Ficou famosa na História do cinema político uma cena do filme Aprile (1998), de Nanni Moretti, em que o realizador e actor italiano segue apaixonadamente um debate televisivo entre os candidatos a uma eleição e, através do televisor, grita para os debatentes: “diz alguma coisa de esquerda!”.

Tenho para mim que alguns eleitores vêm experimentando, nos últimos meses, uma frustração análoga à de Moretti. Diz alguma coisa cristã, apetecer-nos-ia pedir aos candidatos. Não uma exclamação beata ou uma locução piedosa; não um regresso ao velho fantasma do Estado confessional – que, de resto, foi sempre um arranjo especialmente danoso para a Igreja e para a sua liberdade. Alguma coisa cristã, no sentido de se encontrar, no meio da superficialidade do discurso eleitoral, a clareza de uma mundividência personalista, democrática, moderada, social, aberta à transcendência e ancorada na dignidade humana. Uma visão que possa beber da riqueza das fontes do Pensamento Social Católico para encontrar prioridades e modos de acção que respondam aos desafios dos nossos dias.

Não me interpretem mal: o Pensamento Social Católico está longe de se circunscrever a uma ideologia ou posicionamento político particular. Melhor seria vê-lo como um tronco largo e respeitável, antigo, mas cheio de seiva, que se desdobra em múltiplos braços – mais à esquerda ou mais à direita, mais compromissista ou mais combativo, mais integralista ou mais liberal, mais localista ou mais nacional, mais patriótico ou mais cosmopolita. Mas, em toda essa vastidão de ramos e de caminhos possíveis, tem de correr a seiva viva e frutuosa da visão cristã.

Tem de se saber, antes de tudo, que uma pessoa é uma pessoa. É um tesouro de dignidade infinita criado à imagem de Deus, único e irrepetível e com um papel singular a desempenhar no mundo. A pessoa não é um bem descartável, nem um agente económico atomizado, a ondear ao sabor do ventos do mercado, nem uma peça indiscernível metida na engrenagem de um sistema colectivista. É um ser complexo, com uma profundidade de existência própria. É feita de carne e de espírito, de herança recebida e de inovação construída, de identidade própria e de abertura à relação. E isso tem muitíssimas implicações, mas também significa (desculpem-me insistir neste ponto, mesmo que seja eleitoralmente incómodo) que é preciso continuar a travar a batalha contra o aborto. Estou cansado de ver a extrema-esquerda instaurar um tabu à volta deste tema, alegando que se trata de um “assunto resolvido”, ao mesmo tempo que, em surdina, preparam o terreno para alargar prazos e atacar o direito à objecção de consciência dos médicos. Andamos há anos a jogar este jogo num campo inclinado. E, um dia, a nossa falta de comparência transformará a inclinação do campo numa rampa deslizante.

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Tem de se entender também que a comunidade política é um edifício partilhado, e não uma guerra de facções. Precisamos de políticos que apelem ao melhor que há em nós, em vez de explorarem as nossas invejas, quezílias e desconfianças mútuas. Ricos e pobres, velhos e novos, nortenhos e sulistas, autóctones e imigrantes, citadinos e rurais, gente mais ou menos escolarizada, todos, todos, todos temos de ser envolvidos num projecto de país, numa visão de bem comum que não assente na rivalidade entre clientelas, mas na convergência de vontades e de esforços. E, já agora, não é possível traçar um projecto de bem comum sem uma reflexão sobre o espaço e o tempo. O espaço é o nosso território, o chão onde lançamos as nossas raízes. Tem feridas profundas – a fragmentação da propriedade rural, o abandono inclemente do Interior, a ameaça latente da seca, a incúria das florestas e dos rios, a falta de aproveitamento do mar e das suas potencialidades – e oportunidades únicas para quem queira amar a terra e promover uma ecologia integral. O tempo é a nossa História, o passado que herdámos. Tem aspectos que nos desconfortam, mas também convoca o nosso reconhecimento e orgulho. Toda a proposta política baseada numa pretensa desconstrução da História à luz de critérios anacrónicos tem o risco de nos mergulhar num irracional ódio a nós mesmos. E, com base no ódio, nada se constrói.

Não se pode, por outro lado, ter medo da subsidiariedade. Há uma enorme riqueza de vida que germina nas famílias, nas associações locais, na vida de bairro, de aldeia, de pequena comunidade. É por isso que precisamos de uma discussão ampla sobre o trabalho, não apenas para falar de impostos e de salários, mas também de tempo. É bizarro viver num país em que só o Partido Comunista se preocupa com o descanso dominical. As famílias precisam de tempo para estarem juntas, para verem crescer os filhos, para usufruírem da cultura e da vida cívica das suas terras. Precisamos também de escolas livres, despolitizadas, com projectos educativos próprios e entrelaçados com as comunidades locais, e de famílias que sejam tidas como as primeiras responsáveis pela educação dos filhos. E precisamos de uma política social que envolva os agentes locais – as Misericórdias, as IPSS, as paróquias – sem, porém, os filiar numa rede de dependência dos subsídios do Estado.

Depois da loucura febril de duas guerras mundiais, foi este conjunto de princípios – a dignidade da pessoa humana, o bem comum, a subsidiariedade, a solidariedade, a participação – que levantou a Europa dos escombros e da falência moral. Devemos muito ao Plano Marshall, e também aos contributos de liberais, sociais-democratas, conservadores e comunistas. Mas não haja dúvida: a Europa do pós-Guerra é obra da democracia-cristã. Foi-o na Alemanha de Adenauer, na França de De Gaulle e Schumann, na Itália de De Gasperi, Andreotti e Moro.

O tempo, hoje, é outro, mas o ser humano continua a ser o mesmo, tecido de carne e de espírito e habitado por um desejo de transcendência que não pode conter. É por isso que tantos garimpam o pó e a espuma dos dias, em busca de alguma pepita deste antigo tesouro de que estamos tão necessitados. No mundo e no país, o futuro está ao virar da esquina. Oxalá nesse futuro se diga – e se faça – alguma coisa cristã.