Em França está em discussão pública a eventual legalização da eutanásia e do suicídio assistido e no sentido dessa legalização se pronunciou uma chamada Convention Citoyenne (Convenção Cidadã), supostamente representativa das várias componentes da sociedade civil.

Entre nós é sabido que a ultima versão do projeto aprovado pela Assembleia da República eliminou quaisquer dúvidas a respeito do alargamento dessa legalização a situações de pessoas com deficiência ou que padeçam de doença incurável grave, muito para além das de doença terminal.

Perante esta hipótese de legalização da eutanásia e do suicídio assistido nestes termos, em França, uma iniciativa de várias pessoas padecendo de vários tipos de deficiência ou doença incurável grave (apadrinhados por Philippe Pozzo di Borgo, cujo testemunho de redescoberta do valor da vida, apesar dos seus limites físicos, foi retratado no célebre filme Amigos Improváveis) lançou um manifesto de oposição a tal proposta designado Soulager, mais pas tuer (aliviar, mas não matar) que pode ser consultado em www.soulagermaispastuer.org. Nesse manifesto se afirma:

«Alguns consideram-nos absolutamente inúteis, ou mesmo dispendiosos, ou até indignos de viver. Eles aplaudem aqueles que, em desespero, se vão suicidar ao estrangeiro, como se nós devêssemos fazer o mesmo. Isso é o que mais nos fere.

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Devemos desistir da coragem de viver? Devem os nossos cuidadores e entes queridos abandonar os seus esforços, aqueles que nos ajudam a aliviar e superar as nossas dificuldades? Todos nós precisamos de um olhar que nos tenha em consideração e nos faça viver, não de reflexões sobre um suposto “direito de escolher a sua morte”.

Quer estejamos bem ou doentes, estamos todos cem por cento vivos. O que podemos dizer aos elos mais fracos desta cadeia humana que constitui a nossa sociedade? Não é precisamente a sua fragilidade que nos convida a protegê-los? Porque é o elo mais frágil de uma corrente que determina sua força.

Os “mais frágeis” precisam particularmente de solidariedade, mas – sejamos claros – também os “capazes”! Num mundo onde temos que contar uns com os outros para nos alimentarmos, nos vestirmos, nos aquecermos, nos tratarmos, vivermos em segurança, quem pode considerar-se completamente “autónomo”? Todos nós precisamos dos outros para viver: a presença dos mais frágeis, no seio da sociedade, recorda-o a todos. Essa presença também pode ajudar aqueles que um dia deixarão o mundo dos “capazes” a conservar o gosto de viver até o fim.

Com a força da nossa fragilidade, pedimos-vos para o bem da nossa sociedade:

Não conduzam ninguém ao desespero, à autoexclusão, ao suicídio ou à eutanásia.

Proteja-nos de uma pretensa liberdade de morrer que incitaria alguns a deixar de viver.

Reafirmem o direito de todos a serem ajudados a viver, e nunca a morrer.

Então a sociedade que estamos a construir juntos será mais humana.»

«Ajudem-nos a viver, não a morrer» – é o que afirmam estas pessoas, preocupadas com a mensagem cultural que acarreta a legalização da eutanásia e do suicídio assistido, com a transformação de mentalidades que essa legalização gera em toda a sociedade, com um alcance que vai para além das pessoas que os possam pedir.

É o que afirma Caroline Brandicourt, porta-vos desta iniciativa Soulager, mais pas tuer:

«Sou portadora de deficiência, tenho uma doença neurodegenerativa, vivo de um modo diferente, mas vivo plenamente. Pensar que o suicídio assistido de uma pessoa terá um impacto a ela circunscrito é uma ilusão; é como atirar uma pedra num lago que cria uma onda que vai alastrando… Terá impacto sobre mim. Terá impacto sobre o trabalho dos cuidadores, sobre a sua própria razão de ser. Pessoas em grande sofrimento psíquico ouvirão dizer: é melhor morrer do que sofrer… Onde encontrarão elas, então, forças para não desistir de viver?»

Na verdade, qualquer lei, mas em especial uma lei como esta, que quebra um interdito fundamental, traz consigo uma mensagem cultural. E essa mensagem é, quanto a este aspeto, a de que a morte provocada pode ser uma solução para quem padeça de uma deficiência ou de uma doença incurável grave, a morte provocada pode ser um bem para essas pessoas; para elas será melhor morrer do que viver nas difíceis condições em que vivem.

Então, o alcance dessa mensagem atinge todos, os sãos e os doentes e, entre estes últimos, os que querem desistir de viver e os que não querem.

Assim, com o ambiente cultural que assim se vai transformando (gradualmente, mas não tão lentamente como isso, como o revela a experiência dos países pioneiros na legalização da eutanásia e do suicídio assistido), vai crescendo o perigo de encarar as pessoas deficientes ou com doenças incuráveis graves como um fardo difícil de suportar (um fardo que a sua morte provocada poderá aliviar). Os esforços e canseiras, muitas vezes heroicos, de familiares e cuidadores dessas pessoas deixarão de ser encorajados e passarão a ser vistos como inúteis, porque evitáveis. As próprias pessoas que padecem de deficiências e doenças incuráveis graves também deixarão de ser encorajadas no seu esforço, também ele muitas vezes heroico, de superar as dificuldades próprias da sua situação, quando a mensagem que, através da lei e da prática dos serviços de saúde, a todos chega é a de que para elas a morte provocada é uma solução e um bem. Há o grave perigo de elas próprias considerarem que são um fardo que pesa sobre a sociedade em geral, um fardo que a sua morte provocada pode evitar (isso mesmo se revelam, de forma recorrente, inquéritos sobre a motivação que leva as pessoas a pedir o suicídio assistido em Estados onde ele é legal).

Em suma, a sociedade em geral tenderá a focar-se mais no recurso mais fácil e menos dispendioso da ajuda à morte dessas pessoas do que no recurso humanamente mais exigente e mais dispendioso da ajuda à vida plena dessas pessoas (que nunca deixa de ser possível). É por isso que tem todo o sentido e deve ser por todos ouvido o apelo e o grito dessas pessoas: «Ajudem-nos a viver, não a morrer».

As mesmas preocupações desta iniciativa Soulager, mais pas tuer, vêm sendo proclamadas já há vários anos, nos Estados Unidos, no Canadá, no Reino Unido e na Nova Zelândia, pelas associações Not dead yet (mortos, ainda não), de pessoas com vários tipos de deficiência e doenças graves que, em nome destes mesmos princípios e argumentos, se opõem à legalização da eutanásia e do suicídio assistido (ver www.notdeadyet.org).

Entre nós, a Assembleia da República prepara-se para aprovar mais uma versão, que se prevê seja a última, do projeto de legalização da eutanásia e do suicídio assistido que indubitavelmente abrange estas situações de pessoas com deficiência e doenças incuráveis graves. Destas consequências de uma tal legalização, certamente muitos dos nossos deputados que se preparam para tal aprovação ainda não tomaram consciência. Ainda vão, porém, a tempo de o fazer