Em Junho passado, com a América incendiada pela campanha presidencial, percorri a Califórnia de ponta a ponta. Caminhei nas avenidas de São Francisco e no microclima ultra-progressista da Universidade de Berkeley, onde o nome de Ronald Reagan permanece um tabu histórico e Bernie Sanders é exaltado como herói. A sul, visitei a Biblioteca Presidencial que celebra o legado de Reagan, destino de romagem para milhões de conservadores americanos.
Numa destas viagens, enquanto o carro serpenteava pelos campos férteis de Central Valley, lembro-me dos enormes cartazes verdes com que as comunidades agrárias anunciavam aos visitantes que estavam a entrar em território de Trump. Em sucessivas vedações, largas faixas manuscritas prometiam combate a um sistema político corrupto, associavam Hillary a interesses financeiros obscuros e garantiam que um Presidente Trump estenderia a mão aos pequenos agricultores. Dentro do carro, a rádio transmitia uma palestra de Robert Reich, professor em Berkeley e célebre ideólogo da esquerda americana. Reich argumentava que, mesmo num clima político tão polarizado, existiam pontes entre o discurso económico da esquerda avessa à globalização e os receios da população mais conservadora, disposta a desconfiar do funcionamento do sistema político e decidida a preservar os ritmos de vida das pequenas cidades, contra a pressão modernizadora e o poder das grandes empresas.
Parecia-me impressionante como a narrativa de um professor universitário de esquerda se articulava com as categóricas tarjas dos trumpistas da Califórnia rural. E, no entanto, à esquerda e à direita, o debate já estava dominado por poderosas propostas de ruptura. Tal como Donald Trump, Bernie Sanders ocupava-se a denunciar a captura do sistema político por clientelas financeiras, defendia a retracção do comércio-livre em nome da protecção do trabalhador americano e explorava tensões económicas e raciais de forma populista. Ambos concordavam até na necessidade de restringir as intervenções militares americanas, embora Sanders o defendesse em nome de ideais pacifistas e Trump pretendesse privilegiar o interesse nacional americano.
Como Sanders, Donald Trump trabalhou o carisma de herói improvável, campeão do povo impotente contra os vícios de um sistema tentacular, que tratou de personificar na sua adversária. Desdenhado pelos analistas e subestimado pelas sondagens, foi repetindo que um sistema capaz de maltratar um homem tão rico quanto ele seria infinitamente mais cruel com a arraia-miúda.
O seu currículo de fama e sucesso económico foi profusamente admirado como prova de inteligência e capacidade política, sobretudo entre o eleitorado conservador, que é historicamente favorável a candidatos com experiência no sector privado. Soube apresentar-se como homem redimido que, depois de beneficiar das falhas do sistema, se colocava ao serviço do povo americano para as corrigir. E mesmo o seu discurso rude, desarticulado e populista foi sendo interpretado como uma manifestação de coragem e independência, face a uma cultura dominada pelos tabus do politicamente correcto.
Nos condados agrários da Virgínia, da Carolina do Norte, do Iowa, do norte da Flórida e das Grandes Planícies, Trump recolheu o apoio esmagador de populações conservadoras, apreensivas quanto aos desafios de um mundo em permanente mudança. Na cintura industrial do Midwest, o seu ataque à globalização e ao livre-comércio convenceu importantes bastiões operários, aos quais o esvaziamento sindical roubara os tradicionais mecanismos de representação política. Nas grandes áreas metropolitanas de Cincinatti, Filadélfia, Chicago ou Detroit, a existência de um discurso sobre a ordem pública e a reabilitação dos centros urbanos reduziu ligeiramente a desvantagem eleitoral histórica dos republicanos. E, em diversos subúrbios urbanos, a população com formação superior rejeitou Hillary a uma escala superior do que se previa.
A abrangência e a diversidade da coligação que elegeu Donald Trump parecem traduzir sinais importantes sobre a evolução política do eleitorado americano. É certo que, uma vez empossado, Trump será um chefe de Estado constitucional, com a capacidade de iniciativa limitada por um sistema de freios e contrapesos que garante o pluralismo e preserva a identidade do regime. Mas o simples facto da sua eleição aponta para um crescente descontentamento face ao rumo do processo de globalização, que não podemos menosprezar. Quer seja formulado por estudantes nas ruas sujas de Berkeley, ou pintado em faixas garridas, à beira da estrada sinuosa de Central Valley.
Estudante de Ciência Política e Relações Internacionais, 20 anos