Até ontem quase ninguém te conhecia. Menino de três anos, tinhas a tua família e por certo os amigos de brincadeira que deixaste para trás em Kobani. Mas talvez nem isso. A tua cidade, no norte da Síria, foi palco de um dos mais ferozes combates entre os soldados do teu povo, os peshmerga, e os fanáticos do Estado Islâmico. Nesses dias, semanas, meses, tu, o teu irmão, a tua mãe devem ter estado escondidos, fugindo da morte, da bala perdida, do bombardeamento mal medido. Agora morreram as duas contigo, não longe de uma praia turca onde depois o teu corpo veio pousar, bem perto de lugares que são referências da civilização universal (terás por acaso passado por Bodrum, a antiga Halicarnassus, local de uma das sete maravilhas da Antiguidade, pois foi por aí, talvez à vista de uma ilha grega, que o barco em que seguias naufragou?).

Fazias parte de um povo sem pátria, o povo curdo, espalhado por quatro países diferentes – a tua Síria, mas também a Turquia, o Iraque e o Irão –, um povo dividido por fronteiras arbitrariamente desenhadas há quase um século, fronteiras que nasceram, como se diz, dos interesses de quem traçou linhas na areia sem conhecer as tuas montanhas e ainda menos quem lá vivia.

Os teus pais queriam para ti o melhor dos futuros. E tratavam-te com todo o carinho, tenho a certeza. Tanto carinho que até te vestiram com cuidado para a viagem fatal, te calçaram provavelmente os teus melhores sapatos, como já houve quem notasse. Sonhavam com o Canadá, mas o caminho seria longo, com muitas passagens perigosas. À sua maneira, eles foram heróis porque arriscaram – é que deixar a terra onde se nasceu e viveu para procurar um desconhecido que se acredita melhor é, como quase sempre foi, um acto de coragem.

Nós, aqui na Europa, fizemo-lo séculos a fio. Fugindo de guerras religiosas – sim, Aylan, nós, os cristãos, também tivemos guerras fraticidas tão devastadoras como as que agora opõem os muçulmanos sunitas e os xiitas, conflitos como a Guerra dos 30 anos, que deixaram o nosso continente devastado. Ou então fugindo da fome, como fizeram tantos irlandeses, polacos, alemães (sim, alemães), italianos, gregos, portugueses, espanhóis.

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Se tivesses podido crescer talvez um dia fosses a Nova Iorque e lá visitasses Elis Island, o local onde chegavam os candidatos à imigração, e verias que mesmo num país de imigrantes como não há outro, mesmo nos Estados Unidos, se desconfia sempre de quem vem de fora. Como no Canadá desconfiaram da tua família e não lhe deram o visto que os teus pais tinham pedido.

Hoje todos sabemos o teu nome porque te vimos já sem vida, as ondas ainda por perto, o polícia que recolheu, carinhosamente, o teu corpo, e te levou ao colo como se ainda respirasses. É por isso, porque te vimos, que talvez a tua morte não tenha sido em vão. Hoje o drama das centenas de milhares de refugiados que tentam chegar à Europa, correndo riscos imensos, é muito mais evidente para todos porque ganhou um rosto e uma imagem icónica: a tua.

Mas não penses, ninguém pense, que o drama dos refugiados se tornou mais fácil de resolver só porque é hoje mais visível. Na verdade, Aylan, leio os jornais, oiço os comentadores, escuto a opinião dos especialistas, e só fico com duas certezas.

A primeira, é que haverá sempre um lado errado do mundo para nascer e viver, e haverá sempre gente em movimento fugindo da morte ou procurando um futuro melhor. As guerras tornam sempre tudo mais evidente e mais cruel, e as guerras fratricidas que se sucedem na parte do mundo em que nasceste são as primeiras responsáveis pelo maior número de refugiados desde que nos preocupamos em contabilizá-los – só no teu país, a Síria, há quatro milhões de pessoas deslocadas. Mas esse número é apenas uma pequena fracção do total. Todos esses refugiados não vão desaparecer por milagre nem vão deixar de fazer tudo que estiver ao seu alcance para chegar à parte certa do mundo, aquela onde temos sabido viver em paz vai para 70 anos, aquela onde nos sentimos protegidos e onde sabemos que existem oportunidades. Aquela, também, que por estar a envelhecer necessita de muitos e muitos Aylans.

A segunda é que não há nenhuma fórmula fácil para conseguir o difícil equilíbrio entre o dever moral de acolher os teus e a necessidade política de permitir que, no processo das inevitáveis mudanças por que as nossas sociedades vão passar, estas sejam capazes de preservar o que fizeram a sua excepcionalidade. O que fizeram delas, apesar de todas as nossas lamúrias, o lugar certo do mundo para nascer.

Estamos todos mais atentos e mais preocupados e envolvidos, e é comovente como já tantas famílias, um pouco por toda a Europa, estão a abrir os seus lares a refugiados – a quem não vai ficando pelo caminho, como tu ficaste. Mas não temos políticas comuns, ainda menos interesses e preocupações coincidentes, apesar de os mais lúcidos de entre nós saberem que é do nosso interesse acolhermos mais migrantes. Mesmo com os actuais níveis de desemprego.

E sabes porquê? Não é apenas para termos quem nos pague as reformas daqui por anos, o que não deixa de ser verdade. É sobretudo porque quem chega com vontade de conquistar o futuro tem uma ambição e um gosto pelo risco que, nas nossas sociedades amolecidas, se começa a perder.

Mesmo assim, não gosto dos que falam de cátedra, como se fossem senhores de toda a moral, proclamando que tem de se encontrar uma solução imediata quando ninguém sabe, sequer, se existe uma solução justa, equilibrada, praticável e rápida. Mais ajuda aos países pobres? Mais abertura nas fronteiras? Mais combate aos traficantes? Mais muros? Menos arame farpado? Mais polícias nas praias, para evitar que famílias como a tua embarquem? Ou mais comboios a atravessar a Europa, sem limitações como as que vemos por estes dias?

Eu sei do que gosto e do que não gosto, mas não conheço a medida e a dose certa. É por isso que admiro a coragem de Angela Merkel e a atitude de tantos alemães. É também por isso que me repugna o comportamento do líder húngaro, Viktor Orbán, no limite do racismo descarado.

Sei que a Europa não pode escancarar as suas portas – e que também não as pode fechar. Que era bom que tivesse uma Elis Island, para controlar os fluxos de imigrantes e limitá-los ao justo ponto de equilíbrio, mas não tem nem terá, pois o Mediterrâneo não é o Atlântico.

É também por isso, por estarmos muito longe de encontrar os melhores caminhos e de todos como os teus, venham eles do longínquo Afeganistão, da esfacelada Etiópia ou da tua martirizada Kobani, terem pressa – e serem movidos pela força do desespero e pela miragem da esperança – que sei que a situação é explosiva.

Morreste perto daquela praia turca onde te encontraram, talvez num daqueles golfos onde, no meio das florestas, ainda encontramos às vezes os restos de aldeias que foram gregas durante mais de dois milénios e que deixaram de o ser quando os gregos foram de lá expulsos depois de perderem a guerra com os turcos, logo a seguir ao fim da I Guerra Mundial. Eles viveram o seu drama no seu tempo, hoje o drama é o das tuas gentes. Espero que isso tenha ficado bem claro para todos os que viram a imagem do teu pequeno corpo, atirado para a areia, um corpo tão pequeno, uma vida que podia ter tanto pela frente.

Aylan, mesmo tendo tu nascido do lado errado do mundo, e teres morrido antes sequer de o perceber, quero agradecer-te. Não porque agora vamos encontrar já a solução que procuramos, e que deve envolver os dois lados do Mediterrâneo – mas apenas porque depois de todas as primeiras páginas, de todas as partilhas nas redes sociais, o egoísmo e o medo que alimentam os populismos europeus estão desde agora confrontados com a iniludível realidade. Ninguém pode agora dizer que desconhece.

Por isso só desejo que não te esqueçam, não esqueçam a tua imagem, não esqueçam o que ela representa. Se queremos ser dignos de nos acharmos humanos, não podemos sobretudo olhar para o lado, tapar os olhos, fingir que não sabíamos.

Sabemos. O resto será conosco e com os nossos dirigentes. Talvez mesmo sobretudo o conosco. É ou não é?