nos anos 40 chegou mais longe. Literalmente mais longe. Chegou a todos com as ondas hertzianas da rádio.
Mas o Estado Novo era já um estado-forte. E o humor era controlado como nunca pela censura. E sobre a censura certo dia Beatriz Costa disse: “O que seria um Vasco Santana sem aquele cabrão a censurá-lo na primeira fila?” Nunca saberemos. Mas o filho, José Manuel Santana, falava de uma artimanha que o pai tinha para contorná-la: “Quando a censura vinha assistir aos ensaios, os atores esforçavam-se para representar mal. Liam os textos de uma maneira lamentável, de tal forma que as piadas escapavam e sobreviviam até ao dia de estreia.”
Na rádio, a censura era ainda mais apertada. Mas mesmo assim escapavam deixas como esta, não se sabe se improvisadas ou se mal-representadas no ensaio:
“Lelé – Olha! Amanhã começo a fazer a colcha!
Zequinha – Está bem! É para a futura cama do futuro quarto da nossa futura casa!
Lelé – É toda em renda!
Zequinha – Pois é! O pior é a renda! As casas agora são todas em estilo ‘mil e quinhentista’!”
Vasco viveu em excesso: de comida, de bebida, de tabaco. E viveu excessivamente até ao fim, em 1958
Vasco Santana nasceu na Monarquia, cresceu na Primeira República e foi idolatrado no Estado Novo. Fez teatro – e também no teatro foi inovador, quando estreou com Luísa Satanela e Estêvão Amarante a peça (quase um ballet russe no tempo da moral e dos bons costumes) “Miss Diabo” –, participou no que se convencionou chamar de modernismo do cinema português, fez sucesso na rádio com seu Zequinha e ainda fez aparições, ainda que brevíssimas, nas primeiras emissões da RTP.
Nos últimos anos de vida, Vasco Santana não era mais o galã divertido, mas um homem de excessos, na comida, na bebida e no tabaco. Mais na comida e no tabaco. João Vasco Santana contava: “O meu pai fumava muito. Uma vez estava a acabar um cigarro e o contra-regra veio ter com ele: ‘O Vasquinho não pode fumar aqui.’ O meu pai respondeu-lhe: ‘Olhe, já o meu médico diz o mesmo, mas o que é que quer? Eu tenho este vício.’” E a personalidade de Vasco também se tornou mais volátil. Até irascível.
Armando Cortez trabalhou com Vasco Santana em 1954, e logo na primeira peça que dirigiu com profissionais, “Perdeu-se Um Marido”. Vasco Santana e Laura Alves eram os cabeças-de-cartaz. “Era um ótimo colega, de humores variáveis… Talvez por causa da diabetes. Quando o açúcar baixa, nós caímos; o Vasco era gordo e nos gordos é mais difícil de se compensar a quebra de açúcar. Não era bem no humor que se notava a diferença; era sobretudo na vitalidade.” Cortez recordava então, numa entrevista que Patrícia Reis reproduziu na biografia “Vasco Santana, o bem-amado”, outro episódio: “Um dia zangou-se comigo. Eu era diretor de cena e o contra-regra chamou-me e disse-me: ‘O Vasquinho quer falar consigo’. E eu fui ver o que se passava. Virou-se para mim e disse-me: ‘Ó Armando Cortez, roubaram-me um lápis’. Ri-me, achei piada. ‘Roubaram-me um lápis, um lápis de maquilhagem’, disse ele. E eu continuei-me a rir. Ele disse: ‘Então eu estou a dizer-te oficialmente que me roubaram um lápis e tu ris-te?’ E deu-me um grande sermão.”
Vasco estava doente. Sofria de uma cirrose hepática. Em crítica à peça “Caso Barlon”, uma das últimas em que subiu a palco, Heitor Roque escreveu no Diário de Lisboa: “Raras vezes, nas nossas crónicas sobre teatro, nos referimos a Vasco Santana (…) é que preferimos o silêncio a termos que ser desagradáveis.” A doença galopava de dia para dia. E quase o levou de vencida. A 12 de maio de 1958 dizia-se de Vasco Santana que tinha morrido. Era somente um boato. Operado nesse dia, no Hospital da CUF – até à antevéspera representara no Monumental a comédia “Um Fantasma Chamado Isabel” –, a notícia da sua morte alarmou amigos e admiradores. A alegria do desmentido foi, porém, efémera.
Vasco Santana regressou a casa, o 3.º andar do n.º 10 da Rua Barata Salgueiro, quinze dias após a operação. Mas o restabelecimento não seria feito aí. Vasco partiu em seguida para a sua quinta, o Casal Soloio, em Caneças, onde a cura se completaria com sopas e descanso. Era um homem de 60 anos, obeso, quase morbidamente obeso, envelhecido e só. No dia 13 de julho, às 9 e 15 da manhã, um colapso cardíaco matou-o. E não era mais um boato. O maior ator do seu tempo morrera.
O jornalista Apio Garcia descreveu assim o funeral de Vasco Santana: “O povo de Lisboa, que ao longo de quarenta anos se habituou a aplaudir e a estimar Vasco Santana, considerando-o mais do que amigo íntimo, um parente muito querido, prestou, através das ruas da cidade e no cemitério dos Prazeres, uma das mais expressivas e emotivas homenagens até hoje dedicadas a um artista português no dia do seu funeral. Milhares e milhares de pessoas, muitas das quais o conheciam apenas do palco, das telas do cinema e dos recetores de rádio e televisão (…) desfilaram, em filas compactas, muitos com os olhos arrasados de lágrimas, pela câmara ardente armada na basílica dos Mártires, em cujas cercanias foi necessário estabelecer um serviço de ordem para regularidade do trânsito. Ia aumentando a afluência de povo no Chiado, Praça Luís de Camões e ruas vizinhas. Dentro do templo, não tinham conta os ramos e as coroas de flores. O calor asfixiava. A massa de gente era tal que foram necessários longos minutos para se percorrer o espaço entre a porta e a câmara mortuária, no lado esquerdo do altar-mor.”
Já nos Prazeres, Ruy de Carvalho recordou depois que “era um barulho naquele cemitério que não se calcula. As pessoas estavam ali como numa festa e a coisa culminou com alguém a pedir à Amália que cantasse um fado.” Desse dia, Artur Semedo, também ele galã do cinema e do teatro como Vasco, disse, gracejando: “O Vasquinho preferia, sem dúvida, ter ido pelo seu próprio pé a caminho do cemitério. Vivo, bem-disposto, alegre, contagiante, a agradecer os aplausos, os bravos, os últimos gritos da multidão ululante, para, enfim, exclamar: ‘Vou-me embora, meninos! Morri! Vou desta para melhor!’”
As fotografias de Vasco Santana foram gentilmente cedidas por Joaquim Vieira, que dirigiu a coleção “Fotobiografias do Século XX”, da Temas e Debates.