Tudo o que diz respeito à França, de cuja herança cultural as elites portuguesas não conseguem libertar-se, seja para a repetir ou a contradizer, está em geral inquinado por mitificações ideológicas que recuam, frequentemente, à Revolução Francesa, como se os eleitores franceses recapitulassem a história dada na escola primária de cada vez que há eleições…Não recapitulam!
Em contrapartida, a maioria dos comentadores ignora, a propósito da França ou qualquer outro país, que os resultados eleitorais dependem muito mais das especificidades dos sistemas eleitorais do que de tradições culturais ou de reacções grupais. Foi isso que aconteceu com a eleição de Trump nos USA, a qual reflecte mais o arcaísmo do sistema eleitoral norte-americano do que outra coisa qualquer. O caso da França é idêntico, como aliás o português, cujo factor eleitoral mais explicativo é há bastante tempo o abstencionismo…
Dito isto, este domingo é o primeiro acto do drama que irá a decorrer em França até às próximas eleições legislativas de Junho próximo. Este domingo apenas foram eleitos os dois candidatos mais votados para a eleição presidencial de 7 de Maio. Daqui a quinze dias será, pois, dado o segundo passo do processo, o qual deveria, na república semi-presidencialista francesa criada pelo General De Gaulle em 1958 em plena guerra de independência da Argélia, resolver o problema político por uns bons anos, como sucedeu com vários presidentes, até falhar com Sarkozy se não antes. Com Hollande, o sistema entrou em falência, tanto na frente doméstica como na europeia, de tal modo que ele nem sequer se recandidatou.
Desta vez porém, fosse qual fosse o vencedor, a concordância entre a maioria presidencial e a maioria parlamentar, objectivo implícito na constituição francesa, exigirá mais dois actos eleitorais, a saber, a primeira e a segunda-volta das eleições legislativas daqui a menos de dois meses. Ora, se é verdade que as excelentes sondagens feitas para as presidenciais acertaram em cheio no resultado de hoje, nem por isso deixam de lançar as maiores dúvidas sobre o futuro. As últimas sondagens colocaram à frente o candidato menos conotado com o anquilosado sistema partidário francês e, simultaneamente, mais próximo daquilo que a UE pede a alguém com a responsabilidade de presidir ao segundo maior país da União. Emmanuel Macron, por pouco tempo ministro da economia de François Hollande, será pois o eleito daqui a 15 dias.
Em contrapartida, essas mesmas sondagens levam-nos a duvidar que venha a haver, na prática, concordância entre a maioria presidencial e um parlamento que, apesar da manipulação política que a segunda-volta representa, dificilmente terá uma composição partidária capaz de assegurar à França as reformas que esta necessita de fazer, tanto por motivos domésticos como europeus, e que têm falhado nas últimas presidências. É certo que isto tem que ver com o estatismo dominante nas sociedades de marca católica mas é inútil relembrar pela enésima vez que Tocqueville já se apercebera disso há 200 anos, pois não é esse sequer o factor obscurantista e xenófobo que explica o Brexit, tão parecido por outro lado com o isolacionismo medroso de uma parte da Europa…
Foi, sim, o sistema político adoptado há quase 60 anos em condições políticas e sociais totalmente distintas das actuais que tornou estas fracturas iedeológicas aparentemente insuperáveis em França, com os seus actuais quatro ou cinco blocos de dimensões comparáveis. É certo que a segunda-volta das legislativas – último acto deste drama – condicionará artificialmente a representação parlamentar, mas esta estará, segundo toda a probabilidade, demasiado dividida para formar uma maioria susceptível não só de apoiar o novo presidente como as necessárias reformas, entre as quais, na minha opinião, uma reforma constitucional de fundo.
Com o resultado desta noite ainda faltam três actos para a peça terminar. O próximo é, como disse, o mais fácil de prever: a ratificação da vitória de Macron. Em contrapartida, estamos muito longe desse acordo pelo qual a UE, bem como o resto do mundo, aguardam há muito. A solução ideal, se para tanto houvesse os votos e os eleitos necessários na votação final de Junho, seria uma coligação – ou pelo menos convergência quanto ao essencial – por parte dos votantes do presidente-eleito e do candidato «republicano», François Fillon, com a exclusão dos eleitos de Le Pen e do seu duplo de esquerda, Mélenchon. Seria em princípio de contar, também, com o que restar do partido socialista. Este foi virtualmente destruído pelo candidato dessa invenção sem democraticidade que são as chamadas «primárias», Hamon, na sequência dos malabarismos incoerentes do presidente cessante; os socialistas que sobreviverem dividir-se-ão entre os que apoiarão Macron e os que se renderão ao populismo de esquerda tão anti-europeu quanto o de direita… Afinal de contas, os resultados da eleição presidencial foram bem melhores para a Europa do que muitos desejavam, tanto à direita como à esquerda! Restam as eleições legislativas…