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** A propósito do alegado atentado deste sábado contra o Presidente da Venezuela, o Observador recupera esta reportagem sobre as condições de vida da população no país sul-americano, publicada em maio de 2016.  **

Inflação galopante, cortes de energia, dias de paragem obrigatória no trabalho da função pública, filas intermináveis para comprar bens alimentares a preços regulados. Tudo isto surge nos últimos dias nas manchetes dos jornais sobre a Venezuela. A oposição está decidida a mudar de política e tenta pela segunda vez na história do país fazer um referendo revogatório para destituir o Presidente, Nicolás Maduro. Agora que a oposição conseguiu recolher quase dois milhões de assinaturas, um dos primeiros passos para fazer o processo avançar, o presidente da Venezuela anunciou que vai mesmo autorizar a realização de um referendo.

Esta semana, o Secretário de Estado das Comunidades português está de visita oficial ao país, com o objetivo de relançar as relações bilaterais de cooperação. José Luís Carneiro relembrou a “preocupação com a situação social, económica e política da Venezuela”. Na Venezuela existem mais de 200 mil portugueses registados nos consulados.

Veja, através de quatro relatos dramáticos, como se vive num país onde a instabilidade económica e social parece não ter fim.

“Aqui, quem parar de produzir, morre”

“Estou aqui há 40 anos e nunca vivemos nada parecido com isto” diz António*, um português que vive em Caracas, na Venezuela, desde os 17 anos.

São cada vez mais as pessoas que fazem filas para comprar comida e são cada vez mais as pessoas que, apesar de estarem nas filas, não conseguem comprar nada. A comida chega a cada vez menos gente, “a escassez de alimentos e de medicamentos está a aumentar de dia para dia”.

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https://twitter.com/NoticiasVenezue/status/726192709296373760

A lista do que falta é extensa, mas fácil de resumir porque “falta quase tudo”. Falta leite, falta azeite, falta café, falta carne, falta frango. “E conseguir arroz é problemático, praticamente ninguém tem arroz.”

E, quando há, os preços são proibitivos para muitos venezuelanos. “O preço do quilo de frango passou de mil para 2 mil bolívares, quase de um dia para o outro. Uma caixa de ovos, por exemplo, que há pouco tempo custava 12 mil bolívares, está em 24 mil.”

Sobre o aumento dos salários e pensões em 30% anunciado no passado domingo, o português lembra que “todos os anos no dia 1 de maio (Dia do Trabalhador) os salários são aumentados, isso não é nada de novo”. A novidade são os níveis nunca vistos da inflação.

“Quem não gosta que lhe aumentem o ordenado? O problema é a triste realidade: dentro de uma semana esses 30% transformam-se em 100% de aumento na inflação e esse salário fica completamente desvalorizado pela inflação. Aumentam os salários e aumenta tudo. Se não se toma medidas para controlar a inflação, de que serve aumentar os salários?”

António não tem resposta para a sua própria pergunta, só fala sobre o que vê. E o que vê é que “estão a fazer-se grandes negócios — aqueles que conseguem alimentos a preço regulado revendem ao preço que querem porque, como há pouca oferta, quem pode compra.”

Pessoalmente, não se queixa da falta de trabalho, porque ao contrário de muitos outros negócios a impossibilidade de comprar divisas não o prejudica tanto como a quem precisa de importar. Mas de uma coisa não há dúvida: “Vivemos com bolívares e a verdade é que os bolívares não valem nada.”

E quem precisa de comprar moeda estrangeira tem de se virar para o mercado negro, algo que também se está a tornar cada vez mais difícil. “Não podemos comprar divisas, só vamos comprando a pouco e pouco quando alguém quer ou precisa de vender, no mercado negro. Tem que ser feito de uma forma privada. E não está nada fácil conseguir encontrar quem queira vender divisas, porque a moeda desvaloriza todos os dias. Cada vez que vendem divisas perdem dinheiro e evitam. Atualmente, comprar 1 euro custa 1.300 bolívares no mercado negro e 1 dólar custa 1.050, 1.100 bolívares, por aí.”

Para o empresário, um dos problemas estruturais da economia venezuelana é a impossibilidade de aceder a dinheiro estrangeiro. “Tinha que haver uma mudança radical em relação ao controlo do câmbio porque o Governo controla a moeda. Não é permitido o acesso dos empresários e das empresas às divisas, para se poder pôr o país a produzir. E sem produção não é possível fazer nada. Este país tem que produzir, tem que produzir de tudo.”

Mas para produzir é preciso energia, um bem que também começa a faltar. “A água da barragem de El Guri baixou para níveis nunca vistos, porque estamos em seca e isso tem provocado problemas de eletricidade graves a nível nacional. Isso obrigou o governo a decretar que os funcionários públicos não trabalham à sexta-feira. E agora também já não trabalham à quarta nem à quinta, com ao objetivo de tentar poupar energia.” Antes, os cortes de energia só ocorriam no interior, mas nos últimos dias também têm acontecido em Caracas e “já há zonas da cidade com problemas de eletricidade.”

“Cada vez que há cortes de eletricidade é difícil trabalhar, mas temos que lutar. Temos empregados e temos que pagar ordenados e temos de pensar numa maneira de continuar a produzir. Aqui, quem parar de produzir morre”, desabafa o empresário.

Durante a conversa telefónica com o Observador, a frase que mais repete é: “A escassez de alimentos é impressionante, impressionante.” E reforça o que diz com um exemplo: “Açúcar, por exemplo, é quase ouro. Conseguir um pires de açúcar é como encontrar ouro numa montanha.”

“Os principais problemas aqui são a insegurança, a escassez de alimentos e agora a inflação brutal, por esta ordem”, diz. Já quase no fim da conversa com o Observador explica porque é que põe a falta de segurança em primeiro lugar. “Estamos a falar de 500 assassinatos semanais só em Caracas. Roubos, assaltos à mão armada, raptos, isso é o pão nosso de cada dia. Aqui não existe praticamente vida noturna, 90% da população não sai de noite. A maior parte das pessoas às sete e meia, oito da noite, já está em casa”, conta.

Só há água durante 45 minutos de manhã e à noite

“Vivemos com um stress constante e com medo”, começa por dizer Guillermo Pereira, de 33 anos, ao Observador. Para o publicitário, a “coisa mais difícil, no meio de tudo o que se passa, é a falta de segurança”. Trabalha numa empresa com 150 pessoas e todos os dias há alguém no escritório com episódios de violência para contar. “Há muitos roubos, muitos assaltos à mão armada e não importa se andas de transportes públicos ou se te deslocas no teu carro particular.”

Depois, há o problema da alimentação: “Faltam quase todos os produtos da cesta básica: arroz, açúcar, leite, massa, manteiga”. Todos os dias as pessoas fazem fila nos supermercados para comprar os produtos a preços regulados (com um preço muito abaixo do que custa produzi-los) que chegam nesse dia. “Mas nunca se sabe que produtos vão chegar e em que dia. Então, podes estar todo o dia numa fila para comprar o mesmo produto que compraste no dia anterior. Se ontem compraste massa, voltas a comprar massa porque depois podes trocar por outro produto de que precises e que alguém tenha.” Este mercado deu azo à criação de um sistema informal de trocas: “Há muitas trocas de produtos com familiares, amigos e conhecidos. Eu tenho sabão, tu tens massa, trocamos.”

Um circuito paralelo sem circulação de dinheiro, conta Guillermo, para quem a verdadeira economia paralela está no facto de existirem muitas pessoas que se dedicam exclusivamente “a fazer fila” para comprar estes produtos de preço regulado para os revender a um preço muito mais alto.

“Em alguns sítios, como na Redoma de Petare — a maior favela do mundo e um sítio icónico de Caracas — que fica no município de Sucre, foi criado perto do metro uma espécie de centro comercial improvisado a céu aberto onde se vendem todos os produtos regulados a um preço muito superior. São vendidos pelas pessoas que se dedicam ‘a fazer fila’ para os comprar.”

Ser bachaquero – alguém que compra para revender com lucro – passou a ser uma “profissão” num país que atravessa uma profunda crise económica e com a maior taxa de inflação do mundo.

Isto dá azo a “situações incríveis”, como as que descreve o publicitário. “A nota de maior valor em circulação atualmente na Venezuela é a nota de 100 bolívares. E um café pequeno custa cerca de 150 bolívares. Com a nota mais valiosa no bolso não podes comprar um café pequeno. É quase como se em Portugal tivesses uma nota de 100 euros na mão e não pudesses tomar café.”

https://twitter.com/djanekika/status/516384795476373504

Os bolívares pouco valem e não chegam para comprar aquilo que não há, como água e eletricidade. Em Caracas, os apagões são constantes e imprevisíveis. “A minha namorada mora em San Bernardino [um município de Caracas] e nas últimas 72 horas houve 32 apagões. Os cortes de energia podem durar uma hora, uma hora e meia e nunca se sabe quando vão acontecer. Não estão programados e acontecem de forma arbitrária na região de Caracas. No interior do país existe outro sistema, com interrupções de fornecimento de energia programadas e anunciadas na imprensa nacional,” conta Guillermo.

Em El Hatillo, no município de Caracas, onde vive, a falta de água é mais problemática do que a falta de energia. No edifício onde moro só recebemos água entre as 8h e as 8h45 — só temos 45 minutos de água de manhã. Temos que tomar banho e depois encher recipientes para podermos ter água para a casa de banho, para cozinhar, para limpar. Porque depois a água é cortada outra vez até às 20h. Passamos todo o dia sem água. Só voltamos a ter água entre as 20h e as 20h45 e voltam a cortar. A água está a ser racionada porque estamos a atravessar uma seca e quase não há água nos reservatórios, o que também afeta a produção hidroelétrica.”

https://twitter.com/maduro_pt/status/725758247274188801

Por enquanto, um dos únicos bens que não falta é o petróleo, uma matéria-prima de que a Venezuela tem algumas das maiores reservas do mundo. Nas ruas de Caracas há outro “produto” que também não falta. “Aqui é mais fácil conseguir qualquer tipo de droga do que conseguir açúcar”, garante.

“O populismo ama tanto os pobres que quer que continuem pobres”

Luís* tem 32 anos e é administrador de uma empresa. Contas feitas, o seu salário no mercado negro não chega aos 120 euros. Contas que fez muitas vezes ao longo da conversa com o Observador. “Amigos, mesmo amigos, aqui na Venezuela já só me sobram dois”. Quem pode comprar um bilhete de avião sai porque não há trabalho e porque “é impossível comprar uma casa com uma inflação de 300%”.

Desdobra-se em exemplos para tentar explicar como funciona a economia num país onde quase tudo se vende no mercado negro. Incluindo, explica Luís, armas de guerra como AK-47 ou granadas.

“Há grupos organizados a atacar polícias para roubar as armas”, que depois são usadas em assaltos à mão armada – “aqui podes levar um tiro por causa de um iPhone” – para sequestros ou para serem revendidas. “Uma Glock 9mm que vale 500 dólares nas ruas dos EUA, aqui vale 2 mil dólares, 300% mais”, conta Luís.

Um negócio muito rentável numa economia ” muito difícil de entender por causa do controlo cambiário” e que funciona “como nenhuma outra”.

https://twitter.com/RonaldPerez648/status/683770527366942721

“Na Venezuela, os carros usados valem mais do que os carros novos, uma coisa que não acontece em mais lado nenhum”. O país que tem filas para comprar produtos básicos é também “um dos países do mundo com mais milionários com menos de 30 anos que fizeram fortunas no negócio das divisas”, conta.

“Com apenas 2 mil dólares anuais é possível ter uma qualidade de vida como não se tem em nenhum lugar no mundo, agora é só imaginar como vive aqui quem tem 1 milhão de dólares.” Com dinheiro, em especial com divisas, quase tudo é possível. “O dólar oficial está a 200 bolívares. No mercado negro, um dólar vale cerca de 1.115 bolívares, é só fazer as contas”. Um valor bem acima da chamada barreira psicológica de mil bolívares noticiada em fevereiro passado.

No meio da instabilidade política e social, há nichos de mercado que florescem. “O negócio dos carros blindados cresceu e o da segurança privada também”.

Luís, que já viveu nos Estados Unidos e em Aruba (uma pequena ilha na costa norte da Venezuela, ex-colónia holandesa e que permanece sob a soberania do país), voltou a Caracas para ficar. Mas está a pensar em emigrar de novo. “Estou à espera do referendo revogatório”, para tomar uma decisão. “Se houver referendo há uma possibilidade de mudança, mas também não temos garantias de que o governo aceite o resultado.” Se houver uma mudança de executivo vão criar-se novas oportunidades no país, que Luís gostaria de poder aproveitar.

“Tivemos um governo de ditadura de direita durante 40 anos e, apesar de tudo o que fez de mal, nos primeiros anos o país desenvolveu-se muito”, diz. A Venezuela mudou para o outro lado do espetro político, mas para Luís o resultado final é semelhante. “Nos últimos 17 anos passamos para um governo ditatorial de esquerda que destruiu tudo, graças ao populismo. O populismo ama tanto os pobres que quer que continuem pobres”.

“Agora, as farmácias vendem refrescos e mais nada, não têm medicamentos”

Franco Tintori tem 36 anos e, tal como a maioria dos amigos de Luís, decidiu emigrar. Há seis meses que vive na Cidade do México e entre as muitas razões que o levaram a sair da Venezuela fala da segurança da família em primeiro lugar. “Acabei de me casar com a minha mulher e penso em fundar uma família. Quero que os meus filhos tenham oportunidades e não vivam ameaçados. Aconteceram-me várias coisas que para mim foram como avisos a dizer-me: tens que ir”, começa por contar na conversa telefónica com o Observador.

A restante família de Franco continua a viver em Caracas. O seu cunhado é um dos presos políticos mais conhecidos do país. “O marido da minha irmã é o Leopoldo López e, desde que foi preso, os meus sobrinhos não podem estar com ele como uma família normal. Foi preso por ter protestado. Apesar de a Assembleia Nacional ter decretado que já pode ser libertado, não o fazem. Está numa situação muito delicada e tem pedido ajuda às instâncias e organismos internacionais, como as Nações Unidas, com o objetivo de conseguir executar a amnistia que foi decretada pela Assembleia Nacional.”

Uma situação que pesa sobre a família de Franco, que, para além disso, também “passa pelo mesmo que todos os outros venezuelanos porque não há comida, não há água, não há luz, não há medicamentos.”

Quando vivia em Caracas, a situação das filas para comprar comida já era comum. “Filas de duas e três horas para comprar detergente, por exemplo. Só podia ir para as filas dois dias por semana e eram dias perdidos em termos de procura de trabalho. Nos dias que me tocavam de acordo com o meu documento de identificação pessoal [o dia em que os venezuelanos podem ir às compras depende o algarismo em que termina o número do bilhete de identidade] tinha que estar na fila para ser mesmo eu a comprar as coisas.”

Franco conta que também tinha problemas diários em termos de alimentação, não tanto pela falta de dinheiro mas porque, mesmo tendo dinheiro, não havia o que comprar. “A situação piorou muito desde que saí. A minha mãe conta-me que agora não se consegue comprar mesmo nada. Agora as farmácias vendem refrescos e mais nada, não têm medicamentos.”

“Tenho um irmão nos Estados Unidos e é ele que lhe manda coisas: medicamentos, comida. É assim que muitos venezuelanos estão a viver, com as coisas que lhes mandam de fora”, diz o venezuelano.

Faltam tantos medicamentos no país que muitos não hesitam a fazer pedidos nas redes sociais, em especial no Twitter, onde os pedidos desesperados são muitos.

Franco é ator e tinha poucas oportunidades de trabalho na Venezuela. Desde que está no México já participou em duas curtas-metragens e vários anúncios publicitários. Está a recomeçar em termos profissionais e tão cedo não pensa regressar à Venezuela, que na sua opinião só tem duas opções: “Uma é que o Presidente renuncie e se instale uma nova política de reconstrução do país; a outra é se façam novas eleições e seja eleito um outro presidente, com outro modelo económico, porque o que temos agora não funciona.”

Para Franco, isso já está mais do que provado, mesmo que o governo argumente o contrário. “Dizem que estamos numa guerra económica e que é o setor privado que está a desestabilizar a economia”. Uma mentira, defende o ator. “É um pouco irónico e também um pouco tonto dizer isso porque o setor Estado é cada vez mais forte. Foi tudo expropriado e é tudo público. A Venezuela importa tudo, não produz nada.”

* Os nomes são fictícios, uma vez que os entrevistados pediram para não ser identificados.