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Há um problema com a nossa Constituição?

Parece que sim. À esquerda, diz-se frequentemente que a Constituição está a ser atacada e violada sistematicamente por governos e maiorias parlamentares; à direita, ouvem-se regularmente queixas de que a Constituição é a grande arma daqueles que querem resistir à adaptação do Estado e da economia portuguesa a um mundo mais aberto e competitivo. Temos assim várias questões: por exemplo, saber se o atual texto constitucional é compatível com a expressão democrática da vontade dos portugueses, visto que estes regularmente elegem maiorias e governos supostamente “inconstitucionais”; ou perceber de que modo o texto constitucional tem sido ou não usado para bloquear o progresso do país. No entanto, se parece haver um problema, parece também haver uma enorme relutância, tanto à esquerda como à direita em o discutir abertamente, para além das queixas e das acusações. RR

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Em que condições é que a Constituição foi aprovada?

A Constituição da República Portuguesa foi elaborada e aprovada por uma Assembleia Constituinte que resultou das primeiras eleições livres, limpas e democráticas da história de Portugal, em 25 de Abril de 1975. Mas os poderes dos deputados constituintes foram limitados pelo Conselho da Revolução, que negociou com os partidos dois “acordos constitucionais” pré-definindo o texto da Constituição (um antes das eleições, a 11 de Abril de 1975, e outro a 26 de Fevereiro de 1976). Os deputados constituintes foram ainda sujeitos, no Verão e no Outono de 1975, ao bullying exercido pelo PCP e pela extrema-esquerda, apoiados por algumas facções do MFA. Houve interrupções agressivas das galerias e um célebre cerco à Assembleia Constituinte, a 12 de Novembro de 1975, levando à saída para o Porto de grande parte dos deputados do PS, PSD e CDS, a 14 de Novembro. Depois de derrota da “esquerda militar” a 25 de Novembro de 1975, a liberdade e a importância da Assembleia Constituinte aumentaram. A 2 de Abril de 1976, todos os partidos votaram favoravelmente o texto da Constituição na sua globalidade, menos o CDS, que votou contra. O líder do PPD-PSD, Francisco Sá Carneiro, tentou levar o seu grupo parlamentar a abster-se, sem sucesso. RR

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Qual a diferença entre rever a Constituição e elaborar uma nova Constituição?

A questão admite várias respostas, situadas em diferentes patamares de profundidade, consoante o conceito de constituição em causa.

Segundo um conceito formal de constituição, nos termos da qual esta corresponde à lei constitucional, a diferença está em que a revisão constitucional procede à modificação da Constituição segundo o procedimento específico nela regulado para esse efeito, passando as alterações a constar do texto constitucional. Já uma nova constituição resultaria da abertura de um processo constituinte não previsto na Constituição e destinado à aprovação de uma nova lei constitucional. Neste sentido, meramente formal, nada importa que a nova constituição se distancie mais ou menos da anterior no plano das opções constitucionais.

De acordo com um conceito material de constituição, nos termos da qual esta corresponde ao conjunto das opções constitucionais ou a um determinado conteúdo constitucional, a diferença está em que a revisão constitucional, ao contrário da elaboração de uma nova constituição, não altera o «núcleo duro» ou o «ADN político» da Constituição, ou seja, aqueles princípios ou opções constitutivos da sua identidade material. Coloca-se então a questão de saber como distinguir os elementos constitucionais essenciais ou basilares dos acidentais ou secundários.

Também aqui se admitem respostas de natureza formal ou material. Segundo as primeiras, a essência da Constituição corresponde aos princípios e opções abrangidos pela cláusula de limites materiais ao poder de revisão (art. 288º). Já o critério material é o de que a determinação da essência da Constituição é uma questão aberta à interpretação do texto constitucional, cabendo ao Tribunal Constitucional ou ao legislador de revisão constitucional, consoante a concepção que se subscreva do princípio da separação de poderes, a última palavra sobre o assunto.

Finalmente, nos termos de um conceito fundamental de constituição, a elaboração de uma nova constituição pressupõe a transição para um novo regime ou forma de convivência política, em princípio desencadeada por uma revolução, um processo de integração federal ou um fenómeno de desagregação política. A transição tanto pode dizer respeito aos valores constitucionais ― por exemplo, a substituição do Estado de direito democrático por um Estado autoritário ou totalitário ― como à forma, estrutura ou existência do Estado ― por exemplo, a integração de Portugal numa «União Federal dos Povos Europeus» ou a desagregação do Estado português numa constelação de entidades políticas menores (tais como a anexação da região sul pelo Estado islâmico, a formação de uma «República Popular da Madeira» ou a criação nas regiões centro e norte de um «Reino Neovisigótico»). GAR

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Como é que se pode rever a Constituição?

O poder de revisão da Constituição é instituído e regulado pelas normas constantes do Título II da Parte IV. Dada a extensão dos limites ao exercício de tal poder, muito significativa no plano do direito constitucional comparado, já se tem dito que a nossa Constituição é hiper-rígida, no sentido de «muito difícil de rever».

O órgão competente para modificar a Constituição é o órgão legislativo comum ― a Assembleia da República (art. 284º, nº 1), ― mas a revisão constitucional está sujeita a limites de duas ordens: formais e materiais.

Os limites formais desdobram-se em temporais, circunstanciais e procedimentais. Quanto aos primeiros, a Constituição só pode ser revista cinco anos após a publicação da última lei de revisão ordinária (art. 284º, nº 1), podendo contudo a AR assumir poderes de revisão extraordinária por maioria de quatro quintos dos deputados em efetividade de funções (art. 284º, nº 2). Quanto aos segundos, a Constituição nunca pode ser revista na vigência de estado de sítio ou de estado de emergência (art. 289º). Finalmente, são de caráter procedimental os limites à iniciativa e aprovação da revisão (arts. 285º e 286º, nºs 1 e 2); pela sua relevância política, é de destacar, neste âmbito, a exigência de maioria de dois terços dos deputados em efetividade de funções (super-maioria ou maioria agravada) para aprovar as alterações à Constituição (art. 286º, nº1).

Os limites materiais, fixados no art. 288º, referem-se a princípios ou opções constitucionais que, por constituírem, no entender do legislador constitucional, o «núcleo duro» ou o «ADN político» da Constituição (por exemplo, a forma republicana de governo, o sufrágio universal, a separação de poderes, a independência dos tribunais e os direitos, liberdades e garantias), não podem ser suprimidos, subvertidos ou adulterados por uma lei de revisão constitucional.

A violação dos limites formais ou materiais da revisão constitucional importa, naturalmente, a inconstitucionalidade das alterações respetivas (art. 3º, nº 3), estando a lei de revisão constitucional sujeita aos mecanismos de fiscalização da constitucionalidade previstos no Título I da Parte IV da Constituição. GAR

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Quantas revisões já houve desde 1976?

A Constituição foi revista sete vezes desde a sua entrada em vigor em 25 de abril de 1976: em 1982, 1989, 1992, 1997, 2001, 2004 e 2005. Apesar da sua estrutura hiper-rígida, a verdade é que a história da Constituição de 1976 tem sido marcada por uma prática regular de revisão, alimentada quer pela incongruência ideológica entre a versão originária da Constituição e o espaço político ocupado pelos partidos do chamado «arco da governação», quer por uma cultura pública de ligeireza constitucional que resulta na inflação de matérias «constitucionalizáveis» e na correspondente banalização política da Constituição.

A Primeira Revisão (1982) suprimiu a carga programática e a orientação marxista do texto originário, nomeadamente as referências à «transição para o socialismo», à «sociedade sem classes», ao «processo revolucionário» e ao «exercício democrático do poder pelas classes trabalhadoras»; procedeu ainda à extinção do Conselho da Revolução e à criação do Tribunal Constitucional, promovendo assim a subordinação definitiva do poder militar ao poder civil.

A Segunda Revisão (1989) alastrou o espírito «liberalizante» e «democratizador» da Primeira Revisão ao âmbito da constituição económica, saneando o texto constitucional da retórica da «irreversibilidade das nacionalizações», da «reforma agrária», da «apropriação colectiva dos meios de produção» e abrindo caminho à reprivatização dos activos nacionalizados após o 25 de abril de 1974.

A Terceira Revisão (1992) alterou a Constituição no sentido de assegurar a legitimidade constitucional das significativas transferências de competência do Estado português para a União Europeia implicadas pelo Tratado de Maastricht.

As restantes revisões foram menos profundas e revestiram-se de uma menor carga política. A Quarta Revisão (1997) introduziu algumas novidades no direito constitucional eleitoral, entre as quais é de destacar a admissão de círculos uninominais. A Quinta Revisão (2001) adaptou a Constituição aos Estatutos do Tribunal Penal Internacional. A Sexta Revisão (2004) aprofundou as autonomias regionais e introduziu a regra da limitação dos mandatos políticos. Finalmente, a Sétima Revisão (2005) alterou o texto constitucional no sentido de autorizar a realização de um referendo a um futuro tratado europeu (que viria a ser o Tratado de Lisboa). GAR

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A Constituição ainda é a mesma?

Como se viu a propósito da questão 3, o termo “constituição” tem vários sentidos, designadamente formal, material e fundamental. Num sentido formal, em que a Constituição se identifica com a lei constitucional, não há dúvida de que a Constituição é a mesma, na medida em que todas as revisões constitucionais observaram o procedimento nela previsto para esse efeito.

É menos evidente se a Constituição fundamental permaneceu inalterada. É certo que no atual quadro constitucional Portugal permanece uma república soberana baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e constitui um Estado de direito democrático. Mas não é menos verdade que foram expurgadas do capítulo preliminar referente aos Princípios Fundamentais as referências originárias ao empenho na construção de uma sociedade sem classes, à transição para o socialismo, ao processo revolucionário e à socialização dos meios de produção como tarefa fundamental do Estado. Apesar de tudo, não é implausível o argumento de que os elementos marxistas-leninistas e militaristas-revolucionários nunca ocuparam o espaço fundamental que a Constituição reservou a princípios como a dignidade da pessoa humana, a soberania popular, o Estado de direito ou a legitimidade democrática do poder político.

Questão adicional é a de saber se o processo de integração europeia não atingiu uma tal relevância constitucional nas últimas décadas que descaraterizou os pressupostos soberanistas e estatistas da Constituição de 1976, transformando-a numa constituição parcial e aberta no quadro de uma soberania partilhada, mitigada ou mesmo truncada. Tendo em conta a inexistência de um verdadeiro federalismo europeu, a resposta mais plausível é de sentido negativo. Em síntese geral, não se pode dizer que as sucessivas revisões constitucionais tenham operado uma mudança de regime, pelo que a Constituição fundamental é a mesma.

Finalmente, coloca-se a questão de saber se a Constituição material, o conjunto das opções constitucionais, sofreu modificações essenciais, no sentido de que alteraram o «ADN político» ou a identidade da Constituição. No fundo, trata-se de saber se a Constituição aprovada em 25 de Abril de 1976 é reconhecível na versão atual. Pode dizer-se que a Constituição material não é mesma porque a Segunda Revisão (1989) modificou a cláusula dos limites materiais, eliminando uma das alíneas (relativa à participação das organizações populares de base no exercício do poder local) e alterando outras duas (relativas à apropriação coletiva dos meios de produção e ao planeamento democrático da economia). Segundo esse entendimento, o poder de revisão que transgride os limites materiais fixados pelo poder constituinte excede o seu papel de garante da Constituição, através da sua adaptação a novas circunstâncias, para se arvorar em autor de uma nova obra constitucional.

Outro entendimento é o de que se não deve confundir a identidade material da Constituição com o juízo que sobre a mesma exprimiu o legislador constituinte ao consagrar uma cláusula de limites materiais. Neste sentido, a questão de saber se a Constituição material ainda é a mesma depende da interpretação do texto constitucional originário e do seu confronto com a versão atual. Comparando o preâmbulo (inalterado desde 1976) com o articulado, consegue discernir-se uma diferença estrutural entre a Constituição originária e a atual: a vinculação do Estado ao caminho para o socialismo foi substituída pela abertura democrática ao pluralismo ideológico, ainda que mitigada pela grande extensão dos limites impostos pela Constituição ao legislador ordinário, designadamente em matéria de políticas públicas de caráter social.

Para além desse ponto nevrálgico, não é difícil identificar outras mutações essenciais da Constituição: desmilitarização integral, liberalização relativa e europeização crescente. Em suma, sem prejuízo da preservação do regime e da continuidade formal do ciclo constitucional iniciado em 1976, é razoável concluir-se que a Constituição material não é a mesma. GAR

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Há alguma Constituição semelhante à nossa?

Todas as Constituições são, em certa medida, originais e, noutros aspetos, semelhantes a textos constitucionais estrangeiros. Tudo depende do termo de comparação que utilizarmos.

Se se pensar na perspetiva da proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos, há uma grande proximidade com a Constituição alemã do pós-II Guerra Mundial, de 1949. Ambas partem da centralidade da dignidade da pessoa humana e da autonomia individual como fundamentos e limites do Estado e da organização política.

No que toca à existência de um Estado social e à atribuição de direitos económicos, sociais e culturais, a Constituição portuguesa é das mais generosas. Para além das origens históricas remotas na Constituição de Weimar (1919), encontramos hoje em dia paralelos, no quadro da União Europeia, nas Constituições belga, espanhola, grega holandesa, irlandesa, italiana e luxemburguesa. Fora da União Europeia, os exemplos são vários, desde a África do Sul à Colômbia, da Índia ao Brasil.

Olhando, por seu turno, para o sistema político, a Constituição portuguesa é relativamente original, com o seu sistema semipresidencialista. Tem como raiz o modelo francês.

A regulação constitucional da Constituição económica é fruto da época. Quando foi aprovada, tinha inspiração soviética e jugoslava. Hoje em dia, a Constituição económica em vigor é, no essencial, a da União Europeia.

Do prisma da fiscalização da constitucionalidade, o modelo português é inédito, correspondendo à soma dos modelos francês (de fiscalização preventiva), norte-americano (de fiscalização sucessiva difusa) e austríaco (de fiscalização sucessiva concentrada).

No que toca ao regime de revisão constitucional, o modelo hiper-rígido da Constituição portuguesa tem paralelos, em medidas diferentes, nas Constituições norte-americana, alemã ou brasileira.

Se se pensar em aspetos acessórios, como a extensão do texto constitucional, a Constituição portuguesa é a mais longa das Constituições europeias. Fora da Europa, há vários casos de Constituições mais longas: são os casos, por exemplo, da Índia ou da Constituição do Estado federado do Alabama, nos EUA. TFF

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Quem é o pai da Constituição Portuguesa?

O pai da Constituição portuguesa é, naturalmente, a Assembleia Constituinte eleita em 1975, visto que se trata de um texto que foi objeto de longas discussões e da votação dos 250 deputados eleitos. Há, contudo, alguns deputados que se destacaram individualmente, por diferentes razões. Por um lado, o presidente da Assembleia Constituinte, eleito pelos seus pares: Henrique de Barros. Por outro lado, Jorge Miranda – eleito pelo Partido Popular Democrático – e Vital Moreira – eleito pelo Partido Comunista Português –, ambos com menos de 35 anos à altura, foram dos deputados mais ativos nas discussões e daqueles que mais contribuíram, em lados opostos da barricada, para a sistematização do texto da Constituição. O primeiro foi secretário e relator da Comissão de Redacção da Constituição, enquanto o segundo foi relator principal da mesma comissão, por designação do respetivo presidente. Entre os relatores da referida Comissão contam-se ainda António Reis, depois substituído por Carlos Lage – ambos do Partido Socialista. Todos tiveram, com especial destaque para Jorge Miranda – que costuma ser apontado como o pai da Constituição portuguesa – e para Vital Moreira, um papel de enorme relevância na preparação do texto constitucional. TFF

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Quais são os elementos essenciais de uma Constituição?

As constituições desempenham duas funções essenciais: organizam o poder político através do qual o povo se governa e limitam esse mesmo poder com a finalidade de impedir a sua degeneração. Por outras palavras, constituem e limitam o poder político.

Em primeiro lugar, são as normas constitucionais que possibilitam a existência do poder político. Sem Constituição não há órgãos de soberania como o Presidente da República, a Assembleia da República, o Governo ou os Tribunais através dos quais certos indivíduos, investidos no cargo de presidente, de deputado, de ministro ou de juiz, agem em nome e por conta dos cidadãos. A tarefa primeira de qualquer constituição é, por essa razão, a de determinar o estatuto, a estrutura e as competências dos órgãos de soberania e os critérios de designação dos seus titulares.

Em segundo lugar, as normas constitucionais limitam o poder político através de três mecanismos principais: garantindo os direitos fundamentais da pessoa, dividindo o poder (legislativo, administrativo e judicial) entre vários órgãos e sujeitando os titulares de cargos políticos ao escrutínio eleitoral dos cidadãos. Em síntese, direitos fundamentais, separação de poderes e princípio democrático. É esta função de garantia das constituições que está presente no célebre art. 16º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, um dos primeiros documentos do constitucionalismo moderno, segundo o qual “toda a sociedade na qual não esteja assegurada a garantia dos direitos nem determinada a separação de poderes não tem constituição.”

Da conjunção destes elementos resulta que qualquer constituição digna desse nome contém duas partes essenciais: a constituição orgânica (Frame of Government) e  a constituição dos direitos (Bill of Rights). Matéria acidental ou periférica é a chamada constituição programática, que vincula o Estado a determinadas opções de política pública. No caso português, são dessa natureza uma grande parte das disposições da Parte II, relativa à “Organização Económica”, nomeadamente a garantia de três setores de propriedade dos meios de produção, a elaboração e execução de planos de desenvolvimento económico e social, os objetivos da política agrícola, comercial e industrial ou a vocação do sistema financeiro. Mas a dimensão programática do texto constitucional não se esgota aí.

Acontece que muitas normas constitucionais formalmente compreendidas no âmbito dos direitos fundamentais também encerram opções de política pública. Para dar apenas alguns exemplos paradigmáticos: uma coisa é a liberdade de imprensa (art. 38º, nº 1)) e outra é a política de imprensa (art. 38º, nºs 2-7) ou a regulação da comunicação social (art. 39º); uma coisa é a liberdade sindical (art. 55º) e outra é a política sindical (art. 56º); uma coisa é o direito à segurança social (art. 63º, nº 1) e outra é a vinculação do Estado à criação de sistema de segurança social com as características precisas definidas na Constituição (art. 63º, nºs 2-5); uma coisa é o direito à saúde (art. 64ª, nº 1) e outra é a vinculação do Estado à criação de um serviço nacional de saúde universal, geral e tendencialmente gratuito (art. 64ª, nº 2, a)); uma coisa é o direito à educação (73º, nº1 e 74º) e outra é a determinação constitucional da política de educação (arts. 73º, nº 2, 74º, nº 2 e 75º-77º), incluindo a garantia institucional da escola pública (art. 75º, nº 1).

A constitucionalização destas opções suscita não apenas uma questão de cabimento, na medida em que a inflação de matérias constitucionalizáveis contribui para a banalização política das constituições, mas uma questão fundamental de legitimidade, porque reduz consideravelmente a liberdade de decisão do poder político democrático. É certo que a Constituição pode ser revista. Todavia, o poder de revisão está sujeito a limites materiais e formais (nomeadamente a exigência de uma maioria agravada) que asseguram a impossibilidade de revisão de uma opção política repudiada pela maioria dos eleitores, mas subscrita por uma minoria suficientemente ampla para bloquear a revisão. Estes casos, potenciados por constituições prolixas e programáticas como a nossa, manifestam o paradoxo antidemocrático da Constituição promover a desigualdade política entre os cidadãos, ao proteger as opções políticas de uma minoria dos resultados eleitorais e do regular funcionamento do processo político ordinário. GAR

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Quais são as áreas mais polémicas da Constituição?

Desde 2 de abril de 1976, dia da sua aprovação, que a Constituição está envolta em polémica. A natureza do documento, longo e altamente detalhado, torna-o demasiado prescritivo, impondo, assim, limites substanciais à ação do legislador ordinário. Algumas das áreas mais polémicas da Constituição são do domínio do simbólico. No preâmbulo do documento, por exemplo, afirma-se que a sociedade portuguesa deve caminhar para o socialismo, afirmação marcadamente ideológica que, embora compreensível à luz do espírito do tempo de redação do documento, parece, no mínimo, singular e bizarro nos dias que correm.

Um outro exemplo simbólico, que acarreta leituras políticas acerca do enviesamento político da Constituição, diz respeito à necessidade de Portugal preconizar a abolição do imperialismo na definição da sua política externa. Embora não tenham quaisquer consequências práticas na doutrina jurídica, elementos simbólicos desta natureza alteram o espírito do documento num sentido que, certamente, não está em linha com o Portugal europeu de 2015.

Para além dos elementos simbólicos, existem ainda um conjunto de questões substanciais que, ciclicamente, suscitam amplo debate acerca da necessidade de revisão constitucional. Em matéria de direitos sociais, nomeadamente o sistema nacional de saúde e de escola pública, é recorrente a crítica de que o documento prescreve uma visão demasiado estatista. Para alguns, a Constituição não é suficientemente clara na defesa intransigente do monopólio estatal nos direitos sociais. Para outros, o documento não deixa espaço constitucional às maiorias políticas conjunturais para escolherem outras vias de organização do sistema de saúde e de educação.

Quanto à organização do poder político, a relação do Presidente da República com o governo, nomeadamente a possibilidade de utilização do poder de dissolução, é fonte de atrito cíclico. A natureza vaga da disposição Constitucional que permite ao Presidente da República dissolver a Assembleia para garantir o regular funcionamento das instituições é fonte de polémica. JF