Rui Rio não está contente com o “sistema político”. Gostaria, como todos nós, de ter “políticos bons” – e isto, vindo de um político, quer provavelmente dizer mais políticos como ele, a pensar como ele, a fazer o que ele faz. Vamos admitir que sim, que Portugal beneficiaria em ter mais políticos iguais ao Dr. Rio. A questão é saber se a maneira exacta de alcançar esse objectivo é mexer nas “regras”.
Não tendo tido acesso a toda a intervenção, mas apenas ao relato jornalístico dela, não sei se Rui Rio tem de “sistema político” uma concepção peculiar. Suponhamos que não, e que o seu vocabulário é o mesmo do povo. “Sistema político” compreende geralmente a relação entre os órgãos de soberania, o método eleitoral ou ainda o equilíbrio entre o governo e os órgãos do poder local. Nunca é fácil definir um “sistema político”, como se prova pela longa querela interpretativa sobre os poderes da presidência da república. Mas como recomendava o velho Marx, há muito que políticos e politólogos desistiram de perceber o mundo, e passaram a tentar mudá-lo. Não há semana em que um político não venha, algures, denunciar o “sistema político”, e quase todos os semestres a politologia académica desova mais uma alternativa. A grande ideia é, sempre, “aproximar” o sistema político da sociedade.
Tenho duas dúvidas. A primeira diz respeito ao efeito dessa mudança. O Dr. Rio acredita que os políticos são “o produto das regras”. Mudando as regras teríamos então mais Drs. Rios (isto, claro, ignorando a hipótese de o Dr. Rio ser o produto das actuais regras)? Já todos os sistemas foram experimentados. E a única conclusão possível é que há políticos bons e maus em todos os sistemas, sejam presidenciais ou parlamentares, centralizados ou descentralizados, com métodos eleitorais proporcionais ou maioritários — todos esses sistemas produziram igualmente patriotas e velhacos. O facto é que as virtudes de uma classe política ou a participação dos cidadãos não são simplesmente uma questão técnica, para ser resolvida por engenharia institucional. Os políticos não passam a ser bons simplesmente porque, por exemplo, um dia deixam de ser eleitos em grandes círculos plurinominais para passarem a ser eleitos em círculos uninominais. A experiência da Itália na década de 1990 devia ter ensinado alguma coisa. A Itália mudou então, não só de sistema político, mas até de partidos. O “produto”, para usar a terminologia do Dr. Rio, foi Berlusconi.
A segunda dúvida diz respeito aos riscos de mexer nas regras do jogo. Quando a equipa não marca golos, parece sempre que se a baliza fosse maior tudo seria mais fácil. Em tempo de austeridade, como aquele em que caímos em 2011, não é fácil à classe política resistir a diversões. Sem os recursos com que, no passado, conquistavam admirações e boas vontades, e sem ousadia e imaginação para tocarem no “modelo social”, que podem fazer? Porque não discutir reformas do próprio “sistema político”, de modo a criar a impressão de que, sempre atentos e activos, continuam em sintonia com a sociedade? Se não podem fazer rotundas, que tal pôr as pessoas a votar de uma maneira diferente ou acrescentar as prerrogativas do presidente da república? Ora, o Dr. Rio vai desculpar-me, mas esta fuga para a frente pode ter o efeito, não de dar melhores regras ao jogo, mas de acabar por lhe tirar quaisquer regras.
Uma das grandes realizações do actual regime foi o consenso à volta das regras do sistema político, como no caso das eleições. Pela primeira vez, tivemos eleições que, além de livres, ninguém contestou como fraudulentas. Mas que sucederá se amanhã alguns partidos modificarem a legislação eleitoral — e isso for visto pelos outros como batota? Aconteceu muitas vezes na história de Portugal, nomeadamente em 1901, quando o governo chefiado por Hintze Ribeiro alterou a lei eleitoral, com vista a excluir João Franco do Parlamento. Chamou-se a essa célebre lei a “ignóbil porcaria”. Foi numa época em que quase nenhum governo ia a votos sem antes “reformar” o sistema político. Nada contribuiu tanto para o descrédito das instituições representativas como a manipulação das regras por quem estava no poder, com vista a lá permanecer. E hoje? Com os políticos que temos (e não há outros), “novas regras” não produziriam “políticos bons”, como o Dr. Rio pensa, mas provavelmente apenas políticos tentados a mudar outra vez as regras. É de uma “ignóbil porcaria” que o país mais precisa neste momento?