1. Dilma Rousseff foi afastada da Presidência na quarta-feira passada, pelo Senado brasileiro, mas numa votação subsequente não lhe foi sonegada a possibilidade de assumir cargos públicos no futuro, dado não terem sido alcançados os dois terços necessários para a liquidar politicamente por oito anos (apenas 42 dos 81 deputados votaram a favor). Aqueles que querem que Dilma morra politicamente, em definitivo, já se apressaram a apresentar junto do Supremo Tribunal Federal (STF) uma apreciação de inconstitucionalidade desta separação de votações, primeiro o impeachment depois a ineligibilidade para cargos públicos. É o caso, entre outros, do advogado Tiago Cedraz, investigado por indícios de corrupção associados ao caso Petrobras que, talvez por esta razão, já admite deixar de subscrever este pedido ao STF.

Dilma caiu essencialmente por duas razões: o mau desempenho económico e orçamental do Brasil, com recessão, défice e dívida pública crescente (de que derivou a despesa e a dívida escondidas) e a tentativa de combate à corrupção. Os visados por esta, obviamente movimentaram-se para anulá-la politicamente. Há ainda muita neblina em torno deste processo. No essencial, argumentarei neste artigo que existem problemas no desenho institucional brasileiro de não separação apropriada de poderes; que o que é considerado crime de responsabilidade fiscal no Brasil é muito mais vasto do que em Portugal; que Dilma incorreu num “crime” que nada tem a ver com corrupção e que um Estado democrático de direito não depende apenas do respeito pelos formalismos institucionais da Constituição, mas também do comportamento ético dos seus representantes políticos.

2. Na Constituição dos EUA, que tem a vantagem de ser curta, concisa, e bem pensada pelos founding fathers, quem tem a competência de fazer um impeachment pela prática de “traição, corrupção ou graves crimes” é o Supremo Tribunal. Em Portugal, quem tem a iniciativa, a capacidade de julgar o mais alto magistrado da nação (mesmo não sendo o chefe do executivo tem legitimidade democrática direta) é o Supremo Tribunal de Justiça tomando a iniciativa e a deliberação, sendo esta remetida ao Tribunal Constitucional que apenas a valida. Em ambos os casos é o Supremo Tribunal a julgar o Presidente, e assim deve ser. Porém, no caso do Brasil, os crimes comuns são julgados pelo Supremo Tribunal Federal, mas os crimes de responsabilidade fiscal (de que Dilma foi condenada) são julgados pelo Senado sob iniciativa da Câmara de Deputados. Pôr o legislativo a julgar o(a) Presidente leva inevitavelmente a um julgamento que, para além de jurídico, é essencialmente político, como o foi, com o espetáculo degradante a que pudemos assistir em direto pelas televisões.

Para além da deficiente separação de poderes ínsita na Constituição brasileira há a questão do âmbito dos crimes imputáveis a um(a) Presidente. Nos EUA tratava-se apenas de crimes graves, a par da traição e corrupção, mas no Brasil desde a Constituição de 1891 (artº 54º) que o crime de responsabilidade é tipificado e claramente alargado à “probidade da administração” e às “leis orçamentárias votadas em congresso”.

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3. Em particular o crime de responsabilidade fiscal foi clarificado numa lei de 1950 e revisto posteriormente (pela última vez em 2000). Assim, o âmbito do impeachment baseado neste crime pode agora aplicar-se a coisas tão prosaicas como “não apresentar ao Congresso Nacional a proposta do orçamento da República dentro dos primeiros dois meses de cada sessão legislativa” ou “exceder ou transportar, sem autorização legal, as verbas do orçamento” até coisas mais substantivas como as previstas na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF artº 32º) que estabelece que é “proibida a operação de crédito entre uma instituição financeira estatal e o ente da Federação que a controle, na qualidade de beneficiário do empréstimo”. Foi isto que Dilma efetivamente fez, de forma bem mais substantiva que Fernando Henrique Cardoso e Lula da Silva, pois utilizou instituições financeiras da União, como a Caixa Econômica Federal, para fazer pagamentos de prestações sociais.

Como refere o Tribunal de Contas da União na sua análise “A Caixa concedeu adiantamentos à União para cobertura de despesas no âmbito dos programas Bolsa Família, Seguro-Desemprego e Abono Salarial. Os adiantamentos concedidos pelo FGTS destinaram-se às despesas do Programa Minha Casa Minha Vida.” Sendo esses adiantamentos realizados com recursos próprios da Caixa, e não tendo sido pagos pelo Tesouro Nacional (Ministério da Fazenda) num prazo curto, trata-se efetivamente de uma concessão de crédito em violação da LRF artº 32. Não sendo registada nas contas do governo federal, subestimou-se quer a despesa pública, quer o défice e a dívida públicas em ano pré-eleitoral (2014).

Espero ter tornado claro que, à luz do ordenamento jurídico brasileiro, houve “pedalada fiscal” e outras formas de maquilhagem das contas públicas. Mas também que isto nada tem a ver com corrupção. Onde parecem mesmo existir indícios é na Câmara de Deputados e no Senado onde um significativo número de deputados e senadores está a ser investigado por corrupção no âmbito da operação Lava Jato ou já foi condenado por crimes na justiça. Não por acaso, a maioria destes senadores que estão a ser investigados votaram a favor do impeachment. O próprio Michel Temer, ainda como Presidente interino, deu aval à retirada do carácter de urgência a um pacote de medidas anti-corrupção de Dilma Rousseff. Para que o Brasil seja um saudável Estado democrático de direito não basta que funcionem as instituições e se respeite a Constituição, é necessário combater a corrupção.

4. A semelhança entre Portugal e o Brasil prende-se com o facto de também em Portugal no passado se terem “maquilhado” as contas públicas. No entanto, cá também temos regras, mas são relativamente inócuas. Quando as sanções deveriam existir, porque as regras fazem sentido, elas são inexistentes beneficiando mesmo o infrator. Também temos crimes de responsabilidade de titulares de cargos politicos e altos cargos públicos, nomeadamente por violação de normas de execução orçamental (ver artº 14º da Lei 34/87), mas de âmbito muitíssimo mais limitado que no Brasil. Não admira, pois, que esconder a dívida da Madeira, como aconteceu com Alberto João Jardim, e que daria perda de mandato com “crime de responsabilidade fiscal”, não tenha tido consequências para o próprio, mas apenas se tenha traduzido num programa de resgate à região autónoma.

“Maquilhar” as contas públicas das mais variadas formas tem sido prática de vários governos (não é a crescente dívida a fornecedores uma forma de crédito?). A incompetência manifesta na celebração de contratos swap por alguns gestores públicos, ou parcerias público-privadas em que o interesse público não foi salvaguardado, tudo isto poderia constituir “crime de responsabilidade fiscal”. Se Portugal tivesse o ordenamento jurídico brasileiro vários titulares de cargos políticos teriam sido demitidos.