Imagine-se que o Parlamento decidia aprovar uma nova regulação acerca da produção de legumes – não de frutas, mas apenas de legumes. Certamente, muito haveria a debater sobre uma proposta desta natureza. Seria pertinente? Que efeitos teria na produção agrícola? E que consequências produziria na dieta dos portugueses? Discussões fascinantes e necessárias. Mas, antes de todos esses debates, há uma questão prévia, que é a de perceber que coisa é essa que o legislador entende por legumes. O caso torna-se agudo quando chegamos, por exemplo, ao tomate, que muita gente acredita ser um legume, mas que a ciência sabe, para além de qualquer dúvida, tratar-se de uma fruta.

Eu posso ser o maior defensor da nova regulação sobre a produção de legumes. Mas não posso aceitar que, à boleia de uma lei sobre legumes, o legislador se sinta no direito de legislar sobre o tomate, porque o tomate não é um legume. Seria, aliás, especialmente perigoso que o legislador andasse a brincar com os equívocos e os preconceitos do senso comum, para convencer os portugueses de que o tomate é afinal um legume e deve, por isso, caber no objecto da nova legislação. A política é uma arte nobre de serviço público. Ou se faz com base na verdade – e a verdade, bem o sabemos, é a adequação das ideias à realidade das coisas – ou faz-se mal. E, quando se faz mal, faz mal ao povo.

Em Dezembro de 2019, o PAN propôs que os deputados pudessem, ao preencher o seu registo de interesses, declarar se pertencem a sociedades secretas – ou, como se tem dito, discretas. Dizia então o deputado André Silva que é “inconcebível que os titulares destes cargos continuem a não declarar a sua filiação em organizações marcadas por uma forte opacidade, por um grande secretismo e que apelam a fortes laços de hierarquia”. A proposta tem o seu cabimento, até porque existe o risco real de que algumas pessoas se sirvam das relações travadas no contexto da sociedade secreta para subir na vida à custa do tráfico de influências. Mas o problema, como sempre, está nos pormenores. É que, além da Maçonaria – que é, de facto, uma sociedade secreta, que se caracteriza pela opacidade, que se estrutura segundo relações hierárquicas muito fortes e que constitui, com efeito, um espaço onde o tráfico de influências é possível –, o PAN quis incluir no estatuto de sociedade secreta o Opus Dei, que não obedece a nenhuma dessas características.

O caso assumiu proporções ainda maiores quando o PSD – sim, o segundo maior partido português – decidiu embarcar no disparate e dobrar a aposta. Se o PAN propunha uma declaração facultativa, o PSD veio sugerir que fosse obrigatória. E, uma vez mais, à semelhança do PAN, os sociais-democratas quiseram amalgamar frutas e legumes, Opus Dei e Maçonaria. Talvez o tenham feito para evitar a acusação de estarem a talhar uma lei à medida da Maçonaria. Se assim for, estamos, como disse José Pacheco Pereira, perante “uma obsessão salomónica que passa por isenção.” Mas não é por se escrever numa lei que duas coisas são iguais que elas passam a sê-lo. E, na obsessão de fazer pontaria ao Opus Dei, está em causa, como disse a insuspeita deputada Isabel Moreira, um princípio que “fere a liberdade de culto”.

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A não ser que Rui Rio e André Silva vivam no universo do Código Da Vinci, onde o Opus Dei é composto de monges albinos que se passeiam pelas capitais europeias a matar pessoas e a roubar arte, não se percebe o intuito desta lei. O Opus Dei tem tanto de sociedade secreta como as Equipas de Casais de Nossa Senhora, os Jesuítas ou a Comunidade Israelita de Lisboa. Não escolho os exemplos ao acaso. Em Julho de 2018, um jornal português fez uma enorme manchete sobre as Equipas de Casais, retratando-as como “um dos movimentos mais conservadores da Igreja Católica”. À manchete seguia-se um artigo cheio de lugares-comuns e de meias-verdades eivadas de preconceito. Quanto aos Jesuítas, há menos de um século, eram brutalmente perseguidos pela Primeira República, que chegou ao ponto de, inspirada pela ciência frenológica da época, andar a medir os crânios dos sacerdotes, para provar que eram menos inteligentes. E os judeus, quando, em 1904, inauguraram a Sinagoga de Lisboa, tiveram de fazer dela um edifício discreto, sem portas abertas directamente para a rua. O judeu era tido como estrangeiro, a comunidade judaica como um corpo estranho.

A pergunta, pois, que importa colocar – e que aqui foi bem explicada por Raquel Abecasis – é: depois do Opus Dei, quem? Se o legislador se sente no direito de confundir a livre expressão da fé com uma sociedade secreta, o que vem a seguir? Quem são os próximos alvos? É a conspiração judaico-sionista? O jesuitismo? As ultraconservadoras Equipas de Casais? Aberta a porta ao primeiro disparate, estaremos a dar passagem ao disparate seguinte.

As coisas são o que são. O tomate não é um legume. O Opus Dei não é uma sociedade secreta. E a política, ou se faz com base na verdade, ou torna-se uma mentira.