A propósito dos presentes de Natal, discutiu-se sobre se à feminilidade ou masculinidade das crianças ajuda ou desajuda dar camiões ao menino e bonecas à menina. Se se deve vestir o filho de azul – ainda que turquesa – e a filha de cor-de-rosa, ou se esta é uma atitude ofensiva e provoca distúrbios psicológicos imperdoáveis.

Até há relativamente pouco tempo, em linguagem comum, as pessoas tinham sexo e as coisas tinham género. A palavra género era usada para categorizar gramaticalmente nomes, adjetivos, artigos e pronomes. Num artigo de Ana García-Mina Freire (La categoría «género»: historia de una necesidad), encontrei alguns dados históricos interessantes que uso para este meu escrito.

A meados do século passado, John Money, deparando-se com diversos casos de hermafroditismo, sentiu a necessidade de empregar um termo complementar a sexo. O médico encontrara vários rapazes que foram criados como raparigas devido a um síndrome feminizante testicular e diversas raparigas criadas como rapazes por sofrerem de síndrome andrenogenital. Devido a estas malformações congénitas dos órgãos sexuais e ao consequente desenvolvimento de uma identidade construída sobre uma biologia que a contradizia, a palavra sexo mostrava-se insuficiente para qualificar estas pessoas.

Money adotou, então, a palavra género. Sexo referir-se-ia aos componentes biológicos que determinam se uma pessoa é homem ou mulher, e género aludiria aos aspectos psicológicos e culturais que constituem as definições sociais das categorias mulher e homem.

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Do restrito âmbito das ciências biomédicas, o termo género deu um rapidíssimo salto para as ciências sociais, graças ao movimento feminista, e tornou-se uma das opções epistemológicas mais relevantes para referenciar a relação entre homens e mulheres. Na IV Conferência Mundial sobre as Mulheres (ONU), o género respeita “à forma como todas as sociedades do mundo determinam as funções, atitudes, valores e relações que concernem ao homem e à mulher, enquanto o sexo se refere aos aspectos biológicos que derivam das diferenças sexuais. Portanto, o sexo de uma pessoa é determinado pela natureza, mas o seu género é elaborado pela sociedade e tem claras repercussões políticas”.

O sexo é um dos critérios fundamentais na organização e compreensão da interação social. Cada sociedade desenvolve modelos normativos que prescreve a cada sexo. Daí que a construção da nossa identidade seja influenciada pelos modelos normativos da sociedade à qual pertencemos.

Mas, em princípio, reconhecemos que um homem é homem e uma mulher é mulher porque o seu corpo e o seu organismo os distinguem como tal. Todos sabemos que há casos de androginia e transexualidade. E os que não vivemos esta experiência na primeira pessoa, apenas podemos vislumbrar e intuir o possível sofrimento de quem a vive. Mas as exceções tratam-se como exceções. Deduzir daqui a geral – e até saudável – absoluta separação entre os conceitos de sexo e de género é absurdo. Porque, embora a Conferência sobre as Mulheres acima citada afirme que “o sexo é determinado pela natureza” e “o género é elaborado pela sociedade”, há já quem ideologicamente considere que até essa é uma interpretação conservadora. Porque, como sabemos, já é possível “escolher” ou “mudar de sexo”. Ora, se elaboramos o género e escolhemos sexo, tornámo-nos criadores de nós mesmos!

Ser mãe é diferente de ser pai. A mãe pode dar de mamar ao filho sem sair do quarto; o pai tem que ir comprar o leite ao supermercado. E esta é uma função social que decorre diretamente do sexo, não do género. Claro que daqui a defender que a mãe é mais apta para mudar as fraldas ao filho só porque é mulher e isso lhe é natural… (e, já agora, que o avental lhe fica a matar e que, como todos sabemos, ninguém faz a cama ou limpa o pó tão bem como as mulheres…) é um salto injusto do sexo para o género que funcionou durante demasiado tempo.

Neste sentido, o conceito de género veio ajudar, e muito, à evolução e ao desenvolvimento ético das sociedades. Faz-nos tomar consciência de que muitas das supostas características femininas ou masculinas não são, afinal, mais do que construções sociais. E dos inúmeros abusos que se lhes escondem por detrás. Quando, numa sociedade que sobrevaloriza o género masculino face ao género feminino, se atinge uma maior igualdade de direitos e oportunidades entre homens e mulheres, essa não é uma vitória apenas das mulheres, mas do ser humano. Mesmo que a devamos agradecer às mulheres.

Manifestar a diferença ao vestir o menino de azul e a menina de cor-de-rosa não é mau. A não ser que essa indumentária transporte consigo todo o imaginário de homem eficaz e eficiente, gestor e executivo de sucesso e, por outro lado, de mulher submissa, caseira para quem não faz sentido uma carreira profissional digna e intelectualmente estimulante.

Como em quase todas as áreas da vida, também aqui os extremos não ajudam. Nem tudo o que somos é socialmente construído ou exclusivamente biológico. Mas negar que a biologia é a base daquilo que somos é negar a realidade. O ser homem ou o ser mulher, só porque se nasceu assim, traz consigo diferentes características e funções sociais que ultrapassam a biologia. E isso é saudável! Até onde se pode e deve ultrapassar, eis a questão.

Sacerdote jesuíta