São de dois tipos os argumentos que podem ser invocados contra a legalização da eutanásia e do suicídio assistido. Um primeiro diz respeito aos princípios civilizacionais que estão em jogo: o valor e a indisponibilidade da vida humana (a protecção da vida vem antes da protecção da autonomia, porque a autonomia pressupõe a vida) e a igual dignidade da vida humana em todas as suas fases (esta dignidade é uma qualidade intrínseca, não se perde em situações de doença e sofrimento). Um segundo depende de juízos prudenciais, relativos à previsibilidade dos efeitos que essa legalização possa acarretar, para além da ofensa a tais princípios, e, designadamente, da impossibilidade prática de conter legalmente a eutanásia no âmbito de situações verdadeiramente excecionais. É conhecida a imagem da rampa deslizante (slippery slope), muitas vezes evocada a este respeito. Depois de se iniciar uma descida vertiginosa, não se consegue evitar a queda no abismo, quando se introduz uma brecha num edifício, não se consegue evitar a sua derrocada.

A experiência dos Estados que legalizaram a eutanásia revela que não é possível restringir essa legalização a situações raras e excecionais; o seu campo de aplicação passa gradualmente da doença terminal à doença crónica e à deficiência, da doença física incurável à doença psíquica dificilmente curável, da eutanásia consentida pela própria vítima à eutanásia consentida por familiares de recém-nascidos, crianças e adultos com deficiência ou em estado de inconsciência.

Dois são, assim, os trajetos através dos quais se vai alargando o alcance da legalização da eutanásia e do suicídio assistido. Trata-se de um percurso lógico e, por isso, previsível. Por um lado, quando se invoca a autonomia para justificar essa legalização, é lógico que estas práticas não se limitem a situações de doença em fase terminal. Muitos dos projetos de legalização começam por restringir a legalidade dessas práticas a tais situações. Mas a prática (quando não a própria legislação) acaba por estender a impunidade da eutanásia em situações de doenças incuráveis, mesmo que não terminais. E do sofrimento físico passa-se ao sofrimento psíquico, ou até ao simples “cansaço de viver” (como se verificou, em 1993, no caso do senador holandês Bloomsma, afetado pelo divórcio e a morte dos dois filhos). Levando às últimas consequências o respeito pela autonomia, chegaríamos à legalização, em quaisquer situações, do homicídio a pedido e do auxílio ao suicídio.

Não enveredando por este caminho, haverá que reconhecer que as situações em que se justifica a eutanásia e o suicídio assistido são aquelas em que (pela doença, sofrimento ou dependência) se afirma que a vida «perde dignidade». Então, porque nessas situações a vida «perde dignidade», deixa de ser “digna de ser vivida”, pode prescindir-se de um pedido expresso no caso de pessoas incapazes de o formular: recém-nascidos, crianças, dementes. E invoca-se o princípio da igualdade: porque haverão de ficar privadas do “benefício” da eutanásia estas pessoas? Nesta linha, a Holanda e a Bélgica legalizaram a eutanásia de crianças. E a prática judicial da Holanda (ainda que sem cobertura legal) admite a impunidade da eutanásia não voluntária (sem pedido expresso do visado).

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Por outro lado, o preenchimento de conceitos indeterminados como o de “sofrimento intolerável” pode dar lugar a abusos. Quando é que um sofrimento é, objetivamente, “intolerável”? Há quem sustente que deve prevalecer um critério subjetivo (e, assim, qualquer sofrimento pode ser “intolerável”, se a pessoa em causa o considerar como tal). Não poderão os cuidados paliativos eliminar a “intolerabilidade” de qualquer sofrimento?

O controlo efetivo da verificação das condições de legalidade da eutanásia ou do suicídio assistido, sendo que estas práticas decorrem necessariamente no âmbito da privacidade da relação médico-doente, também se reveste das maiores dificuldades, e há, até, quem afirme que é impossível. Certo é que na Bélgica e na Holanda nunca ocorreu alguma acusação judicial pela prática da eutanásia fora das condições legais, apesar das muitas situações (no mínimo) controversas conhecidas.

A propósito do décimo aniversário da legalização na Bélgica (e a título de balanço), foi publicado um manifesto, Dez anos de eutanásia, um feliz aniversário?, subscrito por médicos de diferentes especialidades, mas também juristas, filósofos e teólogos de várias religiões.

Aí se afirma que a legalização da eutanásia não envolve apenas o respeito pela liberdade individual. Representa o aval da comunidade e do corpo médico à opção em causa. A quebra de um interdito fundamental (“não matar”) que estrutura, como sólido alicerce, a vida comunitária, não pode deixar de afetar a confiança no seio das famílias, entre gerações e na comunidade em geral; e, particularmente, a confiança no corpo médico. Fragiliza, por outro lado, os mais vulneráveis, sujeitos a pressões, em grande medida inconscientes, que os levam a sentir-se obrigados a pedir a eutanásia para não serem um peso para a família e para a sociedade. O manifesto denuncia a efetiva verificação destas consequências.

E confirma os receios de que a quebra desse interdito estruturante nunca poderá ter efeitos limitados e contidos. Salienta, a este respeito, o facto de ser a própria comissão destinada a controlar a aplicação da lei a reconhecer que não tem meios para esse controlo (sendo que em dez anos nenhuma infração foi detetada). Não é de esperar que os médicos se autodenunciem quando ultrapassem esses limites. A noção de “sofrimento insuportável” a que a lei recorre é subjetiva e tem permitido estender o seu campo de aplicação a sofrimentos psíquicos que não se enquadram na noção de “patologia grave e incurável” a que a legalização supostamente se restringiria.

Suscitaram compreensível clamor, vários casos de prática da eutanásia a coberto da lei belga em vigor: o de uma mulher, de 44 anos, que sofria de anorexia nervosa e o de uma outra, de 64 anos, que sofria de depressão crónica (doenças que podem ser tratadas); o dos irmãos gémeos Verbessen, surdos de nascença em vias de ficar cegos («já não tinham por que viver» – afirmou o médico que provocou a sua morte); ou a do professor de medicina De Duve, com 95 anos, que não era doente terminal, nem sofria de “dor insuportável”; a de Nathan, transsexual, depois do insucesso de uma cirurgia de “mudança” do sexo anatómico; o do escritor Hugo Claus, numa fase inicial da demência (não em fase terminal, nem em sofrimento, pois); mais recentemente, o de Laura, de 24 anos, e o do médico Milan de Moer, que também sofriam de depressão. O caso, muito recente, de Tina Nys, a quem havia sido diagnosticado autismo, suscitou uma queixa da parte dos irmãos, tal como o professor universitário Tom Mortier já havia apresentado, em 2012, queixa junto do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem pela eutanásia da sua mãe, que sofria de depressão.

Um grupo de psiquiatras e psicólogos belgas publicou uma declaração que alerta para a trivialização do recurso à eutanásia em caso de sofrimento psíquico, uma noção que acaba por ser subjetiva e que não pode considerar-se objetivamente insuperável.

Uma mudança legislativa veio a estender a legalização da eutanásia a casos de crianças (cuja maturidade para decidir seja atestada por psicólogos, sendo certo que uma declaração subscrita por 160 médicos pediatras considera que tal não é possível, numa situação como esta) e de dementes (que tenham manifestado a sua vontade anteriormente, no exercício das suas faculdades). Num e noutro caso, o respeito pela “sacrossanta” liberdade de quem pede a eutanásia é posto em segundo plano. Dá-se relevo à manifestação de vontade de uma criança, num âmbito de absoluta irreversibilidade, quando não é dado esse relevo, por incapacidade, em âmbitos de muito menor importância. Dá-se relevo, no caso de pessoas dementes, a uma manifestação de vontade não atual, quando é sabido que muitas vezes a vontade de uma pessoa se altera quando a doença progride e o apego à vida vem ao de cima (ou seja: nunca pode haver a certeza de que fosse essa a vontade real e atual da pessoa demente).

Também no caso de pessoas dementes, pode facilmente suceder que a motivação do pedido não seja o previsível sofrimento dessas pessoas (nestes casos, o sofrimento atingirá mais os familiares do que o próprio doente, por este não se aperceber da sua doença), mas antes a vontade de não fazer recair sobre esses familiares um fardo difícil de suportar (fardo que é inegável). Pode, assim abrir-se a porta a uma morte provocada já não pela compaixão para com o doente, mas para que as pessoas ao redor deste se livrem de um fardo difícil de suportar.

As derivas da situação da eutanásia na Bélgica foram também denunciadas por Étienne Montero, professor da Faculdade de Direito de Namur, no livro Rendez-vous avec la mort: Dix ans d´euthanasie légale en Belgique (Anthémis, 20013). Aí se dá conta, designadamente, da defesa do recurso à eutanásia como forma de diminuir os custos dos cuidados paliativos.

A prática da eutanásia sem pedido explícito na Bélgica foi denunciada pelo professor de Direito Raphael Cohen- Almagor. A Sociedade Belga de Cuidados Intensivos publicou uma declaração que defende essa prática em determinadas condições.

As mesmas consequências que se verificaram na Bélgica (a dificuldade de controlo e a extensão da eutanásia a situações de doentes não terminais ou incapazes de manifestar a sua vontade) já se haviam notado na mais antiga experiência holandesa. Um relatório de uma comissão independente nomeada pelo governo (o chamado relatório Remmelink) avaliou, em 1990, tal experiência, a partir de inquéritos anónimos dirigidos a médicos. Dele resultou a verificação de um grande número de casos de eutanásia não voluntária, sendo que a maioria das situações não era objeto da notificação legalmente obrigatória. Esse relatório e essa experiência serviram de base ao livro de Herbert Hendin Seduced by Death (W. W. Norton & Com. Inc, 1997), e foram invocados na sentença do Supremo Tribunal americano que, em 1997, no caso Washington v. Glucksberg, rejeitou o pedido de declaração de inconstitucionalidade de normas que puniam o suicídio assistido.

A ocorrência de eutanásia sem pedido expresso continua a verificar-se (na ordem das várias centenas por ano), de acordo com vários estudos, como um da revista Lancet (relativo ao período entre 2003 e 2010) e outro da Ordem dos Médicos do Canadá. Apesar de a lei não a prever, nunca essa ocorrência, que é conhecida, deu origem a qualquer acusação judicial.

Também na Holanda, prática judicial (primeiro) e a própria Lei (depois) vieram a permitir a eutanásia de crianças e de pessoas inconscientes que tenham formulado tal pedido anteriormente.

Foram muito comentados os casos da eutanásia de Guusje de Koning, na fase inicial da doença de Alzheimer, e o mais recente caso de Simone de Moor, deprimida depois do falecimento da morte da filha, que nunca tinha pensado na eutanásia antes desse falecimento.

Theo Boer, professor da Universidade de Utrech, entre os proponentes iniciais da legalização da eutanásia, veio a mudar de posição, perante o crescimento exponencial da prática e a sua extensão a todos os tipos de sofrimento: psiquiátrico, existencial e social.

Uma iniciativa de cidadãos (Of One´s Own Free Will) defende a extensão da legalização do auxílio ao suicídio sem restrições a todas as pessoas que o requeiram e que tenham mais de setenta anos (proposta análoga é sustentada no Reino Unido pela Society for Old Age Rational Suicide). A proposta de lei daí surgida não obteve aprovação parlamentar, mas encontrou algum eco nos critérios acolhidos pela Ordem dos Médicos holandeses para a identificação dos casos de prática legal da eutanásia e auxílio ao suicídio.

As linhas-guia por esta adotadas em 2011 alargam o conceito de “sofrimento” (como pressuposto dessa prática) à perda de autonomia, ao cansaço e à perda de forma física, e consideram, até, fatores não médicos, como a pobreza e a solidão.

O jornalista Gerbert van Loenen, quando uma pessoa amiga passou a sofrer de grave deficiência devido a um acidente, e perante comentários generalizados que ouviu, segundo os quais seria melhor que essa pessoa tivesse morrido (estaria «better off dead»), quis indagar o motivo por que esta mentalidade se vai generalizando na Holanda. Encontrou a raiz desse fenómeno na legalização da eutanásia. No livro Do you call this a life?(trad. inglesa, Ross Latner, 2015) dá conta, entre outros fenómenos que já referimos, da prática da eutanásia e da abstenção de tratamentos necessários à salvaguarda da vida, em relação a crianças recém-nascidas com deficiência grave (com o pretexto do sofrimento que supostamente hão de experimentar no futuro).

Há algum tempo, uma notícia da Deutshe Welle aludia à afluência de idosos holandeses a um lar alemão situado em Bocholt, perto da fronteira, devido ao receio da eutanásia involuntária, receio confirmado num estudo da Universidade de Göttingen.

A propósito dos perigos da rampa deslizante, muitas vezes se evoca a experiência da Alemanha nacional-socialista, onde a eutanásia também começou por ter uma justificação pretensamente humanitária, e também se baseou na noção de “vidas sem valor” ou “indignas de ser vividas”. Por causa dessa experiência, no pós-guerra perderam o vigor que tinham tido anteriormente os movimentos em prol da legalização da eutanásia. Hoje, parece estar mais esquecida essa experiência. Mas não completamente, como se vê pela tentativa de substituir a expressão “eutanásia” pelo enganador eufemismo “morte assistida”. É claro que os propósitos que movem os atuais defensores da eutanásia são muito diferentes dos que moviam os dirigentes nazis, que, além do mais, eram completamente alheios ao valor da autonomia individual hoje prevalente. Mas não é necessário evocar essa experiência para demonstrar que a rampa deslizante não é um fantasma de alarmistas: é uma realidade comprovável pelas experiências dos países que legalizaram a eutanásia nas últimas duas décadas, uma realidade que segue um percurso lógico e previsível.

Presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz