A Manuel Pina,

1. Como é possível que um dos maiores vultos da cultura portuguesa do século XX, que marcou profundamente a vida de centenas de pessoas, das mais conhecidas (intelectuais, artistas e políticos) às mais anónimas (veja-se a lista de artigos no In Memoriam ou os testemunhos no vídeo abaixo) esteja hoje tão mal tratado em Portugal, pelo poder instituído e instalado? Há várias respostas a esta questão entre as quais, desconhecimento, incompreensão e independência. Agostinho da Silva foi um pensador livre incansável, um actor nas diferentes polis em que passou, quer em Portugal quer no Brasil, um escritor exímio da língua portuguesa. Homem corajoso, de uma inteligência desarmante e uma humildade tocante, tinha uma ironia fina, um optimismo e uma boa disposição que só poderia contagiar quem com ele privasse. Nunca foi um político, no sentido quer do exercício, quer da oposição organizada ao poder instituído (evitava ambos), mas foi-o num sentido indireto de influenciar as elites (intelectuais, artísticas), de instruir o povo de que resulta a legitimidade política, e de afirmar o primado da liberdade individual. Caetano Veloso ao analisar o surgimento do tropicalismo questiona-se “como avalio hoje o papel que Mensagem – e a visão de Agostinho sobre ela; Fernando Pessoa – e a visão de Agostinho sobre ele – tiveram na minha música ligeira, nas minhas escolhas políticas e no meu pensamento íntimo?” Lagoa Henriques, reconhece-lhe o seu papel, junto dos seus pais, para os convencer da sua vocação de escultor. Mário Soares está-lhe grato: “Conheci-o com os meus dezasseis anos. Fui seu aluno e discípulo. O meu pai que muito o admirava, encarregou-o de me dar lições, três vezes por semana de cultura geral: ‘Desperte-me este rapaz para os problemas do espírito! Parece-me muito adormecido e desinteressado…’ pediu-lhe. Ele assim fez. Dava-me aulas, se assim lhes posso chamar, divertidíssimas e encantadoras. Inolvidáveis!”. Agostinho gostava de pessoas e dedicava-se a elas. Uma das maneiras de mudar o mundo era pelo efeito catalisador da mudança em cada pessoa, na liberdade, na criatividade, na inteligência e no amor, no ajudá-la a “ser aquilo que é”.

2. Uma chave para se perceber Agostinho da Silva é a dualidade entre pensamento e acção que caracterizou toda a sua vida desde jovem até morrer (3 de Abril 1994). Curiosamente sobre o valor mais elevado da vida humana – a liberdade – escreveu “A liberdade só existe quando todos os nossos actos concordam com todo o nosso pensamento” (Aproximações). Outra chave é que não houve um Agostinho, mas, propositadamente, vários, em diálogo entre si. Para simplificar aflorarei apenas dois, começando pelo mais desconhecido: o homem racional, de ciência, o político da ação prática baseada na ética individual. O desconhecimento parcial deste Agostinho da Silva, para mim essencial, deve-se por um lado a não existir suficiente investigação académica sobre uma fase importante da sua vida: a sua relação com António Sérgio e o grupo dos Seareiros, de que fez parte. Por outro, a não existir uma boa e exaustiva biografia de Agostinho. Existe uma boa biografia resumida (de Romana Valente), uma larga “biografia falhada” (de não recomendável leitura) e algumas teses de doutoramento. Há, porém, vários fragmentos de entrevistas e conversas que mostram que o racionalista António Sérgio, muito influenciou Agostinho, que ambos partilharam ideias, desde logo a importância das liberdades, seja do pensamento ou da livre aprendizagem na escola. Os ensaios de J.M. Freitas Branco (Agostinho da SilvaUm perfil filosófico) são dos poucos que iluminam este esquecido Agostinho, o racional e o político, num sentido macro, de pensar a governação e transformação da sociedade e micro, de resolver problemas concretos. Agostinho foi sempre um homem de pensamento e acção estratégica. A sua missão de pensador, professor, tutor e educador foi essencial numa época (1928-1944) em que grassava o analfabetismo em Portugal e em que mesmo as elites estavam progressivamente asfixiadas culturalmente pela dificuldade de circulação de ideias vindas de fora ou produzidas dentro. O projeto político de Agostinho foi logo discretamente escrito em 1938 no prefácio à obra de Almeida Garrett: “uma literatura para o povo, uma literatura forte, substancial, tonificante, tudo devia ser simples para o povo entender e para que povo gostasse; por intermédio dele seria possível levantar os portugueses ao nível necessário para que a revolução cultural e política se firmasse e pudesse avançar.” Este projeto cultural e político, tomou força, depois de ser impedido de exercer o ensino público pelo regime de Salazar (1935), através da escrita, edição e distribuição de cerca de 120 cadernos (entre 1937 e 1944) sobre as coisas mais variadas incluindo biografias de homens extraordinários. Vigiado e controlado pela polícia política, onde era acusado de anarquista e comunista, só poderia mesmo acabar na prisão (1943).

3. Seria interessar saber mais sobre as prováveis pressões de Gonçalves Cerejeira (cardeal entre 1929 e 1971) sobre Salazar para silenciar Agostinho depois dos seus verdadeiros “manifestos” intitulados “Cristianismo” e “Doutrina Cristã”. Este com apenas quatro parágrafos, onde se podem ler as seguintes heresias: “1…pode-se sem blasfémia, falar não de Deus, mas apenas do Universo, com Espírito e matéria formando um todo indissolúvel. A Doutrina de Deus, tal como a pôs Cristo, permite considerar todas as religiões como boas embora em graus diferentes, todos os homens como religiosos. 2. A visão mais alta que podemos ter de Deus, nós que somos apenas uma parte do Universo, é uma visão de Inteligência e de Amor; os pecados fundamentais que o homem pode cometer são as limitações da Inteligência ou do Amor…3. Deus não exige de nós nenhum culto, prestamos a nossa homenagem a Deus, entramos em contacto pleno com o Universo, quando desenvolvemos a nossa inteligência o nosso Amor: um laboratório, uma biblioteca, são templos de Deus; uma escola é um templo de Deus, uma oficina é um templo de Deus; um homem é um templo de Deus, e o mais belo de todos. Todos podemos ser sacerdotes, porque todos temos capacidades de inteligência e de Amor.” (negrito nosso). O que é certo é que Agostinho esteve preso 28 dias, seguiu-se um exílio interno imposto por Salazar, com residência fixa no Algarve, a que se seguiu o auto-exílio externo na América do Sul (1944-69). O projeto cultural e político de Agostinho continuou no Brasil como o testemunha não só as Universidades e Centros de Investigação que ajudou a criar como a citação de Caetano Veloso acima referida.

4. Há um outro Agostinho da Silva, espiritual, religioso numa perspetiva original e ecuménica (como se viu acima), e que a maioria dos racionalistas, republicanos e laicos designam de forma depreciativa como utópico, místico, messiânico e providencialista em relação a Portugal e aos Portugueses. Outros, mais ligados a uma ideia e projeto de lusofonia, mais religiosos ou mais místicos, usam os mesmos termos, mas de forma valorativa. Este outro Agostinho bebeu no Padre António Vieira, em Joachim de Fiore, e muito em Fernando Pessoa. É o Agostinho que pensa no muito longo prazo e fala no Culto do Espírito Santo e no quinto império. Há obviamente várias leituras deste Agostinho, com as quais discordo, mas reduzir Agostinho a esta dimensão parece-me simplista. E há outras leituras, mesmo só nesta dimensão, que merecem ser feitas. A utopia de Agostinho é um mundo, que obviamente não é para amanhã, onde haja a gratuidade da vida, onde haja ocupações, mas não trabalhos penosos. Em que as pessoas sejam livres. O símbolo da coroação da criança como imperador, no culto do Espírito Santo, pode ser lido como um objetivo de que cada adulto se venha a tornar como uma criança: na liberdade, na curiosidade, na inteligência (não coartada e limitada por uma educação castradora), na imaginação criativa e no amor. Aos racionalistas mais limitados, que se fossem contemporâneos de Da Vinci o considerariam certamente um utópico e um louco, aconselho a verem o que se passa hoje com a discussão e a prática do rendimento básico incondicional (RBI). Ter um rendimento, independentemente do trabalho, não se assemelha à ideia de gratuidade da vida? Não sendo apologista da medida, apenas realço que uma das utopias de Agostinho já está a deixar de o ser e a ser parcialmente implementada.

5. O paradoxo de Agostinho hoje, é que ele é simultaneamente amado e mal-tratado. Amado e querido por muitos dos que o leram, que viram as suas entrevistas televisivas, que privaram com ele e foram amigos dele. Mal-tratado, quer por parte de certa “inteligentzia nacional” (a que já estamos habituados), mas sobretudo pelas instituições públicas. A entrada sobre Agostinho da Silva no “Camões – Instituto da Cooperação e da Língua” é desequilibrada (há apenas um lado de Agostinho na mente do autor). Não tem as referência bibliográficas de Agostinho, nem as obras de referência sobre ele que têm vindo a ser editadas sobretudo pela Associação Agostinho da Silva (AAS). O espólio, sobretudo literário, de Agostinho está ainda em condições precárias de sustentabilidade física futura. Deveria ser assumido com a brevidade possível pela Biblioteca Nacional em condições de acessibilidade para estudiosos e interessados. Ainda há pouco tempo, o Museu de Marinha retirou, sem nenhuma informação para herdeiros ou a AAS, um pequeno mas nobre memorial a Agostinho com parte do seu espólio. Não existe, que eu saiba , nenhuma instituição pública (nacional, regional ou municipal) onde seja possível tomar contacto com a vastidão da vida e obra deste personagem maior da cultura portuguesa. Urge cuidar do seu património, em Portugal e no Brasil. Saibamos nós, seus familiares amigos ou admiradores, ajudar a corrigir estas injustiças.

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