No passado dia 18 de Janeiro, ocorreu mais um aniversário do falecimento de José Carlos Ary dos Santos, que teria feito 80 anos a 7 de Dezembro último, pois nasceu em tal data do ano 1936 (e não 1937, como erradamente se escreve na Wikipédia e não só). O poeta era mais do que um autor de baladas de grande sucesso nos festivais da Eurovisão, como a Desfolhada (1969) e a Tourada (1973): as suas letras eram sobretudo uma expressão ousada e subtil, por causa da censura, da sua oposição política e social ao regime. Depois do 25 de Abril, foi um dos seus principais trovadores, como autor de poemas como As portas que Abril abriu, em parte reproduzido no arco da praça de Espanha, na cidade em que nasceu, viveu e morreu e a que dedicou uma das suas mais belas poesias: Lisboa menina e moça.

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Não obstante o carácter propagandístico de parte significativa da sua obra, o melhor da sua poesia é alheio a essa sua opção ideológica que, salvo melhor opinião, foi uma aposta publicitária na sua pessoa e carreira artística. Não em vão, José Carlos Ary dos Santos era, de profissão, publicitário e como tal trabalhou toda a sua vida. Natália Correia nunca lhe perdoou o facto de, pela sua adesão a uma doutrina política totalitária, ter comprometido a sua criatividade e liberdade poética.

A sua existência, por sinal breve e intensa – morreu com 47 anos recém-cumpridos – foi vivida na contradição entre as suas origens familiares e as suas opções ideológicas, a sua formação católica, patente nas suas primeiras obras, e o seu estilo de vida. Por isso, quando alguém lhe chamou a atenção para a incoerência de se dizer comunista e vestir camisas de seda e permitir-se outros luxos e gostos requintados, o poeta, que nunca foi militante do PCP, afirmou ser comunista, mas da linha czarista

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Um nome

Embora não fosse o seu primeiro nome, nem o seu último apelido, Ary era, definitivamente, o seu nome. De origem holandesa, onde um tal Ary Scheffer alcançou, como pintor, certa notoriedade, o mesmo nome também existe, com outra grafia, nos países escandinavos, onde o finlandês Ari Vatanen foi campeão de rallies, e Ari Behn foi casado com a princesa Marta da Noruega, prima do poeta… pela linha czarista!

Da Europa, o nome Ary passou ao Brasil – quem não conhece o famoso actor Ary Fontoura?! – de onde chegou a Portugal e, mais concretamente, à estirpe do poeta. Segundo tradição familiar, a sugestão deste nome próprio foi da madrinha brasileira do primeiro Ary português, o médico Carlos Ary dos Santos, avô paterno de José Carlos. Ao longo de cinco gerações de seus descendentes, o Ary do seu nome institucionalizou-se como apelido familiar.

Uma família

A família é de remota origem transmontana e de arreigada tradição militar: o bisavô do primeiro Ary dos Santos foi um valoroso oficial do exército miguelista, convencionado em Évora Monte, e o avô, também pela varonia, morreu ainda jovem, mas já capitão e cavaleiro da Torre-e-Espada, a mais alta condecoração militar portuguesa. Mas, desde meados do século XIX, a família trocou a espada gloriosa dos seus maiores pela pena, bem como o norte das suas origens pela capital, onde se estabeleceu num solar do Bairro Alto que ainda lhe pertence.

O dito Carlos Ary dos Santos, notável otorrinolaringologista da primeira metade do século XX, casou com Maria Guilhermina de Pina Manique Pereira, que era trineta, por sua mãe, do célebre Intendente Diogo Inácio de Pina Manique.

O seu nome próprio de origem germânica – Guilhermina – vinha-lhe de sua bisavó materna, Maria Guilhermina Frederica de Sousa Holstein, que era prima direita do 1º duque de Palmela, sendo ambos netos paternos de D. Manuel de Sousa e da princesa Maria Ana Leopoldina de Schleswig-Holstein-Sonderburg-Beck que, pelo seu próximo parentesco com os reis da Dinamarca e da Noruega, estava aparentada com quase todas as casas reais europeias.

É provável que esta longínqua relação genealógica não fosse desconhecida do poeta que, em Três adereços recebidos como herança, se refere à sua ‘parenta’ a czarina Catarina II… Sendo esta imperatriz, de origem alemã, descendente de um outro ramo dos mesmos Holsteins, era também, mas muito remotamente, prima de José Carlos Ary dos Santos, o qual, aludindo a este parentesco, escreveu: “Catarina da Rússia, minha prima / pela fronteira travessa, / deixou-me, além do gosto pela esgrima / com a moral avessa, / um casaco de marta sibilina /que abafa muita viscondessa” (in Adereços, Endereços, Guimarães Editores, Lisboa 1969, pág. 31). Mais uma vez, a linha czarista…

Dos dois filhos de Carlos Ary dos Santos e de sua mulher surgiram os dois ramos da família. Alfredo, o primogénito, foi advogado e, do seu casamento com a única filha dos condes de Macieira, teve um só filho, já falecido, que foi embaixador de Portugal no Luxemburgo e na Áustria, chefe do protocolo do Estado, sócio correspondente da Academia Portuguesa da História, etc. A sua abundante geração – oito filhos, dezasseis netos e, por ora, nove bisnetos – está espalhada por vários países: França, Estados Unidos da América, Alemanha, Itália, Suíça e, claro, Portugal.

O filho secundogénito, Carlos, seguiu as pegadas paternas, como médico otorrino que igualmente foi. Casou primeiro com Maria Bárbara de Miranda e Castro Pereira da Silva, da família dos morgados de Selir, em Azeitão, de quem teve primogénito o poeta. Seu único irmão varão, Diogo, morreu precocemente, também não deixando descendência pelo que, deste segundo ramo só há geração por via feminina. Viúvo mas ainda novo, Carlos voltou a casar e teve mais uma filha, também casada e com geração.

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Por causa dos seus desentendimentos com o pai, José Carlos Ary dos Santos, mais por razões pessoais do que políticas, viu-se obrigado, ainda novo, a sair da casa de família. Mas sempre manifestou um terno afecto pela sua mãe, desaparecida quando o poeta tinha apenas treze anos. É significativo que, no último verso do seu último soneto, escrito na véspera da sua morte, tenha evocado, com filial saudade, a sua memória: “Tenho tantas saudades, minha mãe!

Uma tradição

Muito embora o grande público só conheça o poeta Ary dos Santos, a verdade é que, se José Carlos foi o mais popular escritor da família, não foi contudo o único.

Seu avô paterno, o Prof. Dr. Carlos Ary dos Santos, para além de vários ensaios da sua especialidade clínica, de que foi docente na Faculdade de Medicina de Lisboa, também deixou numerosas publicações de numismática e medalhística, de que era um grande colecionador e especialista. Já depois da sua morte, foram publicados dois volumes com textos seus sobre esta temática.

Também o advogado Alfredo Ary dos Santos, filho primogénito do anterior, foi autor de uma muito variada obra, não apenas sobre acidentes de trabalho, em que se especializou, nomeadamente como chefe dos serviços jurídicos da CP, mas também com textos de carácter biográfico, político e jurídico. É o caso de Etiópia 100%, sobre a ocupação italiana desse país; D. Quixote Bolchevique, sobre a sua participação na guerra civil espanhola; Nós os advogados, que conheceu uma edição pirata no Brasil; O crime de aborto, que Álvaro Cunhal refere e critica na sua dissertação de licenciatura em Direito; A crise da justiça em Portugal, cuja versão integral foi proibida pela censura; Eça de Queiroz e os homens de Leis, etc. Declinou o convite de Salazar para deputado à Assembleia Nacional, para se poder dedicar, em exclusividade, à advocacia.

Seu único filho, o embaixador Carlos Macieira Ary dos Santos, também escritor, publicou trabalhos de história, diplomacia, genealogia, heráldica e direito nobiliárquico português, nomeadamente um interessante estudo sobre A sucessão da Casa e Ducado de Aveiro, que mereceu um rasgado elogio do Prof. Guilherme Braga da Cruz. Outros títulos da sua obra publicada são o Livro de Linhagem dos Cunhas da Batalha; as Notas sobre um soneto biográfico de Bocage; Silvestre Pinheiro Ferreira em Paris, na revista Colóquio; Padre Manuel da Nóbrega – Diplomata; Uma portuguesa na catedral de Mântua; Camilo e a Resenha dos Titulares, na Revista da Biblioteca Nacional de Lisboa, etc.

Falecido a 18-1-1984, José Carlos Ary dos Santos não poderá evocar, este ano, o centenário da revolução russa de 1917. Ainda bem porque, sendo da linha czarista, corria sérios riscos de sofrer o mesmo triste fim que os seus camaradas bolcheviques infligiram aos seus desafortunados ‘primos’, o czar Nicolau II e família… essa sim, czarista!

P.S. O autor pertence ao ramo primogénito desta família.